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Informações da coluna
William Helal Filho
Jornalista formado pela PUC-Rio em 2001. Entrou na Editora Globo pelo programa de estágio, foi repórter e editor. Hoje é responsável pelo Acervo.
O que aconteceu com policiais filmados espancando e matando durante blitz em Diadema
Imagens exibidas pelo Jornal Nacional em 1997 mostraram PMs cometendo abusos em favela de São Paulo; Agente que jogou homem da ponte pertence ao mesmo batalhão
RESUMO
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GERADO EM: 06/12/2024 - 16:22
Violência policial: Brutalidade e debate no Brasil
Policiais filmados espancando e matando em blitz chocam o Brasil em 1997. Episódio revela a brutalidade policial na Favela Naval, Diadema. PMs abusivos são expulsos e condenados, mas herança da ditadura militar perpetua truculência. Caso recente de violência em São Paulo reacende debates sobre abusos policiais.
As imagens de policias militares espancando pessoas inocentes numa favela em Diadema, na Grande São Paulo, deixaram o Brasil consternado. Filmados por um cinegrafista escondido a alguns metros de distância, os PMs foram flagrados abordando motoristas e promovendo sessões de tortura durante uma blitz na Favela Naval, em março de 1997. Logo que desciam dos carros, as vítimas eram xingadas e agredidas com tapas, socos e golpes de cassetete, enquanto os agentes riam do sofrimento delas.
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Exibidas com destaque pelo Jornal Nacional em 31 de março daquele ano, as cenas marcaram a história da segurança pública no país. Num dos trechos mais sinistros da gravação, um homem levado para trás de um muro grita enquanto é torturado, até ser baleado quando estava deitado no chão. Em outra imagem, um policial conhecido na época como Rambo dispara contra um automóvel modelo Gol que estava deixando o local e mata um mecânico dentro do veículo.
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Agora, mais de 27 anos depois, o episódio em Diadema voltou à tona porque o PM filmado jogando um homem do alto de uma ponte em São Paulo, na semana passada, faz parte do 24° BPM, o mesmo batalhão no qual estavam lotados os soldados que cometeram os abusos lá em 1997.
De acordo com historiadores, a violência policial no Brasil pode ser entendida como herança direta da forma como foi estruturada a segurança pública durante a ditadura militar. No decreto-lei 667, de 1969, o regime reorganizou as polícias militares, atribuindo-lhes a função de patrulhamento ostensivo. Na prática, segundo pesquisadores, os PMs eram treinados para patrulhar as ruas com o objetivo de combater os inimigos internos do regime e funcionavam como agentes da repressão política.
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Nos anos 1990, a Polícia Militar de São Paulo, assim como a do Rio, já tinha fama de truculenta. Em 1997, ainda estava fresca na memória do país a operação que tinha deixado 111 mortos durante uma rebelião no Complexo Penitenciário do Carandiru, em 1992, assim como a chacina de Vigário Geral, na qual policiais invadiram a favela da Zona Norte do Rio com máscaras cobrindo os rostos e executaram 21 moradores para se vingar após o tráfico local matar quatro PMs na noite anterior.
O episódio na favela em Diadema gerou comoção por expor a brutalidade policial contra a população numa área de periferia. O cinegrafista autor das imagens, que já tinha trabalhado em emissoras de TV, decidiu filmar a ação dos PMs por conta própria, depois de ouvir relatos sobre a forma violenta como eles abordavam as pessoas na Favela Naval. De acordo com moradores, aquele tipo de tratamento por parte dos agentes de segurança já havia se tornado uma rotina dentro da comunidade.
O cinegrafista Francisco Romeu Vanni escolheu um esconderijo com vista pro local exato onde a blitz acontecia e filmou os abusos durante várias horas ao longo de três madrugadas. As imagens foram exibidas pelo Jornal Nacional no dia 31 de março, com reportagem do jornalista Marcelo Rezende.
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Um dos momentos mais chocantes é quando um rapaz torturado grita e chora implorando pra um policial parar, até que outro agente, o PM Otávio Lourenço Gambra, chamado de Rambo, se aproxima e dá um tiro a queima-roupa na vítima, que, apesar de tudo, sobrevive. Já o mecânico Mario José Josino foi espancado pelos policiais e, quando já estava dentro do carro indo embora, depois de ser liberado, foi morto com um tiro disparado pelo mesmo policial conhecido como Rambo.
Uma semana após a reportagem sobre Diadema, o Jornal Nacional voltou a exibir cenas de violência policial, mas na Cidade de Deus, na Zona Oeste do Rio. Nas imagens, gravadas por outro cinegrafista amador escondido, um grupo de PMs aparece espancando moradores com joelhadas, tapas no rosto, socos na nuca e golpes de porrete e de cinto. As vítimas eram abordadas na rua de forma aleatória, colocadas de frente para um muro e submetidas a uma sessão de tortura ao ar livre.
Os policiais envolvidos no caso em Diadema e no episódio na Cidade de Deus foram presos viraram alvo de processo, mas algumas autoridades na época tentaram relativizar a truculência explícita nas imagens. O então secretário de segurança do Rio, general Nilton Cerqueira, disse que a violência dos PMs na Cidade de Deus era "uma manifestação da fera oculta que aflora" de dentro dos homens e que aquilo continuaria existindo "até o fim dos tempos, como está nas sagradas escrituras".
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O agente conhecido como Rambo, expulso da PM e condenado à prisão, alegou que não tinha praticado barbaridade nenhuma e que não estava abordando pessoas na Avenida Paulista, mas, sim, numa "área de tráfico pesado", onde os policiais "atuam sob pressão" e precisam ser "enérgicos". O argumento não livrou o réu porque, nas imagens, fica claro que as vítimas da violência policial não estavam em atividade suspeita e também não ofereceram nenhuma resistência.
Nove agentes envolvidos nos espancamentos na Favela Naval foram expulsos da PM. Em 1998, foram condenados Gambra, a 65 anos de reclusão, e Maurício Louzada, a 27 anos. No ano seguinte, cinco ex-PMs flagrados nos vídeos foram condenados por abuso de autoridade. Ainda em 1998, o Tribunal de Justiça anulou a condenação de Gambra e determinou um novo julgamento, que fixou a sentença de 47 anos. Em 2001, a pena foi reduzida para 15 anos. Em 2006, ele passou para o regime semiaberto.
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