Cultura

Incêndio no Museu Nacional provoca reflexão: Brasil é um país sem memória?

Para antropólogos, escritores e filósofos, raiz da questão é elite que não se sente brasileira
Museu Nacional sendo vistoriado após o incêndio Foto: Pablo Jacob / Pablo Jacob
Museu Nacional sendo vistoriado após o incêndio Foto: Pablo Jacob / Pablo Jacob

RIO - Das chamas que consumiram o Museu Nacional parecia se erguer — palpável como os fragmentos de documentos incinerados que também se erguiam dali — a confirmação do fracasso do Brasil em gerir sua memória. Como se o crepitar do fogo chiasse a frase que, de tão repetida, se tornou um traço incontestável de nossa personalidade: somos um país sem memória. Mas, para além do lugar-comum, o que significa essa afirmação? Como nos tornamos uma Nação que deixa sua História queimar, quando não voluntariamente a demole em nome da construção de algo mais moderno, seguindo a benção-maldição de sermos “o país do futuro”, outra definição possível do Brasil?

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“Seria importante que o pensamento filosófico euopeu tivesse o mesmo valor do pensamento mítico iorubá ou tupinambá.”

Alberto Mussa
Escritor

O GLOBO conversou com pessoas que lidam com o tema e o pensam de diferentes formas. No desdobramento que elas fazem da frase “o Brasil é um um país sem memória” se desenha a consciência de que há, aqui, muitos países e muitas memórias. Ou, como acredita o escritor Alberto Mussa, há país de menos para dar conta de suas memórias.

— O Brasil não formou ainda uma noção de nacionalidade. Com o fim da escravidão, uma espécie de esboço de nação começou a surgir, uma sociedade que pôde gerar um Machado de Assis ou mesmo um Noel Rosa — afirma Mussa. — Mas então veio um projeto estatal de enbranquecimento do Brasil, com estímulo tremendo à importação de pessoas sobretudo da Europa. A imigração não é um problema. Mas essas pessoas foram beneficiadas pelo sistema e em duas gerações se tornaram a elite do Brasil, uma elite que não se identifica com o país.

'Apostamos na ignorância'

Mussa ressalta que não defende ingenuamente a recuperação do mito da cordialidade ou da democracia racial, mas sim que uma nação é formada pela contribuição de diversos povos:

— Seria importante que o pensamento filosófico euopeu tivesse o mesmo valor do pensamento mítico iorubá ou tupinambá. Assim que se constitui uma nação. Quando para você um cesto indigena não significa nada, ou um tambor apreendido num terreiro de candomble no início do século XX, você não tem como cuidar dessa memória. Para se ter uma ideia, não temos nem um gentílico que nos designe. Porque brasileiro, originalmente, é o português que veio aqui para pegar pau brasil e vender lá. É uma atividade. Isso é muito simbólico do que o país passa.

Estudioso da História da presença africana no Brasil, o escritor e músico Spirito Santo ataca o mesmo ponto e se refere a uma elite desenraizada que se comporta “como europeus de segunda classe, ressentidos de sua suposta condição de asilados, degredados, piratas sem navio para fugir de uma ilha estranha, já saqueada”. Ele faz questão de diferenciar brasis quando reflete sobre como o país lida com sua memória:

“Apostamos na ignorância. Nada que não tenha a ver com algo prático, como ganhar dinheiro ou dar tiro em bandido, atrai atenção.”

Roberto DaMatta
Antropólogo

— A grande maioria dos brasileiros cuida de forma exemplar de nossa memória por meio de inúmeras manifestações culturais, disponíveis à atenção das instituições destinadas a organizá-los e conservá-los, como as universidades, os museus. Mas o que fazer quando essas instituições assumem a condição de espaços exclusivos de ascensão social para uma certa casta que se sente estrangeira e que exerce poder por meio de arcaicos mecanismos de exclusão social de parte majoritária de nossa população?

Sob outra perspectiva, a desvalorização da memória no âmbito institucional seria reflexo da própria forma como o país lida com a cultura e a pesquisa. É o que pensa o antropólogo Roberto DaMatta, que trabalhou por cerca de 30 anos no Museu Nacional.

— O Brasil não tem lugar para pessoas que fazem pesquisa, investigação e trabalho intelectual. Essas pessoas existem, mas ninguém se interessa. Tanto que temos o ditado: “quem sabe faz, quem não sabe ensina”. Educar no Brasil é tarefa de quem não sabe — define DaMatta. — Apostamos na ignorância. Nada que não tenha a ver com algo prático, como ganhar dinheiro ou dar tiro em bandido, atrai atenção.

“Homero não é grego, assim como Jorge Amado não é brasileiro. A cultura é um patrimônio universal.”

Nuccio Ordine
Filósofo

Autor de “A utilidade do inútil”, o filósofo italiano Nuccio Ordine lembra que na mitologia greco-romana, a deusa da memória, Mnemosyne, era tida como a mãe de todas as artes e de todos os saberes:

— Perder a memória significa abrir mão de interrogar o passado para compreender o presente e pre-ver o futuro — diz o filósofo, que marca a diferença entre memória e "raízes". — A memória nos ajuda a conhecer os grandes valores que unem toda a Humanidade. Em contrapartida, as raízes são instrumentalizadas para construir uma perigosa narrativa da História fundada sobre uma ideia estática de “identidade”, como os nacionalismos europeus que estão gerando formas perigosas de racismo. Homero não é grego, assim como Jorge Amado não é brasileiro. A cultura é um patrimônio universal.

Na Grécia clássica, conta a antropóloga Regina Abreu (professora da pós-graduação em Memória Social na UNIRIO), praticavam-se longos exercícios de memorização, de declamação, de repetição de fatos considerados importantes.

“Nossas elites econômicas, infelizmente, não estão interessadas em memória nacional. Preferem viajar para a Disney ou visitar o Museu do Louvre em Paris. Como dizia Euclides da Cunha, elas continuam 'cegas aos quadros reais das nossas vidas'.”

Regina Abreu
Antropóloga

— Memória é trabalho. Ela não se faz espontaneamente. É preciso convocar uma vontade de memória — afirma a antropóloga, que defende que apenas o Estado pode assumir essa responsabilidade em instituições como o Museu Nacional. — O trabalho ali empreendido é invisível, envolve muitos anos em pesquisa. Tudo isso não traz visibilidade. Quem pode financiar este trabalho? O poder público. Nossas elites econômicas, infelizmente, não estão interessadas em memória nacional. Preferem viajar para a Disney ou visitar o Museu do Louvre em Paris. Como dizia Euclides da Cunha, elas continuam “cegas aos quadros reais das nossas vidas”.

Disputa simbólica

A memória, muitos dos entrevistados notam, é um espaço importante de disputa simbólica. É sintomático, por exemplo, que uma das primeiras declarações oficiais após o incêndio fizesse referência à “lembrança da família imperial” (e não às pesquisas ou ao acervo do Museu Nacional).

— É na memória que definimos o que é mais importante e o que é menos. Ela não abarca tudo, é uma ilha de edição — afirma, citando Waly Salomão, a historiadora Karen Worcman, fundadora do Museu da Pessoa. — Quem está editando? É um poder imenso, porque isso influencia todos os valores do país. O Museu da Pessoa nasce dessa consciência, ao se afirmar como um museu no qual toda e qualquer pessoa pode integrar essa memória coletiva.

“Como dizia George Orwell, quem controla o passado controla o presente, e quem controla o presente controla o futuro.”

Ruy Castro
Jornalista

Ruy Castro, autor de biografias de personagens como Garrincha e Carmem Miranda, também chama a atenção para esse “poder imenso”:

— Há várias passagens na história cultural do Brasil que foram “reescritas” 20 ou 30 anos depois de acontecidas, e foi essa versão que passou a prevalecer. Como dizia George Orwell, quem controla o passado controla o presente, e quem controla o presente controla o futuro.