Ruth de Souza fez história ao se apresentar no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Foi no dia 8 de maio de 1945, em 'O Imperador Jones', de Eugene O’Neil, numa montagem do Teatro Experimental do Negro, grupo fundado por Abdias Nascimento e Agnaldo Camargo. E seu feito ajudou a abrir caminho para os artistas negros no Brasil.
Na televisão, foi uma das pioneiras. Passou pela TV Tupi, pela Record, TV Excelsior e, em 1968, Ruth de Souza foi contratada pela Globo para atuar na novela 'Passo dos Ventos', onde interpretou a mãe de santo Tuiá, uma mulher sábia cujos antepassados eram escravos, no Haiti. Logo depois, deu vida à Tia Cloé, uma escrava que liderou a luta pela liberdade nos Estados Unidos da Guerra de Secessão. Foram mais de 40 papéis na emissora, em cinco décadas de trabalho.
EXCLUSIVO MEMÓRIA GLOBO
Entrevista exclusiva da atriz Ruth de Souza ao Memória Globo, em 09/05/2001, sobre o início da sua carreira.
Entrevista exclusiva da atriz Ruth de Souza ao Memória Globo, em 09/05/2001, sobre sua indicação de melhor atriz com 'Sinhá Moça', no Festival Internacional de Veneza.
Trajetória
Ruth Pinto de Souza, filha de um lavrador e de uma lavadeira, nasceu no Engenho de Dentro, Rio de Janeiro, no dia 12 de maio de 1921. Ainda bebê, foi com a família para o interior de Minas Gerais, onde ficou até os 9 anos, quando o pai faleceu. Ela, a mãe e os dois irmãos voltaram para o Rio. E Ruth já sonhava, desde pequena, em ser atriz.
“Eu era apaixonada por cinema. Queria ser atriz, mas, naquela época, não tinha atores negros, e muita gente ria de mim: ‘Imagina, ela quer ser artista! Não tem artista preto’. Eu ficava meio chateada, mas sabia que ia fazer; como, não sabia”.
Descobriu ao entrar para o Teatro Experimental do Negro, onde, além de 'Imperador Jones', atuou em 'Todos os Filhos de Deus Têm Asas' e 'O Moleque Sonhador', também de O’Neil; 'Anjo Negro', de Nelson Rodrigues; e 'O Filho Pródigo', de Lucio Cardoso. Em 1948, ganhou uma bolsa de estudos da Fundação Rockfeller e foi estudar na Howard University, uma universidade exclusiva para negros, em Washington. Nos Estados Unidos, também frequentou a escola de teatro Karamu House, em Cleveland, Ohio.
Pioneira da TV brasileira
Participou de programas de variedades e musicais no início das transmissões da Tupi, até adaptar para a televisão, com Haroldo Costa, a peça 'O Filho Pródigo', que havia encenado no Teatro Experimental do Negro.
A primeira novela de Ruth de Souza foi 'A Deusa Vencida' (1965), de Ivani Ribeiro, na Excelsior. “Nessa novela todo mundo estava começando também, como a Regina Duarte”.
A atriz foi contratada pela Globo em 1968, para atuar na novela 'Passo dos Ventos', de Janete Clair. Lembrava-se dessa época com carinho: “Era muito agradável, havia muito entusiasmo de todo mundo. Sabe aquela coisa de ‘o que vamos fazer agora?’, querendo continuar o trabalho. O ator nunca quer parar”.
Na emissora, fez mais de 30 novelas. Para ela, um dos lados bons de ser atriz era ser avaliada pelo seu desempenho em um trabalho, porque “se for bom, o público não esquecerá”.
Em 'A Cabana do Pai Tomás' (1969), de Hedy Maia, foi Tia Cloé, uma das líderes do movimento que levou à abolição da escravidão nos Estados Unidos, dividido pela Guerra de Secessão: “Eu fazia a mulher do Pai Tomás. Foi um sucesso muito grande, todo mundo me chamava de Tia Cloé”.
EXCLUSIVO MEMÓRIA GLOBO
Webdoc sobre a novela 'A Cabana do Pai Tomás' com entrevistas exclusivas do Memória Globo.
Webdoc sobre a novela Pigmalião 70 com entrevistas exclusivas do Memória Globo.
Webdoc sobre a novela 'Os Ossos do Barão' com entrevistas exclusivas do Memória Globo.
Webdoc sobre a novela 'O Rebu' – 1ª versão (1974) com entrevistas exclusivas do Memória Globo.
Na década de 1970, Ruth de Souza participou de clássicos da dramaturgia da Globo, como 'Pigmalião 70' (1970), 'Os Ossos do Barão' (1973), 'O Rebu' (1974), 'Helena' (1975) e 'Duas Vidas' (1976).
Em 1977, a atriz fez parte do elenco de 'Sinhazinha Flô', novela ambientada em 1880, época de grande efervescência política, tendo como pano de fundo a luta abolicionista e o movimento pela emancipação da mulher. Em 'Sinal de Alerta' (1978), Ruth de Souza viveu a operária Adelaide. Ela se uniu a Consuelo (Isabel Ribeiro) na luta pelo meio ambiente, contra a fábrica de fertilizantes e inseticidas em que trabalhava. Em 'Sétimo Sentido' (1982) interpretou Jerusa, governanta da residência dos Rivoredo, tendo criado os filhos de Santinha (Eva Todor).
'Sinal de Alerta': Cena em que o operário Rafa (Milton Gonçalves) e Adelaide (Ruth de Souza), protestam contra a fábrica.
'Sétimo Sentido' (1982): Cena em que Santinha (Eva Todor) fica feliz com a volta de Rudy (Carlos Alberto Ricelli). Com Jerusa (Ruth de Souza) e Domingos (Lajar Muzuris).
Parceria com Grande Otelo
Com Grande Otelo, fez uma dupla inesquecível em 'Sinhá Moça' (1986), de Benedito Ruy Barbosa. Ela viveu a escrava Ruth, e Grande Otelo, Justo.
“Do meio para o fim, eu e o Otelo tomamos conta da novela, porque os personagens eram muito divertidos. Eram dois maluquinhos”.
A atriz já havia atuado em uma adaptação de 'Sinhá Moça' para o cinema, em 1953, e por isso conhecia bem o texto. Mas, na novela, cabia o improviso. Apesar de dizer que improvisar não era o seu forte, Ruth de Souza acompanhava o ritmo de Grande Otelo, na sua opinião, “um ator completo, um gênio”.
EXCLUSIVO MEMÓRIA GLOBO
Entrevista exclusiva da atriz Ruth de Souza ao Memória Globo, em 09/05/2001, sobre sua participação na novela 'Sinhá Moça' e sua amizade com Grande Otelo.
Webdoc sobre a novela 'Sinhá Moça' – 1ª versão com entrevistas exclusivas do Memória Globo.
Em 'Mandala' (1987), de Dias Gomes, voltou a atuar com o ator, formando com ele, Milton Gonçalves e Aída Lerner a primeira família negra de classe média da TV brasileira. Já tinha recebido papel de destaque em outra trama de Dias Gomes, 'O Bem-Amado' (1973), quando interpretou Chiquinha, a esposa de Zelão das Asas (Milton Gonçalves). “Eu tenho grande respeito pelo escritor. Escrever não deve ser fácil. Eu não mudo nada, nem em teatro”.
Outros trabalhos de destaque em sua carreira na emissora foram' O Clone', de Gloria Perez; 'Memorial de Maria Moura' (1994), adaptação do romance homônimo de Rachel de Queiroz, escrita por Jorge Furtado e Carlos Gerbase; 'Quem é Você?', novela de Ivani Ribeiro e Solange Castro Neves, em que viveu Isolina, uma ex-pianista, moradora de uma casa de repouso; 'Amazônia – De Galvez a Chico Mendes' (2007), de Gloria Perez; e o seriado 'Na Forma da Lei', como a Velha Oxalá (2010).
EXCLUSIVO MEMÓRIA GLOBO
Webdoc sobre a novela 'O Clone' com entrevistas exclusivas do Memória Globo.
Sua trajetória foi marcada por papéis em novelas de época – gênero da teledramaturgia que achava muito interessante. “Eu adoro fazer novela de época. Exige uma postura diferente, um andar, roupa. Não sou saudosa de passado; é que era realmente muito mais elegante, o espetáculo era mais bonito.”
Cinema
A atriz estreou no cinema por indicação do escritor Jorge Amado em 'Terra Violenta' (1948), adaptação do romance 'Terras do Sem Fim', dirigida por Tom Payne. No mesmo ano, atuou ao lado de Oscarito em 'Falta Alguém no Manicômio'.
Fez mais de 30 filmes, incluindo 'Sinhá Moça', também de Payne, que a levou a concorrer ao prêmio de Melhor Atriz do Festival de Veneza de 1954 – e que considerava o seu “cartão de visita”, porque “no cinema, se é uma boa história, fica para a vida toda”. A atriz esteve também no clássico 'O Assalto ao Trem Pagador' (1962), de Roberto Farias; e 'As Filhas do Vento', de Joel Zito Araujo, com o qual foi premiada no Festival de Gramado de 2004.
Sua admiração pelo cinema vinha também do fato de conceder mais espaço, em sua opinião, a atores negros. Para Ruth de Souza, o preconceito sempre foi uma realidade com a qual precisou lidar.
“O cinema sempre deu mais oportunidade para o negro, desde o Grande Otelo. Eu tive sorte na continuidade de trabalho, tanto no teatro quanto na televisão: nunca parei nesses 50 anos. Sempre tive trabalho, mas são poucos os negros que têm. Isso foi benção de Deus”.
Seu último trabalho na Globo foi uma participação na minissérie 'Se Eu Fechar os Olhos Agora', em 2018.
____________________
Ruth de Souza morreu no dia 28 de julho de 2019, aos 98 anos, no Rio de Janeiro, devido a complicações derivadas de uma pneumonia.
FONTE:
Depoimento concedido ao Memória Globo por Ruth de Souza em 09/05/2001. |