A Hora da Ciência
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Médicos e cientistas abordam diferentes aspectos da saúde.

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GERADO EM: 13/12/2024 - 19:58

Riscos da "vida espelhada": debate e regulação essenciais

Cientistas alertam sobre perigos da criação de "vida espelhada", organismos com moléculas invertidas. Enquanto há preocupações com possíveis riscos, a probabilidade de sucesso é mínima. O debate sobre a interdição da pesquisa é válido, porém, é essencial avaliar e regular em vez de proibir para não limitar descobertas importantes e avanços benéficos.

Deu na Science, uma das mais importantes revistas científicas do mundo, no New York Times, e no Guardian, um dos principais jornais da Inglaterra: vários cientistas, incluindo alguns ganhadores do Prêmio Nobel, pedem a proibição total das pesquisas para a criação de “vida espelhada”. Mas o que é isso? E faz sentido tamanha preocupação?

Para entender o alarde, vamos começar com o conceito de moléculas espelhadas. As moléculas de que são feitos os seres vivos – aminoácidos, açúcares e ácidos nucleicos – são quirais. O termo “quiral” vem da raiz grega para “mão”, que aparece também, por exemplo, em “quiromancia”. Em química, uma molécula é chamada “quiral” quando existe em duas versões que têm os mesmos componentes, mas arrumados de modo que lembra um par de luvas: todos os dedos estão lá em cada uma delas, mas a luva esquerda não serve na mão direita, e vice-versa.

Embora as moléculas quirais possam existir tanto na forma “destra” quanto na “canhota”, os seres vivos são mais exigentes: de vírus a baleias, ácidos nucleicos, como DNA e RNA são sempre “destros”, e proteínas, “canhotas”. Cientistas têm feito experimentos há tempos com moléculas espelhadas (DNA “canhoto”, proteína “destra”), com sucesso, e com possíveis aplicações em medicina. Pedaços espelhados de proteína já foram aprovados para uso em medicamentos. A vantagem destas moléculas é que como não encaixam muito bem – como luvas nas mãos erradas – nas proteínas humanas que normalmente as degradam, podem ajudar remédios a durar mais tempo no corpo.

Este é exatamente o mesmo motivo que levou o grupo de cientistas a dar o alarme para possíveis riscos de um organismo inteiro quiralizado, com ácidos nucleicos e proteínas invertidos, a versão “reflexo no espelho” de um ser vivo, como uma bactéria. Segundo os autores, se uma bactéria assim fosse criada em laboratório, ela seria invisível para o sistema imune, e invulnerável aos predadores naturais. Organismos espelhados seriam, portanto, impossíveis de deter, caso começassem a se espalhar.

O apelo para a precaução é válido, assim como o debate. Mas há que se considerar também a probabilidade de sucesso de um organismo assim. Os autores do alerta pressupõem que seria possível e viável produzir uma bactéria espelhada, que seria capaz de se replicar e sobreviver em um mundo feito com moléculas, em princípio, incompatíveis. Se formos examinar cada etapa necessária, vemos que a probabilidade disso acontecer é mínima. Ninguém ainda conseguiu construir uma bactéria sintética completa, do zero, usando as moléculas certas – quanto mais, invertidas. Já existem laboratórios capazes de produzir proteínas espelhadas e fragmentos espelhados de DNA e RNA. Mas ir disso para um organismo funcional é um salto grande.

Supondo que o organismo espelhado seja construído, ele estaria em um laboratório de segurança máxima. Então, o segundo passo para o desastre seria escapar. Considerando que isso também aconteça, a bactéria-espelho teria de sobreviver em um ambiente em que os nutrientes são inadequados, porque, do ponto de vista dela, tudo está invertido: se ela for invulnerável ao mundo, é altamente provável que o mundo seja preponderantemente invulnerável a ela. Outro fator a considerar é que ela teria que competir por espaço e nutrientes com organismos já bem adaptados.

A pergunta científica sobre por que a vida na Terra tem a quiralidade que tem é legitima, e a interdição da pesquisa com vida quiral pode impedir que seja respondida. Possíveis aplicações de moléculas quirais para biotecnologia e medicina também podem sofrer. É preciso ter cuidado ao defender o veto de pesquisas em ciência, sob o risco de censurar perguntas importantes e tecnologias benéficas. Avaliar e regulamentar parece mais sensato do que proibir.

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