José Eduardo Agualusa
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José Eduardo Agualusa

Jornalista, escritor e editor.

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GERADO EM: 20/12/2024 - 20:21

"O Poder Transformador da Leitura: Mergulhando em Novos Mundos"

Mergulhar na leitura é trocar de mundos, escapar da realidade trivial. Ladrões apaixonados por livros se tornam heróis românticos ao se perderem nas páginas. A leitura transforma vidas: de ladrões a idosos doentes, levando-os a universos paralelos. A conexão através dos livros mantém a mente ativa, permitindo que mesmo em dificuldades, mergulhem em novas realidades, vivendo vidas autênticas e paisagens imaginárias.

Em agosto do ano passado um ladrão arrombou um apartamento, em Roma. Encontrou um livro, abriu-o, talvez pensando se valeria a pena levá-lo, e logo se esqueceu do tempo e das circunstâncias — foi preso, horas depois, mergulhado na leitura.

O episódio terminou beneficiando o escritor Giovanni Nucci, autor do livro que tanto interessara ao ladrão, uma releitura da “Ilíada” a partir da perspetiva dos deuses gregos: “Gli dèi alle sei: L'Iliade all'ora dell’aperitivo” (“Os deuses às seis: a Ilíada na hora do aperitivo”.

É fácil simpatizar com o larápio romano porque, no fundo, todos queremos acreditar no famoso provérbio, segundo o qual “bons leitores nunca roubam e ladrões não gostam de ler”. Um ladrão apaixonado por livros, além de uma improbabilidade estatística, é quase um herói romântico, uma espécie de Arsène Lupin.

Num dos principais festivais literários de Portugal, o Correntes d’Escritas, na Póvoa do Varzim (cidade onde nasceu Eça de Queirós), um ladrão erudito assalta, todos os anos, a livraria associada ao evento. No lugar de cada volume roubado, o amável rapinante deixa um presente para o livreiro — ilustrações retiradas de um herbário antigo. O ladrão da Póvoa rouba sempre os livros mais interessantes, umas vezes romances, outras ensaios, demonstrando afinada sofisticação e cultura. Vendo bem, os roubos dele valem como recomendações literárias. Alguns leitores procuram a lista dos títulos roubados, com a mesma ansiedade com que antigamente comprávamos os jornais para ler as colunas dos nossos críticos favoritos.

O que mais me fascinou na primeira história, quando a encontrei, nas páginas de um jornal português, foi o poder da leitura para nos retirar da presente realidade, lançando-nos no interior profundo de universos paralelos. É o que significa a expressão “mergulhar na leitura”. Sempre que mergulhamos no mar estamos trocando de mundos. Estamos nos alheando da realidade trivial — o mesmo ocorre quando mergulhamos num livro.

Ao abrir o livro de Giovanni Nucci, ao entrar dentro dele, o nosso larápio improvável deixou aquele apartamento burguês, em Roma, e reencarnou em Troia na pele de Aquiles. Estava em Troia, cercado por estranhos deuses e pelo fragor das batalhas, quando a polícia o deteve.

A minha mãe, Dorinda, foi professora de português. Leu muito a vida inteira. A partir de certa altura, com 86 anos, foi-lhe diagnosticada uma doença nos olhos, degenerativa e incurável. Aceitou a doença com um otimismo indestrutível: “o lado bom é que agora a casa me parece sempre limpa” — disse-me.

A funcionária que a ajudava nos trabalhos domésticos, Dona Bela, começou a ler para ela. Conversavam muito sobre os livros que iam lendo — os grandes clássicos da literatura universal, mas também as novidades do momento. Hoje, Dona Bela tem uma cultura literária (e uma biblioteca) que qualquer acadêmico invejaria. Aposentada, continua a visitar a minha mãe, todas as tardes, para lhe ler romances, contos, poesia.

É difícil saber se Dorinda, que há alguns anos sofreu um terrível AVC, ainda consegue acompanhar as leituras. Quero acreditar que sim. Quero acreditar que cada tarde mergulha em mundos novos, vendo, com olhos jovens e saudáveis, as paisagens autênticas, as vidas verdadeiras, que só a ficção pode criar.

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