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O passado com um pé no presente.

Informações da coluna

William Helal Filho

Jornalista formado pela PUC-Rio em 2001. Entrou na Editora Globo pelo programa de estágio, foi repórter e editor. Hoje é responsável pelo Acervo.

Por William Helal Filho


Isabel em Ipanema, com o Morro Dois Irmãos ao fundo, em 2012 — Foto: Leo Aversa/Agência O GLOBO
Isabel em Ipanema, com o Morro Dois Irmãos ao fundo, em 2012 — Foto: Leo Aversa/Agência O GLOBO

Maria Isabel Salgado tinha 11 anos quando começou a jogar vôlei na escolinha do Colégio Notre Dame, no Rio. Não demorou até se destacar e entrar para o Flamengo, clube onde se tornou uma estrela das quadras, com passagens brilhantes pela seleção brasileira e temporadas no exterior. Mas não foram exatamente os treinos em ginásios fechados que plantaram na atleta o amor pelo esporte. Foi, muito antes disso, a arrebentação do mar na Praia de Ipanema, no colo de seu pai, Antonio, quando ela ainda era uma criança e nem imaginava que seria uma gigante do vôlei.

"Meu pai foi minha primeira relação com a adrenalina que me prendeu ao vôlei, aquele barato de estar sob pressão. Mas não foi através do vôlei em si: é que papai levava a gente, eu e minhas irmãs, à praia, cedinho, e eu via naquele marzão sempre uma puta ressaca que na verdade não existia. Era o mundo que era maior", disse Isabel numa entrevista ao GLOBO em abril de 2012, aos 51 anos. "Ele levava uma de cada vez e mergulhava com a gente no colo. Gritava: 'Agora!', para ensinar as filhas a se virarem na arrebentação. Eu esperava minha vez com o maior medo e a maior alegria, e, quando chegava, era a grande aventura da vida. Agora, posso dizer, com certeza, foi por causa dele que eu joguei vôlei".

O Brasil a conhecia como a Isabel do vôlei, mas ela também era a Isabel do Rio. Nascida em uma família de classe média sem relação com esportes em geral, num tempo em que meninas da Zona Sul faziam balé ou, no máximo, natação, ela furou a própria bolha. Enquanto as irmãs liam Proust e Baudelaire, a terceira filha de Marília e Antonio surrava joelheiras, uma atrás da outra, vendo a mãe torcer o bico para dizer: "Isabel joga bola". Longe de se incomodar com o desdém, a garota achava graça do pouco caso. Até porque sua vida não se limitava ao vôlei. Adorava estar no Flamengo, onde convivia com gente de diversas origens. Mas, após o treino, partia para outros rolês.

"Minha farra era outra. Era o Posto 9 de Ipanema, o teatro do Asdrubal Trouxe o Trombone no Arpoador, o desbunde", relembrou ela na entrevista de 2012.

Isabel Salgado com os filhos Pilar, Pedro, Carol e Maria Clara, em 1989 — Foto: Lúcio Marreiro/Agência O GLOBO
Isabel Salgado com os filhos Pilar, Pedro, Carol e Maria Clara, em 1989 — Foto: Lúcio Marreiro/Agência O GLOBO

As meninas da casa estudavam nas boas escolas particulares, mas ninguém ali tinha perspectiva de virar madame. Era pra meter a cara nos livros, fazer faculdade, arrumar emprego e ganha-pão. Só que, nos anos 1970, o vôlei ainda era um esporte incipiente no Brasil. A adolecente Isabel repetia a suas irmãs que elas deviam estudar muito para sustentá-la quando fossem adultas. Mal sabia que o jogo estava preste a virar. No início da década seguinte, o vôlei experimentou um intenso crescimento no país, com vários atletas se destacando em torneios mundiais, a profissionalização dos campeonatos nacionais e o investimento de empresas de grande porte em equipes.

Dona de talento e muita técnica, Isabel não perdeu nenhuma chance. Foi bicampeã brasileira pelo Flamengo (1978 e 1980), conquistou títulos por outras equipes do país, integrou a seleção em duas Olimpíadas (Moscou, em 1980, e Los Angeles, em 1984) e jogou temporadas na Itália e no Japão. Uma matéria do GLOBO de 1982 conta como a atleta, aos 22 anos, era o tempo todo abordada por fãs e como seu telefone saltitava com propostas de comerciais, muitas dos quais ela aceitava, e convites para posar nua, que ela sempre recusava. Tudo isso sem uma gota de deslumbramento. "Sei como é estar por baixo, me acostumei com sobe e desce. Coisa típica do Brasil, essa criação de mitos".

Estar sempre cercada de crianças ajudava a manter a cabeça no que importa. A ascensão de Isabel aconteceu basicamente ao mesmo tempo em que ela engravidava e criava quatro de seus filhos, disputando jogos importantes com barrigas de mais de três meses de gestação ou interrompendo treinos para amamentar. Pilar, Maria Clara, Pedro e Carol nasceram justamente nesse período, entre 1978 e 1987 (em 2015, a já então ex-atleta completaria o seu quinteto ao adotar Anderson, de 13 anos). Fácil, não foi nem um pouco. Em novembro de 1988, a atleta contou ao jornal como funcionava a dinâmica de morar com as crianças no Rio defendendo o Sadia, em São Paulo.

Isabel dá autógrafos durante Campeonato Sul-Americano em Curitiba, 1989 — Foto: Marcelo Régua/Agência O GLOBO
Isabel dá autógrafos durante Campeonato Sul-Americano em Curitiba, 1989 — Foto: Marcelo Régua/Agência O GLOBO

"Não sou a única frequentadora da ponte aérea, outras pessoas fazem isso até com mais intensidade do que eu e continuam vivendo", disse a jogadora, demonstrando, como sempre, os pés bem fincados no chão. "Mas é uma barra, principalmente com as crianças na escola. No começo da temporada, eu só vinha para o Rio nos fins de semana, mas não dava pra aguentar de saudade. Aí, passei a pegar o avião logo depois do treino, para pelo menos passar a noite em casa. No dia seguinte, cedinho, lá ia eu de novo para o aeroporto. Na semana das finais do campeonato, quando os treinos aumentaram, não teve jeito. Levei todo mundo pra São Paulo, inclusive as babás".

Em certos momentos, Isabel foi mal interpretada por insistir numa vida pessoal. Teve até fama de atleta indisciplinada. Em 1989, o técnico Marco Aurélio Motta foi ao ponto de se demitir da seleção por não aguentar a pressão para convocá-la. Para ele, a atleta de 29 anos tinha "uma postura que eu até respeito, mas que se choca com o que considero ideal para a formação de outras jogadoras", disse Motta, segundo uma matéria da época. De acordo com ele, as pessoas se encantavam com as fotos da jogadora treinando grávida, mas aquilo era apenas pose. "A Isabel que conheço não gosta de treino", afirmou o técnico, que teria outra passagem conturbada pela seleção feminina, de 2001 a 2003.

A atleta, por sua vez, mostrou espanto ao saber da demissão. "Estão querendo me transformar em bode expiatório. Desde que cheguei no Brasil, a única coisa que fiz foi treinar e jogar", disse ela, que vinha de uma excelente temporada atuando pelo Sadia, antecedida por um período no exterior. "Não tenho culpa se a Sadia foi campeão brasileira, paulista e sul-americana. Se o Marco Aurélio pediu demissão por minha causa, é melhor repensar. Até porque eu não poderia aceitar uma convocação. Não estou nem pensando em seleção. Eles fecharam essa porta pra mim no ano passado", afirmou, ainda ressentida por não ter sido chamada para as Olimpíadas de Seul, em 1988.

Isabel com a amiga e então parceira, Jackie Silva, em 1992 — Foto: Ricardo Mello/Agência O GLOBO
Isabel com a amiga e então parceira, Jackie Silva, em 1992 — Foto: Ricardo Mello/Agência O GLOBO

Na década de 1990, Isabel regressou ao habitat natural, tornando-se pioneira do vôlei de praia. Formou dupla com Jackie Silva, amiga dos tempos de Notre Dame, e venceu torneios importantes como o Mundial de Miami. Em 1999, quando voltou às quadras para comandar o vôlei feminino do Flamengo, foi a primeira técnica à frente de uma equipe de alto nível no Brasil. Mas seu destino estava escrito de forma indelével nas areias de Ipanema. Em 2001, começou a treinar a filha Maria Clara e, mais tarde, Carol. Seu filho Pedro também se tornou um craque no vôlei de praia. Os treinos da família eram um elemento quase onírico naquele trecho da orla carioca, ali na altura da Rua Garcia D'Ávila.

Além de talento e determinação para o esporte, a prole de Isabel herdou dela o amor pelo Rio e o zelo por certos valores de coletividade. Nas redes sociais das "crianças", há um histórico recente de defesa da democracia e da vacinação, além de pedidos de ajuda a populações afetadas por tragédias naturais. Em setembro de 2020, diante do que já era considerada uma péssima gestão da pandemia de Covid-19, Carol Solberg mandou um "Fora Bolsonaro!" durante entrevista após uma etapa do Campeonato Brasileiro. Foi denunciada por "prejudicar a imagem" da Confederação Brasileira de Vôleibol (CBV) e de seus patrocinadores. Chegou a ser multada, mas depois foi absolvida.

"A manifestação da Carol foi lícita e legítima numa entrevista. Eu estranharia se fosse diferente. Envergonharia se ela estivesse berrando a favor de um torturador. Ou se fosse homofóbica ou racista. Eu me orgulho dos meus filhos. Do caráter deles. Estranho a indiferença das pessoas diante do que está acontecendo no Brasil. Na nossa cara", disse Isabel, que naquele ano liderava o movimento Esporte Pela Democracia, então recém-criado. "Não dá para achar graça na vida quando o Pantanal e a Amazônia estão queimando. Acho que alguns atletas gostariam de se manifestar mas existe toda uma repressão, uma estrutura que veta a participação".

Até dias atrás, Isabel ainda podia ser vista na praia, caminhando de biquíni na direção do Arpoador. Pra quem reparava nas passadas curtas, mas firmes, que deixavam pegadas fundas na areia fofa, a notícia de sua morte foi difícil de processar. "A coisa mais certa sempre foi Isabel na praia. Mesmo quando eu não ia, tinha na cabeça e no coração que ela já estava lá desde cedinho cuidando do mar", escreveu a amiga Regina Casé nas redes sociais. "E assim vai ser pra sempre, quando caminhar por Ipanema vou sentir sua presença ali, e quando eu não for, vou fechar os olhos e ver aquela gata gigante e absoluta cuidando pra que não desapareça de vez esse Rio que a gente sempre amou tanto".

Isabel com os filhos Carol, Pedro e Maria Clara, em 2008 — Foto: Marcelo Franco/Agência O GLOBO
Isabel com os filhos Carol, Pedro e Maria Clara, em 2008 — Foto: Marcelo Franco/Agência O GLOBO
Isabel Salgado, ídola do vôlei brasileiro, aos 30 anos, em 1990 — Foto: Sérgio Lima/Agência O GLOBO
Isabel Salgado, ídola do vôlei brasileiro, aos 30 anos, em 1990 — Foto: Sérgio Lima/Agência O GLOBO
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