Em sua longa trajetória, Mário Lago fez de tudo e assistiu à História do Brasil do século XX na primeira fila – quando não foi um dos seus protagonistas. Compositor, letrista, ator, poeta, radialista, jornalista e escritor, realizou a proeza de alcançar, ao mesmo tempo, o reconhecimento popular e o da crítica especializada em praticamente todas as atividades que exerceu. Um exemplo: além de ser querido pelo público, o Atílio Souza de 'O Casarão' (1976), novela de Lauro César Muniz, rendeu-lhe o prêmio de Melhor Ator da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). Canção até hoje lembrada nas rodas de samba, Ai que Saudades da Amélia, parceria com Ataulfo Alves, também é considerada um dos maiores clássicos da música brasileira.
Mário Lago nasceu em 26 de novembro de 1911. Filho único do maestro e violinista Antônio de Pádua Jovita Corrêa do Lago e de Francisca Maria Vicência Croccia Lago, formou-se pela Faculdade Nacional de Direito. Mas a vocação artística e a boemia falaram mais alto: “Nasci para ser músico. Meu pai foi maestro de uma companhia lírica que passou pelo Brasil na época da Primeira Guerra”. Da convivência com o avô materno, o italiano Giuseppe Croccia, um músico boêmio e anarquista, vieram as inclinações políticas. “Eu nasci inconformado. Sou rebelde por vocação”.
De revisor de revistas ao Partido Comunista
Seu primeiro interesse artístico foi a poesia, e ele teve seu primeiro poema publicado já aos 15 anos. Foi aluno de Lucília Villa-Lobos, mulher do maestro Heitor Villa-Lobos, e até o fim da adolescência, dividia-se entre os recitais de piano e as rodas de samba que frequentava na Lapa. “Um dia, veio ao Brasil o concertista Arthur Rubinstein, e eu fui ouvi-lo tocar. Estava lá na torrinha, pensando que eu nunca tocaria como ele, que morava na Polônia, estudava oito horas por dia. ‘No Brasil faz calor, tem uma porção de meninas passeando na rua. Eu não vou aguentar’, pensei. E desisti. Chopin era muito bom, Mozart também, mas aquela rodinha de samba, não sei, era um feijão com arroz”.
Seu primeiro emprego foi o de revisor de revistas como O Malho, Tico-Tico e Fon-Fon, em 1926. Em seguida, foi repórter do jornal O Radical. Ingressou na faculdade em 1930 e passou a frequentar os cafés da época, porta de entrada para a militância política, Partido Comunista Brasileiro.
“Comecei pelo Socorro Vermelho, cuja tarefa era angariar fundos para as famílias de presos. Depois, passei para a Juventude, quando fui preso, no dia 21 de janeiro de 1932”
Suas posições políticas o levaram à prisão sete vezes. O ator também chegou a ser candidato a deputado estadual pelo Partido Social Trabalhista em 1950, por determinação do Partido Comunista Brasileiro (PCB), mas não foi eleito.
“Eu comecei minha atividade artística como autor de revista para o Teatro Recreio. Os compositores procuravam muito o teatro para lançar música. Fui me relacionando com compositores e comecei nessa brincadeira escrevendo para teatro”
No teatro de revista, trabalhou ativamente de 1933 até 1958. Escrevia e compunha na melhor tradição do gênero, misturando comédia, improviso, sátira política e samba. Entre a década de 1930 e o começo dos anos 1960 criou marchas, valsas, foxes, choros e, sobretudo, sambas. A primeira gravação foi 'Bate, Bate, Coração', escrita em parceira com Roberto Martins e gravada por Aracy de Almeida, em 1936. Entre os vários sucessos que compôs estão 'Nada Além', 'Atire a Primeira Pedra', 'Aurora' e 'Ai que Saudades da Amélia'. Custódio Mesquita, Ataulfo Alves, Erasmo Silva, Lúcio Alves, Roberto Roberti, João Nogueira e Chocolate foram alguns de seus parceiros.
'Domingão do Faustão': Mário Lago recebe o prêmio pelo conjunto da obra
Início da carreira de ator
A carreira de ator começou em 1942, quando entrou para companhia do amigo Joracy Camargo. Dois anos depois, além de consagrado compositor popular, era também um ator de teatro respeitado. Foi convidado por Oduvaldo Vianna para trabalhar na Rádio Pan-Americana, de São Paulo, prestes a ser inaugurada, em 1944. Em seguida, trabalhou na Rádio Nacional (1945-1948 e 1950-1964), na Mayrink Veiga (1948) e na Bandeirantes (1949).
“Eu fazia os chamados centrais, porque minha voz nunca foi de galã. Esse negócio de voz é muito engraçado. Em minha novela de estreia na Rádio Nacional, eu fazia o avô da Amélia de Oliveira, cuja voz parecia um veludo. No entanto, quando eu era criança, ela me pegou no colo!”
Além de radioator, atuou como autor, diretor, produtor executivo, roteirista, redator e entrevistador.
Em 1947, casou-se com Zeli Cordeiro, filha de um dirigente comunista, e teve com ela cinco filhos. No mesmo ano, fez o seu primeiro papel no cinema em 'Asas do Brasil', de Raul Roulien. Mesmo não gostando muito do trabalho nos sets (“Eu sou ‘endocrinologicamente’ ansioso. E, às vezes, perde-se um dia para gravar um plano”), atuou em mais de 30 longas-metragens, incluindo alguns dos mais importantes do Cinema Novo: 'O Padre e a Moça' (1966), de Joaquim Pedro de Andrade; 'Terra em Transe', de Glauber Rocha (1967); 'O Bravo Guerreiro' (1968), de Gustavo Dahl; 'Os Herdeiros' (1970), de Cacá Diegues; e 'São Bernardo' (1972), de Leon Hirszman. Foi também roteirista de filmes de sucesso: é dele e do Braguinha o roteiro do filme 'Banana da Terra', de 1939, no qual Carmem Miranda apareceu pela primeira vez com a baiana estilizada que a imortalizou. No filme, foi lançado o jovem compositor Dorival Caymmi.
Em 2 de abril de 1964, dia seguinte ao Golpe Militar, foi preso pelos militares e demitido da Rádio Nacional, por força do Ato Institucional n° 1. Passou a considerar mais seriamente a possibilidade de trabalhar na televisão, onde só tinha atuado esporadicamente em alguns teleteatros na TV Rio.
Estreia na Globo
“A minha estreia em televisão foi com um programa do Jacy Campos, às sextas-feiras, dia de Câmera Um”
Em 1966, estreou na Globo, como o coronel nazista da novela 'O Sheik de Agadir'. Sempre procurou usar suas convicções políticas como base para compor seus personagens. “Usei o Lucker para transmitir meu ódio ao nazismo”. O papel foi conquistado apesar da resistência da autora Glória Magadan, cubana que se opunha a Fidel Castro e que se recusava a ter um notório comunista atuando em sua novela. Só foi mantido no elenco por determinação de Walter Clark. O ator ficou na emissora até a morte, em 2002; fez mais de 40 novelas, minisséries e especiais. No rádio, porém, ficou impedido de trabalhar por 20 anos: só pôde retornar à Rádio Nacional em 1980.
EXCLUSIVO MEMÓRIA GLOBO
Webdoc sobre a novela 'O Sheik de Agadir' com entrevistas exclusivas do Memória Globo.
Assim na terra como no céu
Diferentemente do rádio, onde atuou em várias frentes, construiu sua carreira na televisão trabalhando estritamente como ator. Faria ainda de Glória Magadan A Sombra de Rebeca (1967) e O Homem Proibido (1967). Em Assim na Terra Como no Céu (1970), de Dias Gomes, interpretou o banqueiro Oliveira Ramos.
“O banqueiro era um deboche, usava peruca. Mostrei ao público a fragilidade do poder. A função do artista é procurar ajudar no esclarecimento, na opção”
Em 1977, fez um decadente barão do café em 'Nina', Walter George Durst, baseada no livro de Galeão Coutinho.
“O coronel Galba entrava no 11º capítulo e deveria morrer antes do 30º. A composição do tipo que eu apresentei no vídeo fez com que o Walter Durst levasse o coronel até o fim. É muito gratificante saber que a gente está contribuindo para a criação e o crescimento de um personagem”. O personagem valeu a ele o prêmio de melhor ator da Associação Paulista de Críticos de Arte. Dois anos antes, o personagem Atílio Souza de 'O Casarão' também lhe deu o prêmio da APCA.
“Atílio é o homem que vive sem que se veja e morre sem que se perceba. Pessoas que não brigam pelo mundo em que vivem e que acabam passando despercebidas pela vida”
'O Casarão': Atílio ensandece
Parcerias com Gilberto Braga
Ganhou o Golfinho de Ouro de Melhor Ator por 'Dancin’ Days' (1978), de Gilberto Braga, na qual viveu Alberico Santos.
"Alberico era um amoral, porque o megalômano é uma pessoa sem decência. Em termos de popularidade, porém, foi um sucesso. Todos adoravam o Alberico”.
Do mesmo autor, ganhou outro papel marcante: o negociante de joias Vítor Newman, de 'Brilhante' (1981). “É incrível a repercussão deste personagem. E olha que o Vítor não é uma figura popular, como o Alberico e até o velho Atílio. O Vítor Newman é o poder estratificado, sólido. De Gilberto Braga, fez ainda 'Louco Amor' (1983), 'Pátria Minha' (1994) e 'Força de um Desejo' (1999).
Outros Trabalhos
O ator, em seu aniversário de 90 anos, foi tema de uma matéria exibida no 'RJTV' em novembro de 2001. Mário Lago trabalhou também em episódios de 'Caso Especial' e 'Você Decide', em seriados como 'Malu Mulher' (1979) (criado por Daniel Filho) e 'Plantão de Polícia', criação de Bráulio Pedroso, Aguinaldo Silva, Doc Comparato, Antônio Carlos Fontoura, Ivan Ângelo e Leopoldo Serran), exibidas no mesmo ano. Nos anos 1980, atuou nas minisséries 'O Tempo e o Vento' (1985), inspirada na obra de Erico Verissimo, adaptada por Regina Braga e Doc Comparato; 'Grande Sertão: Veredas' (1985) , adaptação de Walter George Durst, José Antônio de Souza e Walter Avancini da novela de Guimarães Rosa; 'O Pagador de Promessas' (1988), de Dias Gomes
'O Pagador de Promessas': Zé do Burro é impedido de cumprir sua promessa
Hilda Furacão
Mário Lago também fez 'Hilda Furacão' (1998), de Gloria Perez, baseada no romance homônimo de Roberto Drummond.
Webdoc minissérie - 'Hilda Furacão' (1998)
E foi de Gloria Perez o seu último papel: em 2001, o ator fez uma participação especial na novela 'O Clone', revivendo o geneticista Dr. Molina. Esse personagem já havia sido interpretado por Mário Lago na novela 'Barriga de Aluguel' (1990), da mesma autora.
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Mário Lago morreu em 30 de maio de 2002, no Rio de Janeiro, em decorrência de um edema pulmonar.
Fonte