Em cobertura de guerra, o tempo não é o único inimigo do repórter. Foi o que aprendeu Silio Boccanera em seus mais de 40 anos como correspondente internacional. Da imprensa escrita à televisão, o jornalista testemunhou eventos que marcaram a história do mundo, como as guerrilhas na América Central, nos anos 1970, guerras no Líbano e do Golfo, a queda do Muro de Berlim, e o processo turbulento de dissolução da União Soviética. Para ele, guiar-se pelo medo garante o sucesso do jornalista nessas áreas de conflito: “medo é o que te orienta, dá uma base até onde podemos ir”.
Em 2002, Boccanera tornou-se comentarista fixo da GloboNews, com base em Londres. Para o canal de televisão por assinatura, participa semanalmente de programas como o Milênio e o Sem Fronteiras, onde tem a oportunidade de analisar a situação política e econômica mundial. Além disso, ele participa de coberturas especiais, como os atentados terroristas em Londres (2005), eleição de Barack Obama (2008), e eleição de Donald Trump (2016).
“Em todas as guerras que fiz, vi sinais de uma busca de normalidade, das pessoas saírem e procurarem momentos de calma, como quem diz que apesar de tudo o que acontece, a nossa vida precisa continuar.”
INÍCIO
Silio Boccanera estudou Economia na Universidade Federal do Rio de Janeiro, mas no meio do curso mudou de ideia e pediu transferência para a faculdade de Jornalismo na mesma universidade. Seguiu para os Estados Unidos depois de formado e fez mestrado na Universidade do Sul da Califórnia. Já tinha começado a carreira em 1970 no Jornal do Brasil, primeiro no Departamento de Pesquisa, passando pelo caderno de cultura – o Caderno B – e, depois, na editoria Internacional.
Como correspondente do JB nos Estados Unidos, era responsável pelas notícias da costa oeste do país e também da América Central, que vivia naqueles últimos anos da década de 1970 um período de turbulência, com revoluções, guerrilhas e conflitos. Para ele, este foi o período mais tenso de trabalho como jornalista:
“Era uma guerra civil muito violenta. A guerrilha é mais intensa do que uma guerra tradicional que você espera o horário do bombardeio. Têm gente escondida atrás das moitas, não sabemos de onde vem o perigo.” A cobertura sobre a luta dos guerrilheiros sandinistas que tomaram o poder rendeu um livro-reportagem, publicado em 1979: “A Revolução da Nicarágua”.
O ano de 1982 marcou três mudanças radicais em sua carreira: trocou de empresa, passou do jornal impresso para a televisão e foi para o outro lado do Atlântico. Começou a temporada na Globo em meio ao caos: estourava a Guerra das Malvinas e ele era o único correspondente em Londres. Mal conseguiu se adaptar ao vídeo.
“O plano, no início, era ter uma fase de adaptação, mas eu desembarquei em 2 de abril de 1982, dia exato em que os argentinos invadiram as Ilhas Malvinas. Os colegas estavam viajando a trabalho. Eu até telefonei para o escritório para dizer: ‘Cheguei. Apareço aí semana que vem para adaptação, treinamento em televisão…’ Nada disso! Tive que correr para lá.”
O ESCRITÓRIO EM LONDRES
Alguns dos companheiros desse início de carreira no escritório de Londres foram Roberto Feith, que era o chefe da sucursal, Ricardo Pereira, Luís Fernando Silva Pinto e Beth Lima. Entre os repórteres-cinematográficos, Silio se lembra com carinho de Luiz Demétrio Furkim, Sergio Gilz e Paulo Pimentel. Eles o ensinaram muito sobre se portar diante da câmera.
O telejornalismo da década de 1980 foi marcado por uma valorização das notícias internacionais. Silio conta que com muita frequência o 'Jornal Nacional' incluía uma matéria produzida pelo escritório de Londres, resultado das limitações impostas ao noticiário nacional pela censura do governo militar brasileiro.
“Cobríamos quase tudo o que acontecia em nossa área. Não parávamos na base. O movimento de viagens era intenso: qualquer acontecimento mais ou menos de peso nós cobríamos, não importa em que país fosse, dentro da nossa jurisdição, que alcançava Europa, Oriente, África. Tudo que não fosse nas Américas era nosso”.
Algumas dessas viagens levaram Silio, logo em seu primeiro ano de Globo, para o centro de importantes conflitos, como a guerra do Líbano. Beirute foi seu destino inúmeras vezes.
Reportagem de Silio Boccanera com imagens de José Wilson da Mata na fronteira entre Israel e Líbano. Jornal Nacional, 12/06/1982.
“Em junho de 1982, houve a invasão do Líbano por Israel e nós tivemos que sair correndo para lá e ainda chegamos a tempo de entrar no país com os invasores, acompanhamos a movimentação de tanques”.
Reportagem de Silio Boccanera com imagens de José Wilson da Mata sobre a busca por diversão pela população civil de Beirute durante o cessar-fogo com Israel. Fantástico, 15/08/1982.
Quando chegou a Beirute, após inúmeras tentativas, Silio se lembra que a capital estava sitiada. Mas, por incrível que parecesse, as pessoas comuns tentavam manter uma rotina em meio ao caos, entre o horário dos bombardeios aéreos.
Reportagem de Silio Boccanera com imagens de José Wilson da Mata sobre o acordo de paz firmado entre Israel e Líbano. Jornal Nacional, 19/08/1982.
“A manhã era relativamente calma, depois do almoço, era um combate ferrenho. Você acompanhava e seguia os horários tentando, na medida do possível, não se tornar alvo. Em todas as guerras que fiz, vi sinais dessa busca de normalidade, das pessoas saírem e procurarem momentos de calma, como quem diz: ‘Olha, apesar de tudo o que acontece, a nossa vida precisa continuar’.”
Reportagem de Silio Boccanera com imagens de José Wilson da Mata sobre a cidade de Beirute, sitiada pela guerra com Israel. Fantástico, 20/06/1982.
E, para isso, ele contava com o bom e velho método: quando a situação parecia muito arriscada, era hora de recuar. E é isso que ele, hoje, gosta de ensinar para os repórteres mais jovens: sempre temer.
GUERRA DOS ANOS 1990
Reportagem de Silio Boccanera e Sergio Gilz sobre um acampamento de refugiados próximo à fronteira do Iraque durante a Guerra do Golfo. Jornal Nacional, 03/09/1990.
O correspondente também cobriu a Guerra do Golfo, em 1991 e a dos Bálcãs, que se prolongou durante anos, atingindo principalmente Eslovênia, Croácia e a Bósnia. Na Eslovênia, em 1991, ele e o cinegrafista Luiz Demétrio Furkim viveram momentos de extrema tensão. Nas estradas ao sul da Eslovênia, ficaram no meio do fogo cruzado, mas conseguiram captar imagens impressionantes dos ataques da Força Aérea iugoslava sobre os rebeldes eslovenos.
“Nós estávamos próximos a uma área onde também o silêncio estava desagradável, mas tinha havido movimento de tanques por ali. E de repente veio um tiroteio para cima da gente, exatamente na hora em que a gente tinha armado a câmera. Eu peguei o microfone e, no que eu ia começar a falar, veio o tiroteio. Todos nós nos jogamos no chão, mas a câmera continuou ligada”
O repórter Silio Boccanera acompanha o “voo da liberdade”, entre Bagdá e Brasília, que trouxe de volta os os operários brasileiros da Mendes Junior que estavam retidos no Iraque, Jornal Nacional, 04/10/1990.
Reportagem de Silio Boccanera e Sergio Gilz sobre a retirada de funcionários da Mendes Júnior do Iraque. Jornal Nacional, 03/10/1990.
Silio Boccanera fala, ao vivo, da Jordânia, sobre o início do bombardeio americano a Bagdá durante a Guerra do Golfo. Jornal Nacional, 17/01/1991.
Na Eslovênia, Silio reviveu situação de tensão tal como na América Central. Em comum, os dois conflitos tinham o silêncio.
Reportagem de Silio Boccanera sobre o sequestro de 2.000 civis kuaitianos e 21 jornalistas estrangeiros detidos pelo exército iraquiano, entre eles William Waack e Hélio Campos Melo. Jornal Nacional, 07/03/1991.
Reportagem de Silio Boccanera com imagens de Luis Demétrio Furkin sobre o temor da Jordânia quanto a haver uma guerra entre o país e Israel. Fantástico, 13/01/1991.
“Uma das coisas mais tensas numa área de conflito é o silêncio. Posso me lembrar de uma ou duas ocasiões em estar em um determinado ponto e não ouvir barulho nenhum. Eu pensaria exatamente ao contrário, você está ouvindo bombardeio, tiro, não sei que, você está apavorado porque você está perto, mas pior é você não ouvir nada e você saber que tem coisa na área. E se está ali, e se está aqui atrás para onde é que eu vou?”
Reportagem de Silio Boccanera com imagens de Luis Demétrio Furkin sobre bombardeios dos aliados a Bagdá e o temor dos civis quanto a uma possível guerra biológica. Jornal Nacional, 21/01/1991.
DE CIMA DO MURO
No fim de 1989, Silio Boccanera teve um papel de destaque na cobertura da queda do Muro de Berlim. Ele e o repórter cinematográfico Paulo Pimentel registraram imagens, sons e depoimentos do momento em que, a marretadas, a população de Berlim destruía o símbolo da divisão entre a Europa ocidental e a Europa oriental – que representavam dois sistemas de governo. Paulo Pimentel sugeriu que Silio subisse no Muro para a gravação, e ele assim o fez.
Reportagem Silio Boccanera e Paulo Pimentel sobre as comemorações junto ao Portão de Brandemburgo, após a abertura das fronteiras entre as Alemanhas, Jornal Nacional, 10/11/1989.
Enquanto o Muro de Berlim era atingido, Silio narrava, cercado por uma multidão eufórica, um dos principais acontecimentos do século XX. Os telespectadores brasileiros que assistiram ao 'Jornal Nacional' naquele dia, 9 de novembro de 1989, viram Silio, de microfone na mão e em pé em cima do Muro, narrar assim aquele momento:
Reportagem de Silio Boccanera sobre a invasão de Berlim pelos soviéticos, às vésperas dos 40 anos do fim da 2ª Guerra Mundial, Jornal da Globo, 03/05/1985.
“Poucas vezes é possível testemunhar um acontecimento e ter certeza que a história com H maiúsculo está sendo escrita diante de seus próprios olhos. Este, certamente, é um desses momentos. Em ritmo de batucada, de alegria, as pessoas estão aqui comemorando a abertura do Muro de Berlim”
Reportagem de Silio Boccanera e imagens de Paulo Pimentel, que fizeram com a família Kuling a travessia da Alemanha Oriental para a Ocidental pela primeira vez. Globo Repórter, 17/11/1989.
Silio e Paulo ficaram 15 dias na região, produzindo reportagens para os telejornais da Globo e também um 'Globo Repórter'. Os dois tiveram a sorte de voltar a Berlim juntos, 20 anos depois, para uma série sobre as mudanças na Alemanha unida e sem comunismo.
Reportagem de Silio Boccanera e imagens de Paulo Pimentel no especial da GloboNews “Queda do Muro de Berlim – 20 Anos”, primeiro programa. Sem Fronteiras, 05/11/2009.
Como, nas palavras dele, um correspondente internacional é obrigado a cobrir um pouco de tudo, Silio Boccanera também tem em seu currículo matérias mais leves: o primeiro título de Ayrton Senna, ainda na Fórmula 3 (1983), e reportagens sobre comportamento ou ciência.
SAÍDA DA GLOBO
Em 1995, Silio saiu da Globo e teve uma curta passagem pelo departamento de jornalismo do SBT. Depois disso, foi para a TV a cabo, começando no GNT e indo em seguida para a GloboNews, onde ficou de 2002 até o seu desligamento da Globo, em 2019.
No canal de notícias, ele participou dos programas semanais 'Sem Fronteiras' e 'Milênio', onde teve a oportunidade de entrevistar personalidades da comunidade internacional. Algumas entrevistas de destaque que produziu foram com o historiador Eric Hobsbawm, o cientista Richard Dawkins, o escritor Salman Rushdie e o sociólogo Zygmunt Bauman. Silio Boccanera também discutia no 'Sem Fronteiras' temas da atualidade, como os três programas que foram ao ar em 2014 sobre a crise da Criméia, disputa envolvendo a Ucrânia e a Rússia e que mobilizava líderes das principais potências na época.
Nos seus últimos anos no canal, apesar de ter como atividade principal os programas mais analíticos na GloboNews, Silio participou também de algumas coberturas importantes pelo canal. Em 2005, acompanhou os atentados terroristas em Londres, que levaram à morte do brasileiro Jean Charles. Por um pedido da Globo, ele também cobriu para a televisão aberta nos primeiros momentos.
Reportagem de Silio Boccanera e Sergio Gilz com a informação de que o homem morto no metrô de Londres era o brasileiro Jean Charles de Menezes. Jornal Nacional, 23/07/2005.
Durante as eleições norte-americanas em 2008, o jornalista foi deslocado da Europa para os Estados Unidos, onde percorreu diversas cidades para retratar a atmosfera que envolvia o eleitorado dos dois principais candidatos: Barack Obama e John McCain.
“Na primeira eleição de Obama, em 2008, tive oportunidade de dar um giro por parte dos Estados Unidos e ver qual era o clima do país, analisando o que poderia o levar àquela vitória. Era o primeiro presidente negro dos Estados Unidos, onde estavam superando uma série de preconceitos que existem numa facção do eleitorado.”
Reportagem de Silio Boccanera na Virgínia, mostrando a corrida presidencial de Barack Obama num estado americano de tradicional segregacionismo. Especial “Virgínia Azul Inclui Jovens Negros”, da GloboNews. Sem Fronteiras, 31/10/2008.
Para isso, viajou à Virgínia, estado conhecidamente republicano, para investigar quem eram os eleitores contrários à vitória do democrata.
Em 2011, registrou os distúrbios organizados por jovens nos subúrbios de Londres, insatisfeitos com suas condições de vida. Ele contribui ainda ocasionalmente para outros programas da GloboNews, desde o 'Starte', que tratava de arte, a um segmento do 'Jornal das Dez' chamado 'Olhar', com uma interpretação pessoal de aspectos da cidade onde morava havia quase 30 anos: Londres. Cinco anos depois, voltou aos Estados Unidos para acompanhar as eleições que deram vitória ao republicano Donald Trump.
ESCRITA DE FICÇÃO
Sua segunda incursão no mundo dos livros gerou "Jogo Duplo", publicado pela Editora Moderna em 1997, com um enredo de ficção inspirado em sua experiência na vida real. Por meio de uma história envolvendo terrorismo, sequestro e reportagem, Silio levanta questões sobre a qualidade do jornalismo.
“Eu acho que o critério que deve prevalecer na área de jornalismo é o valor jornalístico do que você está fazendo e não o índice de audiência que aquilo vai render.”
O livro cria como situação fictícia: a explosão da Ponte Rio-Niterói num ataque terrorista. Alguns críticos disseram na época que era um exagero, pouco verossímil. Isso foi cinco anos antes dos ataques de 11 de Setembro de 2001 nos Estados Unidos. A realidade foi mais longe que a imaginação.
GALERIA DE VÍDEOS
Reportagem de Silio Boccanera sobre a reação do Papa João Paulo II e a repercussão da explosão do ônibus espacial Challenger pelo mundo, Jornal Nacional, 29/01/1986.
Luís Fernando Silva Pinto e Silio Boccanera comentaram a repercussão do Plano Cruzado nos Estados Unidos e na Europa, Jornal Nacional, 28/02/1986.
Reportagem de Silio Boccanera sobre a tentativa do embaixador Paulo Tarso de Lima de retirar os brasileiros do Iraque, Jornal da Globo, 21/09/1990.
Reportagem de Silio Boccanera sobre os ataques da Força Aérea iugoslava sobre os rebeldes eslovenos. Jornal Nacional, 02/07/1991.
Reportagem de Silio Boccanera sobre a viagem que fez de Belgrado até Pale, cidade próxima a Sarajevo, onde dois soldados brasileiros estavam presos como reféns, junto com outros 400 soldados da ONU. Fantástico, 11/06/1995.
Entrevista de Silio Boccanera com o capitão Harley Alves, libertado após ter sido mantido refém pelos sérvios durante a guerra civil da Iugoslávia, Jornal Nacional, 19/06/1995.
Reportagem de Silio Boccanera e Paulo Pimentel, que fizeram o trajeto Belgrado-Pale (vizinha de Sarajevo) mostrando a história, na versão sérvia, do que que ficou conhecido na região como “limpeza étnica” contra os muçulmanos. Fantástico, 11/06/1995.
Reportagem de Silio Boccanera na Bósnia, aonde famílias muçulmanas foram expulsas de suas casas por tropas sérvias e mulheres daquela religião sofreram estupros coletivos. Jornal Nacional, 27/02/1993.
Durante reportagem de Silio Boccanera e do cinegrafista Luis Demétrio Furkin na Eslovênia, os repórteres se veem em meio a um fogo cruzado. Jornal Nacional, 02/07/1991.
Reportagem de Silio Boccanera com imagens de Luis Demétrio Furkin sobre os conflitos gerados a partir da declaração de independência da Croácia e da Eslovênia. Jornal Nacional, 26/06/1991.
Fonte
Depoimento concedido ao Memória Globo em 05/04/2004 e 10/03/2017. |