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Informações da coluna
William Helal Filho
Jornalista formado pela PUC-Rio em 2001. Entrou na Editora Globo pelo programa de estágio, foi repórter e editor. Hoje é responsável pelo Acervo.
'Homem-pipa': O voo que inaugurou a asa-delta no Brasil, há 50 anos
Como francês Stephan Dunoyer de Segonzac deu pontapé inicial do esporte no país ao decolar dos pés do Cristo Redentor, em setembro de 1974
RESUMO
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GERADO EM: 09/09/2024 - 06:00
"50 anos do voo de asa-delta no Brasil"
Há 50 anos, o francês Stephan Dunoyer de Segonzac fez o primeiro voo de asa-delta no Brasil, decolando do Cristo Redentor. O esporte se consolidou no país, com milhares de atletas e regulamentações. A Pedra Bonita em São Conrado se tornou um ponto icônico para voar, marcando o início de uma paixão que perdura até hoje.
As dezenas de pessoas que estavam aos pés do Cristo Redentor para ver o Rio do alto do Morro do Corcovado arregalaram os olhos quando aquele gringo cabeludo montou uma “pipa gigante” com as cores da bandeira da França e começou a procurar um lugar para decolar. O vento forte de Sudoeste complicava muito, mas o cidadão tinha o semblante de quem sabia exatamente o que estava fazendo.
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O estrangeiro misterioso era o francês Stephan Dunoyer de Segonzac, de 29 anos. Na tarde daquela quinta-feira, 12 de setembro de 1974, há 50 anos, ele estava à beira de protagonizar a primeira exibição, no Brasil, de um voo usando aquela espécie de planador cujo protótipo fora inventado pelo engenheiro Francis Rogallo, da Nasa, a agência espacial americana, em 1948.
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O esporte, que por aqui receberia o nome de asa-delta e se tornaria uma parte da identidade carioca, já era conhecido na Europa. O próprio Stephan era adepto havia dois anos e tinha no currículo um voo de 40 quilômetros em 12 horas a partir dos Alpes Franceses. Mas, no Rio, ninguém nunca tinha ouvido falar. Portanto, naquela quinta-feira, todos os olhares no Corcovado miravam o europeu.
O público achava que o “homem-pipa” cairia estatelado. Uma turista portuguesa furou o cerco de fotógrafos e cinegrafistas e perguntou: “Você é tão jovem, tão bonito, por que se arrisca assim?”. Segundo a reportagem do GLOBO no dia seguinte, ele apenas sorriu e desconversou, falando em português com sotaque carregado: “O segredo para manter a pipa no alto está na maneira de decolar”.
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"A única adversidade é vento, caso sopre muito forte ou na direção contrária ao local escolhido para descer. Mas se a partida for perfeita, essa dificuldade também desaparece", explicou.
Minutos depois, posicionado num barranco atrás da estátua do filho de Deus, Stephan deu passos ligeiros e calculados num espaço curto e se lançou ao céu, a mais de 650 metros do nível do mar. A decolagem perfeita ganhou aplausos. Um PM que tentava organizar a multidão perdeu o capacete, que caiu lá embaixo quando ele debruçou na murada para espiar. “Fantástico”, disse o policial.
Foi um voo de seis minutos e meio, que terminou com um pouso suave na pista de grama do Jockey Club da Gávea. Lá embaixo, a repórter Glória Maria, da TV Globo, que cobriu toda a empreitada para o “Jornal Nacional”, pediu para Stephan descrever o que ele sentia quando estava voando. Mais uma vez, o simpático gringo sorriu e disse: “Não se pode dizer. É coisa de pássaro. Pássaro não fala”.
O voo livre, meio século depois
Passados 50 anos, o voo livre se tornou um esporte consolidado no país, com campeonatos estaduais, nacionais e mundiais. A Confederação Brasileira de Voo Livre (CBVL) tem cerca de 5 mil atletas cadastrados. Há entidades com pilotos credenciados que oferecem cursos e voos duplos em várias cidades. A pista de decolagem da Pedra Bonita, em São Conrado, tem uma estrutura de alto nível, cheia de regras de segurança e aparelhos meteorológicos, para praticantes de asa-delta e parapente. O voo até a Praia do Pepino virou um passeio turístico imperdível no cardápio da Cidade Maravilhosa.
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No Senado Federal, tramita um projeto de lei que regulamenta a profissão de instrutor de voo livre e piloto de voo duplo turístico de aventura. Outra proposta confere ao Rio título de Capital Nacional do Voo Livre. Ambos os projetos já foram aprovados na Comissão de Esporte da Casa.
Mas tudo isso começou naquela quinta-feira em 1974. O francês Stephan Dunoyer de Segonzac já tinha feito voos em São Conrado. Chegou a ser flagrado pelo então estudante de Arquitetura José Roberto Rodrigues. O universitário estava com namorada na Pedra da Gávea, filmando a paisagem com uma câmera Super-8, quando foi surpreendido pelo “homem-pipa” cruzando o céu (veja o vídeo daquele momento no fim do post).
Os voos iniciais serviram de ensaio para a decolagem do Corcovado. Stephan, que morreria em 2012, aos 68 anos, em Paris, queria muito promover a prática da asa delta no Brasil. O plano dele era ministrar cursos do esporte no Rio. Em busca de exposição, ele foi à TV Globo para convencer a jornalista Glória Maria de que, sim, era possível sobrevoar a capital fluminense como uma gaivota.
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— Aquele dia de 1974 significou o nascimento de um esporte no Brasil, aos pés do Cristo Redentor. Os brasileiros assistiram perplexos à reportagem da Glória Maria, e muita gente ficou interessada em voar como Stephan. Havia um sonho de liberdade na juventude da época — explica o diretor institucional da Confederação Brasileira de Voo Livre (CBVL), José Carlos Srour de Mello, piloto há cerca de 40 anos.
O mais animado pupilo do francês era o empresário carioca Luiz Cláudio Mattos, dono de uma pista de kart, que recebeu Stephan no Rio. Hoje, para se tornar piloto, há um trâmite rigoroso a se cumprir que pode levar meses, com provas teóricas e um mínimo de 50 horas de voo comprovados. Mas, em 1974, após algumas instruções orais, Mattos decolou sozinho e sem capacete da Pedra da Agulinha, em São Conrado, e voou até o Gávea Golf Club, ali perto. Foi uma paixão instantânea. Ele se tornou o primeiro piloto brasileiro e o criador da primeira asa delta no país.
— Depois do voo no Cristo, as pessoas começaram a explorar São Conrado em busca de locais ideais para decolar. Começou com a Rampa das Margaridas — conta José Carlos. — Depois, descobrimos a Pedra Bonita, mais alta, em um acesso para uma casa que seria construída pelo arquiteto Sérgio Bernardes. Como a obra estava embargada, começamos a usar o local como pista de decolagem. E lá estamos até hoje.
A Pedra Bonita serviria de berçário para grandes atletas do parapente e da asa-delta. Pedro Lopes, o Pepê, único brasileiro campeão mundial, em 1981, que morreu tragicamente em um torneio no Japão, dez anos mais tarde, era cria de lá. Na semana passada, o Clube São Conrado de Voo Livre celebrou os 50 anos do esporte no Brasil em sua sede, em frente à Praça do Pepê, ao lado da pista de pouso, na Praia do Pepino, onde o piloto tinha um quiosque.
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