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Informações da coluna
Antônio Gois
Jornalista de educação desde 1996. Autor dos livros 'O Ponto a Que Chegamos'; 'Quatro Décadas de Gestão Educacional no Brasil' e 'Líderes na Escola'.
Aprendizados da pandemia
Pesquisa conclui que professores e diretores mudaram a mentalidade após conhecerem a realidade socioeconômica dos estudantes
RESUMO
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GERADO EM: 22/12/2024 - 20:41
"Pandemia revela importância da equidade na educação e desafia uso de tecnologia"
Durante a pandemia, professores e diretores mudaram sua mentalidade ao conhecer a realidade dos alunos. Estudo destaca a importância da equidade na prática educacional. Aprovação de lei restringindo celulares nas escolas levanta questões sobre os impactos e a necessidade de abordar o bom uso da tecnologia na educação. Formação contínua e apoio aos profissionais são cruciais para garantir uma abordagem holística e eficaz no ensino.
“Nós entramos na casa do aluno. Antes eles vinham até a escola, e com a pandemia esse papel se inverteu. Antes, a gente ficava brava porque ele não levou o livro. Mas, agora, a gente entende a realidade deles. Fui levar merenda para um aluno, e ele não tinha gás em casa. Antes, eu exigia mochila arrumada, caderno em dia, uniforme... Agora eu conheço a realidade dele. Eu vi que não é só ler e escrever. Não depende só disso.” O depoimento é de uma diretora de escola, comentando sobre seus aprendizados durante a pandemia.
Nesse período, entre tantos desafios, muitos gestores e professores se mobilizaram para entregar materiais didáticos e merenda escolar na casa de alunos. Em alguns casos, era a primeira vez que esses profissionais estavam visitando as casas e conhecendo as famílias de seus alunos mais vulneráveis.
Essa experiência, mesmo que dolorosa, representou um aprendizado sobre equidade na prática, e reforçou ainda mais a importância de conhecer a realidade socioeconômica dos estudantes. Mas profissionais que já estavam em redes de ensino com estruturas mais profissionais de formação, seleção e apoio aos gestores demonstraram maior capacidade de refletir e melhorar suas práticas.
Esta é uma das conclusões de um estudo dos pesquisadores Lara Simielli (FGV-SP) e Ken Jones, recém-publicado na revista científica Professional Development in Education. “Experimentar os desafios de seus alunos mudou a mentalidade dos diretores e fez com que muitos ressignificassem o propósito da liderança escolar e a necessidade de pensar formalmente e informalmente sobre seu próprio aprendizado profissional”, escrevem os autores no artigo.
O estudo se baseou principalmente em entrevistas com 84 diretores e 15 servidores de secretarias municipais de Educação, de dez municípios selecionados por terem se destacado em estratégias de enfrentamento à pandemia. Esses municípios foram identificados a partir de um estudo anterior, realizado pela associação D3E, que teve como base questões sobre gestão escolar respondidas pelas redes municipais, em um questionário aplicado pelo Inep durante a pandemia.
É consensual a constatação sobre a importância do diretor de escola para a aprendizagem e bem-estar dos estudantes. Há também pouca divergência na necessidade de garantir formação adequada a esses profissionais, além de estruturas de apoio e formatos de seleção que valorizem suas competências.
No entanto, mesmo o que parece óbvio nem sempre se reflete na realidade. Tanto que, segundo dados do Censo Escolar do Inep, apenas um em cada cinco diretores de escola no Brasil possuem formação continuada com ao menos 80 horas de aula em gestão escolar. Temos também, ainda, quase metade (46%) dos diretores em redes municipais escolhidos por indicação política.
O artigo de Simielli e Jones contribui para essa discussão ao mostrar que, além do investimento na aprendizagem formal e na melhoria dos critérios técnicos de seleção e apoio a esses profissionais, é preciso também incentivar oportunidades contínuas de aprendizagem informal, na prática. Isso pode ocorrer de maneira espontânea e esporádica, como vivenciado por alguns gestores durante a pandemia, mas será muito mais efetivo se constar como uma estratégia de política pública.
O projeto de lei que restringe o uso de celular na escola deu mais um passo na semana passada, sendo aprovado por ampla maioria na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. Pesquisa realizada pela Nexus em outubro mostrou que 86% da população brasileira são favoráveis a algum tipo de restrição nas escolas, sendo que 54% chegam a defender a proibição total. Trata-se, portanto, de uma medida com ampla aceitação popular, o que ajuda a explicar a facilidade com que a iniciativa tem avançado também em legislativos estaduais e municipais. No entanto, justamente pela baixa resistência à proposta, é importante atentar para alguns riscos.
Um deles extrapola a sala de aula. Se estudantes compensarem o tempo que deixarão de utilizar celulares na escola aumentando seu uso imoderado em casa ou na rua, muitos dos efeitos prejudiciais à sua saúde e ao bem-estar, identificados em várias pesquisas, continuarão ocorrendo em algum grau. Em alguns países que baniram esses aparelhos de ambientes pedagógicos, foi justamente isso que ocorreu, conforme destacou um relatório da OCDE neste ano, já citado aqui. A conscientização e envolvimento das famílias, portanto, é essencial.
Mas há também riscos pedagógicos a serem considerados. Celulares hoje são a ferramenta tecnológica mais disseminada em todas as classes sociais. Através deles temos acesso a serviços, informações, entretenimento, oportunidades de trabalho ou a aplicativos que facilitam a comunicação e tarefas cotidianas. Ao mesmo tempo, são porta de entrada para a desinformação e geram dependência, distração e ansiedade, entre outros malefícios. É o uso que fazemos dele que determina se os benefícios superam os prejuízos.
Mesmo com as exceções para uso pedagógico previstas no texto da Lei, a mensagem geral de que celulares devem ficar longe da sala de aula pode, na prática, inibir que dimensões como o desenvolvimento de competências digitais e a educação midiática sejam devidamente trabalhadas. Isso prejudicaria, entre outros aspectos, o estímulo do pensamento crítico e da própria conscientização sobre os potenciais e cuidados necessários no uso de tecnologias.
Outro efeito colateral indesejado seria o desincentivo ao bom uso de tecnologias em favor da aprendizagem. Aqui é necessário reconhecer que hoje há muito mais joio do que trigo na oferta de soluções digitais às escolas. Mas fechar os olhos para o potencial que algumas estratégias mediadas pela tecnologia podem trazer para o campo educacional seria um grave erro.
Diante de tantas evidências sobre as consequências negativas do uso de celulares por crianças e jovens, era mesmo necessário um freio de arrumação. Mas a resposta das redes de ensino ao problema não pode se limitar apenas à restrição. Será fundamental, em paralelo, investir em formação, materiais didáticos e orientação às escolas para que não deixem de trabalhar dimensões tão fundamentais hoje para o exercício pleno da cidadania.