Marcelo Ninio
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Marcelo Ninio

Repórter desde 1989, passou por O GLOBO, Jornal do Brasil, EFE e Folha de São Paulo.

Informações da coluna

Marcelo Ninio

Passou pelas redações do Jornal do Brasil, Agência EFE e Folha de S.Paulo. Tem mestrado em relações internacionais pela Universidade de Jerusalém.

Por — Pequim

RESUMO

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GERADO EM: 23/12/2024 - 21:21

"Reality show de divórcios desafia normas na China"

Reality show na China aborda divórcios em programa de sucesso, refletindo sociedade e desafiando políticas do governo. Com crescimento da indústria do entretenimento estimulada pelo governo, a produção gera debates e catarse coletiva, revelando aspectos da vida e cultura chinesa. O programa se destaca em meio ao monitoramento estatal intenso, evidenciando a dualidade da sociedade chinesa e seu impacto na economia e nas relações interpessoais.

Com milhões de câmeras de segurança por todo o país, intenso monitoramento digital a serviço do Estado e reconhecimento facial eletrônico como rotina, a China já é uma espécie de Big Brother sob esteróides, diriam alguns. Ao mesmo tempo, espiar a vida alheia por pura diversão também faz sucesso entre os chineses, que não estão imunes à febre dos reality shows.

Com o estímulo do governo, a indústria do entretenimento chinesa tem crescido acima do PIB, e a projeção é de que gere uma receita anual perto de US$ 600 bilhões até 2028, incluindo cinema, TV e jogos eletrônicos, entre outros setores. As fórmulas do sucesso variam. Às vezes o que cai no gosto do público se choca com os objetivos do governo. É o caso do programa de maior sucesso de 2024. O tema central é indigesto: divórcio.

Em sua quarta temporada, o reality show “Adeus, meu amor” acompanha por algumas semanas três casais à beira da separação, numa viagem em que eles discutem intensamente a relação em meio a atividades de grupo e assistência psicológica. No estúdio, um grupo de espectadores observa tudo e faz comentários. Depois de três temporadas sem muita repercussão, este ano a produção tornou-se um dos assuntos mais falados nas mídias sociais chinesas, despertando discussões apaixonadas sobre os casamentos à deriva.

Não há barracos homéricos, como possivelmente ocorreria em programas semelhantes no Brasil. O tom é bem mais brando, e muito do que é exibido parece meio roteirizado para contar uma historinha, naquele estilo típico de reality shows sobre casais. Mas tendo como locação a China, país com pouco espaço para manifestações públicas espontâneas, virou uma chance rara de lavar roupa suja na casa dos outros, que conduziu a momentos inusitados de catarse coletiva.

No fim das contas, quem sai perdendo é a vontade de estar num casamento. Pior para o governo e sua campanha para deter a queda nas taxas de fertilidade no país. O pesadelo é que o declínio populacional continue a ponto de brecar a arrancada econômica chinesa. O fim da política de filho único, em 2013, não surtiu o efeito desejado. Agora até três filhos são permitidos, mas poucos casais topam encarar os custos de uma família maior.

Mesmo com certos exageros de produção e caça-cliques melodramáticos, o reality do divórcio tocou num nervo e bateu em muitos como realidade. Na falta de outros canais de expressão, o entretenimento muitas vezes acaba vazando o que há de mais próximo de um retrato da sociedade chinesa. Do clima emocional às tendências de consumo, serve como um barômetro do clima social, disse ao podcast ChinaTalk a escritora feminista Emily Liu, autora do boletim “Active Faults”, especializado em cultura pop chinesa.

Desde que a internet se popularizou na China, as opiniões se dividem: otimistas veem nela a chance de abrir frestas de liberdade na discussão pública; outros, que ela é só mais uma ferramenta de controle do regime. Há verdade nas duas visões. O caráter bipolar das mídias sociais chinesas também se manifesta em órgãos vitais da vida chinesa, como o híbrido sistema econômico batizado oficialmente de “socialismo de mercado”, enquanto a sociedade alterna complexos de superioridade e inferioridade. Não surpreende tanto que um reality show sobre divórcio acabe se transformando numa DR coletiva.

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