Médicos e cientistas abordam diferentes aspectos da saúde.
Informações da coluna
Centenário, clássico e atual
Obra-prima 'A montanha', de Thomas Mann, ainda tem muito a dizer cem anos depois de escrita
RESUMO
Sem tempo? Ferramenta de IA resume para você
GERADO EM: 16/12/2024 - 21:10
"Reflexões na Montanha: 'A Montanha Mágica' de Thomas Mann"
"A Montanha Mágica" de Thomas Mann, obra centenária, permanece atual ao abordar a tuberculose e a relação entre tempo e espaço no cenário sanatorial, despertando reflexões sobre a humanidade. A leitura oferece uma pausa na rapidez da informação, convidando à celebração desse clássico atemporal.
Centenários costumam ser festejados, muitas vezes com pompa e circunstância, noutras com nostalgia e ainda, como lembranças necessárias para preservar a memória de momentos marcantes em nossa existência. Entretanto, celebrar a idade de algumas obras literárias, exatamente porque atemporais, merece registro, sempre, no que resgatam o melhor da nossa história e do imaginário de quem as escreve.
“A montanha mágica”, obra de Thomas Mann publicada em 1924, que curiosamente não foi a que lhe rendeu o Prêmio Nobel de Literatura, e sim outra, “Os Buddenbrooks”, é leitura absolutamente necessária em nossos dias, não apenas pela sua excepcional qualidade, mas pela atualidade de seu tema de fundo, uma doença milenar, a tuberculose, que permanece muito presente entre nós, de par com uma técnica de narrar que prende o leitor, como se a monotonia dos dias intermináveis e o anódino das rotinas sanatoriais fossem um aguilhão a despertar curiosidade para o que virá no momento seguinte. No caso de “A montanha mágica”, o momento seguinte pode ser meses, e até anos, dado à singularidade do tempo e sua percepção.
A doença é a mesma, porém não mais tratada como o foi, liricamente, em óperas, libretos, músicas e poemas, tampouco nas longas internações em sanatórios com condutas paliativas então denominadas higieno-dietéticas, mas com medicamentos de alta eficácia, que começaram a surgir após a Segunda Guerra Mundial. O que a faz permanecer tão presente a despeito desse armamento terapêutico são causas sociais, e acesso a diagnóstico, e condições de imunidade individual propiciadoras.
O entendimento das angústias, dúvidas, inquietudes, melancolia e toda essa torrente de sentimentos plasmada num tempo de marcação único, como descrito no cenário sanatorial de Hans Castorp, o personagem heroico (ou anti-herói?) de Berghof, em Davos, faz daquele ambiente um universo particular no que condensa de humano, com seus olhares, odores, sudoreses, prescrições litúrgicas, ausência de vantagens ou desvantagens, manifestas até na distribuição das mesas do refeitório, e opera como uma metáfora audaciosa, segundo a definição dada por Herbert Caro, o grande tradutor de Mann para o português.
A partir de uma visita que se transforma em sete anos de permanência, esse ambiente, esse conluio tempo-espaço, permite que exemplos se multiplicam, como o do relógio, “não os das estações de trem, cujo ponteiro dá saltos bruscos, de cinco em cinco minutos, ou de relógios pequeninos, cujo movimento de agulhas permanece imperceptível, ou o que a relva leva para crescer, sem que olho algum perceba, como se ela o fizesse em segredo... O tempo , uma linha composta de um sem número de pontos sem extensão, ora, ora, o tempo, à sua maneira silenciosa, secreta, e contudo ativa, continuará a presentificar transformações”. O tempo, naquelas alturas da montanha, guardara um caráter especial, parecendo feito para produzir hábitos, ainda que fosse apenas o hábito de não se habituar.
A especialíssima relação estabelecida entre o tempo e os corpos no espaço talvez configurasse toda a sua enfermidade e nada mais. Cada partida de um paciente ou companheiro por morte, com as dramáticas e irrecorríveis hemoptises, levava o personagem Castorp aos enterros, no próprio cemitério ao lado do sanatório, e ele se reconhecia a gostar do ritual. Renunciar aos calendários, quer os de arrancar folhinhas, quer os que marcam dias de festas e efemérides, compunha o comportamento conformado de quem se restringia ao universo do sanatório. Assim, pela sétima vez, sem que se desse conta, no alto verão, época de sua chegada ali, Castorp se fechava de novo sobre si mesmo. Pathos, sem dúvida. Ethos fica em nosso imaginário de leitor aficionado, mais do que na complexa persona descrita por Mann.
Na inexorabilidade desses dias tão difíceis, dominados pela rapidez vertiginosa da informação, algumas horas de leitura, a entender o que seja o tempo, fora dos cronômetros e das ampulhetas, norte fora das bússolas, sem dúvida propiciará momento de prazer e de celebração dessa obra centenária e atual.