Escritora, jornalista e apresentadora.
Informações da coluna
Ana Paula Lisboa
As luzes brilham na Marginal
Quem tem o pôr do sol mais bonito do Rio de Janeiro são os moradores do Morro do Encontro, na encosta da Estrada Grajaú-Jacarepaguá
RESUMO
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GERADO EM: 29/10/2024 - 22:03
Contrastes no Morro do Encontro: Pôr do Sol e Violência
Moradores do Morro do Encontro têm o pôr do sol mais bonito do Rio. Enquanto uns desfrutam da vista, outros enfrentam a violência. A falta de inteligência do Estado resulta em mortes sem despedidas. A reflexão sobre a vida e a morte surge diante de contrastes perturbadores.
Pois saiba que hoje não é quarta-feira, hoje é domingo. Foi um domingo lindíssimo em Luanda, sol e céu azul. “Vem chegando o verão”, mas ainda sem as temperaturas de janeiro, é possível admirar e se encantar com o calor, lembrar que ele é absolutamente necessário pra vida na Terra e não odiá-lo com todas as forças.
Quem lê pensa até que saí de casa para curtir o domingo. Não saí. Passei o dia aqui, finalizando trabalhos ou adiantando trabalhos. “Ruim não é o trabalho, ruim é ter que trabalhar”. Agora, por volta das 17h, o sol começa a baixar e lá vem ele, o pôr do sol mais bonito do mundo. Depois, as luzes brilham, não no Vidigal, mas na Marginal.
Que me perdoe o pessoal do Arpoador mas, na verdade, quem tem o pôr do sol mais bonito do Rio de Janeiro são os moradores do Morro do Encontro, na encosta da Estrada Grajaú-Jacarepaguá. Eu sempre os invejei e, se você também não tem o privilégio de viver lá, desça a estrada, sentido Grajaú, por volta das 17h30 e verás.
Eu cresci no morro e foi esta a vingança que Deus reservou pra nós, o direito ao pôr do sol mais bonito. É como a melanina, que retarda o envelhecimento. É a nossa vingança numa sociedade racista, mas que endeusa a juventude.
Como cresci em morros da Zona Norte, me faltava o mar. Eu daria tudo para ter a vista do pôr do sol e da água, ao mesmo tempo, na minha laje ou janela. Mas, esta vingança específica, Deus reservou aos moradores do Vidigal, da Rocinha…
Em Angola, realizei meu sonho de criança: o pôr do sol e a água da Baía de Luanda da minha janela. Tenho o privilégio dado por Deus de redimir a mim mesma ainda em vida.
Eu penso nesse dia lindo, nesse privilégio, e eu em casa… Me vem Paulinho Moska na cabeça e “o que você faria se só te restasse esse dia, meu amor?” Respondo que estaria na rua. Essa é a função do filósofo e do poeta, nos fazer pensar. “A gente é feito pra acabar”, mas a gente nunca sabe.
O poeta e filósofo Antonio Cicero soube. E, sabendo, decidiu escolher o último pôr do sol e nos fez, mais uma vez, pensar. Cicero pôde se despedir dos amigos, do amor da vida, da cidade preferida, das comidas prediletas e, como disse o viúvo, Marcelo Pies, pôde pela “milésima vez admirar a Sainte Chapelle e também a Brasserie La Coupole”.
Um dia depois da eutanásia de Cicero, três homens trabalhadores foram mortos com tiros na cabeça na Avenida Brasil. Sem adeus, sem comida predileta. Eu sou contra a pena de morte, mas até quem está no corredor da morte, geralmente condenados por crimes hediondos, tem a chance de se despedir e de escolher a última refeição.
Renato Oliveira Alves Reis, Paulo Roberto de Souza e Geneilson Eustáquio Ribeiro eram moradores da Baixada Fluminense, deixam viúvas, filhos, netos, amigos e irmãos sem despedida.
A porta-voz da PM confirmou que os policiais foram surpreendidos com o poder bélico do tráfico durante uma operação e que a instituição “não tinha dados de inteligência para sinalizar para essa situação naquele momento”.
Eu já parei de contar há quanto tempo dizemos que, enquanto o Estado trabalhar sem inteligência, enxugando gelo, homens, mulheres e crianças continuarão a morrer. Sem direito a envelhecer, sem despedida, sem último pôr do sol, sem comida predileta.