José Saramago afirmava que a ideia para a escrita de “O Evangelho segundo Jesus Cristo” surgiu a partir do título, e que este lhe ocorreu quando, ao atravessar uma rua, em Sevilha, leu a frase na confusão de manchetes de uma banca de jornais. Curioso, aproximou-se da banca, mas já não a encontrou. Saramago convenceu-se de que se tratara de uma ilusão de ótica. Fato é que o romance se foi organizando, ao longo dos meses seguintes, em redor daquela ilusão milagrosa.
Nem todos os grandes escritores são felizes na hora de nomear as suas obras. Saramago fazia isso muito bem. Outro dos seus grandes títulos é “Ensaio sobre a cegueira”. Numa entrevista concedida quando da publicação do livro, em 1995, o escritor contou que o título lhe surgiu de súbito enquanto almoçava num boteco da capital portuguesa: “O livro nasceu, estava eu a almoçar num restaurante onde costumava ir, o Varina da Madragoa. Esperava que me servissem e, como sempre, pensava em coisas vagas. De repente, surgiu-me o título.” Ou seja, o título, de tão bom, gerou o livro.
Outro escritor português que raramente erra nos títulos é António Lobo Antunes, arquirrival de Saramago, e autor de mais de 30 romances, todos eles extraordinários. Para muitos escritores, bem como para críticos e acadêmicos, um título deve dar alguma indicação sobre o conteúdo da obra, ainda que mantendo certo mistério. Não para Lobo Antunes. A partir de certa altura ele próprio começou a dizer que escreve poemas longos, e não ficções, e que está mais preocupado com o ritmo e o fulgor das frases do que com o enredo.
Há alguns anos, Lobo Antunes convidou-me para apresentar um dos seus romances, “Ontem não te vi em Babilônia”. Li o livro três vezes, descobrindo novas camadas a cada leitura, e nunca consegui compreender a razão do nome. Ainda assim, continua sendo um dos meus títulos preferidos, juntamente com outros do mesmo autor, como “Explicação dos pássaros”, “Exortação aos crocodilos” ou o “Auto dos danados”.
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Antunes transformava versos de poetas em títulos. Chegou até a apropriar-se de títulos alheios, reconhecendo o roubo, como no caso do romance “O manual dos inquisidores”, que remete para um manual jurídico do século XIV, no qual o seu autor, o teólogo e inquisidor catalão Nicolau Eymericht, explica a origem, os direitos e os métodos da Santa Inquisição.
Escrevo e publico livros há mais de 30 anos e ainda não sei o que é exatamente um bom título — muito menos, qual o método para o encontrar. Já sonhei com títulos, e depois, como aconteceu com Saramago com “Ensaio sobre a cegueira”, fui vendo os romances se organizando em torno deles. Também me aconteceu alcançar o fim de um romance e não ser capaz de o nomear, até o editor, exasperado, o batizar à força.
Guardo um caderno onde vou anotando títulos. São centenas. Podia montar uma banca e vendê-los a autores desesperados. Provavelmente, teria mais sucesso vendendo títulos do que vendendo livros.