Logo que os computadores começaram a chegar às redações, no início dos anos 1990, Lucas Battaglin, chefe de reportagem do 'Globo Rural', criou um banco de pautas, que reunia sugestões de matérias que poderiam ir ao ar no programa. A primeira pauta registrada foi sobre os tropeiros que, no lombo de burro, movimentaram todo o ciclo de ouro no Brasil nos séculos 18 e 19, época em que não havia caminhão, trem ou sequer estradas. Foi um dos projetos mais difíceis de realizar, tanto que só saiu em 2006, conta Battaglin. “Tivemos que montar tudo: arrumar burro, mula, cavalo, veterinário tropeiro, cozinheiro, feno para os animais e até um carro de apoio, que acompanhou a comitiva durante os 66 dias de marcha.”
Na primeira reportagem da série sobre tropeirismo no Brasil, José Hamilton Ribeiro retraça as origens das tropeadas no Brasil, 'Globo Rural', 16/07/2006.
O resultado foi ao ar numa série de 12 reportagens, transmitida em 12 domingos seguidos, até hoje considerado um dos maiores acontecimentos jornalísticos do Brasil. O que mais comoveu Battaglin, no entanto, foi a reação do público, expressa numa “cartinha” da telespectadora Maria Lúcia, uma senhora de Juiz de Fora, Minas Gerais, que ele pede “licença” para ler. “Hoje, fiquei muito emocionada quando assisti ao programa Globo Rural. Acompanhei toda a série sobre a tropeada e fiquei feliz em saber que amanhã já teremos o DVD para comprar. No ano passado, eu já havia mandado um e-mail no qual eu falava sobre o meu carinho com o programa, que para mim é o melhor da televisão brasileira. Dar os parabéns pela série é muito pouco, pois não faz justiça ao trabalho de vocês. Falar dos apresentadores então é muito difícil. Hoje, quando os vi chorando, também me emocionei. Em lugar de parabenizar, prefiro agradecer e pedir a Deus que abençoe sempre o trabalho de vocês”. Ao ler a “cartinha”, o orgulho de Battaglin de fazer parte de uma equipe vencedora fica evidente, e também a emoção: “Isso aqui me comove muito, é uma tremenda recompensa”.
A reportagem de Lucas Bataglin apresenta alternativas viáveis para lidar com o problema da seca no Nordeste, como o cultivo da jojoba e da carnaúba, 'Globo Rural', 26/07/1981.
Início da carreira
Luiz Carlos Battaglin virou Lucas Battaglin desde que começou a trabalhar como jornalista. Filho de ferroviários da Estrada de Ferro Sorocabana – a mãe secretária e o pai engenheiro – ele começou o ensino médio cursando o antigo científico, que o levaria para a área de ciências exatas. Mas, aos 16 anos, mudou de ideia e foi para a área de Ciências Humanas, o chamado clássico, que o encaminhou para a faculdade de Geografia da Universidade de São Paulo, a USP. Cursou um ano e resolveu sair do país para estudar na Europa, mas acabou viajando e trabalhando onde dava por dois anos e meio.
De volta ao Brasil em 1973, sem saber que profissão seguir, resolveu fazer um curso de guia de museu, e foi chamado pelo Museu do Ipiranga. Não ficou “porque as exigências eram muito altas e o salário, muito baixo”. Decidiu, então, prestar vestibular para a Escola de Comunicações da USP, pensando em fazer Música. No dia em que prestou o exame, no entanto, conseguiu um emprego de jornalista. Assim, antes de entrar na faculdade, começou a trabalhar e, em vez de fazer Música, acabou indo para o Jornalismo. Não se sabe o que a música perdeu, mas o jornalismo com certeza ganhou um profissional entusiasmado.
O primeiro emprego de Lucas foi como repórter numa empresa que prestava serviços de comunicação à TV Bandeirantes. Fazia toda a parte de divulgação dos programas da emissora: filmes, shows, espetáculos e jornalismo. “Fiquei nisso oito meses”, conta Battaglin, “e depois entrei de fato na TV Bandeirantes, já no departamento de jornalismo, como pesquisador, embora tivesse uma função de jornalista”.
Ficou na Bandeirantes uns três anos e, a partir de 1976, trabalhou simultaneamente na Bandeirantes e na TV Cultura como repórter. Em 1977, foi para a Globo. “Sou da equipe que fez o primeiro 'Bom Dia São Paulo', quando se inaugurou esse horário, de 7h às 8h, na televisão brasileira, cuja programação na época era quase toda vespertina”, conta Battaglin, que ficou no programa por seis meses, como editor. Em seguida, voltou para a TV Cultura, onde ficou por três anos, fazendo os programas 'Hora da Notícia' e 'Hora da Notícia – Reportagem', num projeto que fundia as funções de repórter e de editor, até ser demitido “quando Paulo Maluf se tornou governador”.
Justamente nessa época, o 'Globo Rural', graças ao grande sucesso desde a estreia em janeiro de 1980, estava passando de meia hora para uma hora de duração e aumentando a equipe. Battaglin foi demitido num dia da TV Cultura e, no dia seguinte, já estava no 'Globo Rural': "Em agosto de 1980 vim para o 'Globo Rural', quando o 'Globo Rural' estava com sete meses", contou em depoimento ao Memória Globo. Começou como repórter, função que ocupou por dois anos e meio, passou a editor e, em seguida, a chefe de reportagem.
Como repórter, a primeira matéria de Battaglin no 'Globo Rural' foi sobre a colheita do café. “Eu já tinha uma formação em reportagens mais longas, graças à TV Cultura”, conta. “Sabia articular isso e editar minhas matérias. Nesse sentido, não senti qualquer peso em mudar para a área agrícola. Lidar com o campo, com as pessoas do campo, me atraía muito.” No começo, avalia Battaglin, o 'Globo Rural' foi muito forte na área de serviços porque, na década de 1970, a agricultura deu um salto expressivo e a sede de informação do agricultor brasileiro era muito grande – o 'Globo Rural' foi ao ar pela primeira vez em 6 de janeiro de 1980, quando já havia mais de quatro milhões de aparelhos de televisão na área rural. “Então, quando o programa entra mostrando novas técnicas, isso bate forte no agricultor. Mas é bom lembrar que não ensinávamos como fazer; mostrávamos que as técnicas existiam, como elas funcionavam, por que funcionavam bem e dávamos o endereço do órgão ou instituição onde as pessoas podiam buscar mais informação. No começo, portanto, a grande repercussão do 'Globo Rural' eram essas reportagens de serviços ou técnicas.”
No primeiro ano do programa, lembra, divulgou-se um novo capim de melhor crescimento e que permitia a criação de mais animais por hectare. O número de cartas foi tão grande que a instituição responsável precisou de muitos caminhões para transportar as mudas pedidas pelos telespectadores. No terceiro para o quarto ano, houve uma crise e abastecimento de trigo no Brasil. Então, conta Battaglin, “resolvemos fazer uma série de reportagens com receitas à base de milho ou mandioca. Fizemos umas oito receitas e todo domingo ia uma para o ar. Também houve tanta carta que os Correios tiveram que contratar mais gente. Foram mais de 80 mil cartas pedindo os folhetos dessas receitas”.
Outra reportagem de grande repercussão foi sobre uma frutinha nova, da qual muito pouca gente tinha ouvido falar, e que um pesquisador na Universidade Federal de Pernambuco havia testado em Recife, a acerola. Choveu pedido de semente. Hoje, o Brasil deve ser um dos maiores produtores de mundo, acredita Battaglin. Entre as reportagens que marcaram a história do programa, além da série sobre os tropeiros, ele destaca a série sobre a boiada. “Nós conseguimos acompanhar uma comitiva de 1.300 bois desde a saída da boiada do Pantanal até a chegada numa fazenda seca no Mato Grosso do Sul. Foi uma saga de 45 dias, que se transformou em seis reportagens. A comitiva parava num domingo em um restaurante de beira de estrada e a boiada estava no ar na televisão. Então, as pessoas ficavam malucas”. Essa é uma reportagem lembrada até hoje. “Uma carta de telespectador dizia: puxa, parecia que eu estava vendo um filme americano…”, relembra Battaglin. “Quer dizer, as pessoas achavam que era tão bom quanto um filme americano, mas quando você vai ver hoje a qualidade da imagem, você dá risada.”
Em 1983, um momento marcante para Battaglin foi a participação do 'Globo Rural' no Projeto Nordeste, que a Globo encampou para ajudar as vítimas da seca, uma das piores já enfrentadas pela região. Apesar de gravado, o programa acabou fazendo parte de uma programação especial apresentada por Renato Aragão, com uma grande reportagem sobre o tema.
Árvores e festas do interior
Para ele, o programa tem algumas marcas registradas, como as reportagens que tratavam de árvores -- a relação da população de uma cidade com uma árvore emblemática, por exemplo -- e as sobre festas do interior. "Eu citaria duas aqui, que foi uma reconstituição de uma Folia de Reis, no norte de Minas, feita pelo Nélson Araújo, e outra uma Festa do Divino, que o Ivaci fez, e que teve um lance também altamente simbólico, porque o festeiro, o principal, o cara que carregava a bandeira e tudo, morreu durante a festa."
Sempre houve também boa repercussão para as reportagens de cunho social. Battaglin que o programa acompanhou o começo dos acampamentos no Brasil.
"Porque isso tem uma data, mais ou menos vai do começo da década de 1980, que começou a existir isto que a gente conhece como Movimento Sem Terra e outras entidades que organizam os agricultores que ou saíram de suas terras expulsos ou que nunca tiveram terra. É engraçado, quando a gente coloca essas reportagens, a gente tem uma boa resposta tanto do Movimento Sem Terra quanto dos proprietários, porque existe acho que um olhar de equilíbrio, eu acho, para essas coisas."
Revista
O jornalista também acompanhou o nascimento da revista 'Globo Rural', que teve o número 1 indo para as bancas em outubro de 1985. A publicação chegou a vender 400 mil exemplares de uma de suas edições, a que comemorou um ano. "Era a terceira tiragem de revista no Brasil, na época."
Edição diária
Em 2000, o programa ganhou edição diária (de segunda a sexta, além da já tradicional do domingo. Uma decisão da emissora, calcada no sucesso da proposta. Battaglin avalia que isso foi possível também graças à expansão das afiliadas, que passaram a fornecer material de várias partes do país. Para ele, o programa diário tinha uma pegada mais "hard news", o que seria correspondente ao bloco dedicado às atualidades no programa semanal. A experiência diária durou até 2014.
Em janeiro de 2018, Lucas Battaglin tornou-se editor-chefe do programa, com a saída do fundador Humberto Pereira.
Em fevereiro de 2023, uma entrevista do G1 promoveu um encontro de gerações, o repórter cinematográfico Jorge dos Santos, que foi o responsável pelas imagens de uma longa matéria que foi ao ar em 1984 sobre o Pantanal, editada por Battaglin, o próprio editor-chefe e o repórter Edson Ferraz, que fez uma reportagem no mesmo percurso em 2022. Eles conversaram sobre as diferenças de técnica e sobretudo do meio ambiente no local, no momento em que a região enfrentava uma preocupante seca. "A reportagem que fizemos há 38 anos e a de agora, nós fizemos na mesma época (do ano)", observou ele, para em seguida constatar que os cenários acabaram bem distintos por conta da seca.
Em fevereiro de 2024, Lucas Battaglin tomou a decisão de se aposentar. Ele preparou a equipe e escolheu a sucessora para o cargo de editora-chefe: Camila Marconato, que trabalha no programa desde 2004, passou a exercer a função.
FONTE:
Depoimento concedido ao Memória Globo por Lucas Battaglin em 31/01/2007. |