Lícia Manzo provou o gostinho do sucesso ainda na adolescência. Aos 15 anos, logo após entrar para O Tablado, a jovem e alguns amigos fundaram o grupo Além da Lua. As peças eram tão boas que Lícia e os colega venceram o Prêmio Molière como melhor grupo de teatro para crianças, em 1984. “Ali, escrevi meus primeiros textos. Às vezes, sozinha. O primeiro texto do grupo era meu. Mas eu ainda não tinha nenhuma intenção de escrever. Eu queria atuar”, lembra Lícia, que mais tarde entrou para o primeiro time de autores de dramaturgia da Globo.
Lícia frequentou os palcos até os 30 anos de idade. Preocupada com a instabilidade financeira, ela tomou uma decisão que mudou o rumo de sua profissão. A atriz resolveu investir na carreira de escritora e fez a Oficina de Autores da Globo, mas foi reprovada.
“Muitas vezes as pessoas tomam os ‘nãos’ que recebem como uma chancela de fracasso. É claro que me abalou, mas eu falei: ‘Tudo bem. Não foi por essa porta. Será por outra’”.
Nascida em 28 de março de 1965, a carioca estava certa. Poucos meses depois, convidada por José Lavigne, ela escreveu para 'Os Trapalhões', em 1992. Na equipe, redatores como Lenine, hoje cantor e compositor, e Bráulio Tavares, compositor e parceiro do recifense. Em seguida, Lícia foi chamada por Cláudio Paiva para integrar a equipe do 'Sai de Baixo', em 1996.
“Dos produtos que fiz na Globo, esse talvez tenha sido o mais difícil. Eram cinco blocos por programa e você tinha que criar ganchos para todos os blocos. Os atores eram seis estrelas e era preciso criar espaços onde os seis aparecessem.”
EXCLUSIVO MEMÓRIA GLOBO:
Webdoc humor - Sai de Baixo (1996)
Teatro
Durante os 15 anos da carreira de atriz, Lícia participou de espetáculos como 'A Aurora da Minha Vida' e 'La Ronde', comprou os direitos de 'Crimes Of The Heart', de Beth Henley, americana ganhadora do Pulitzer, e fez peças de autores como William Shakespeare e Bertolt Brecht. Mais para frente, em 2009, Lícia voltaria para a cena teatral e se tornaria a autora do sucesso 'A História de Nós 2', indicado ao Prêmio Shell na categoria melhor texto. É dela também o espetáculo 'Aquela Outra' (2011), com direção de Clarice Niskier.
Mais humor
Em 2001, a autora trabalhou no 'Retrato Falado', quadro de humor do 'Fantástico', com Denise Fraga, baseado na vida real. Dirigida por Luís Villaça, a atriz encenava histórias verdadeiras, enviadas pelos telespectadores por carta ou e-mail e adaptadas para a TV pela equipe de redação formada por ela, Mariana Veríssimo, José Roberto Torero, Marcus Aurelius Pimenta e Maurício Arruda. Fã do quarteto mais amado de Liverpool, a escritora não esquece um de seus episódios:
“Uma psicoterapeuta era obcecada pelos Beatles na adolescência. Ela largou tudo para ir atrás deles em Londres e conseguiu um cachecol do Paul McCartney. Eu sou beatlemaníaca até hoje. Já fui para Liverpool com minha filha e me identifiquei com essa história.”
O 'Retrato Falado' deu uma pausa e, durante esse tempo, Lícia não quis ficar parada e avisou aos amigos sobre a sua disponibilidade para trabalhar. A autora Andrea Maltarolli atendeu ao pedido da carioca e a convidou para ser colaboradora de 'Malhação', em 2003. Um ano depois, Lícia voltou para o humor e integrou a equipe de 'A Diarista'.
“O Aloísio de Abreu, com quem eu tinha trabalhado no 'Sai de Baixo', que é um grande amigo meu, foi chamado pelo Zé Alvarenga para dirigir o programa. Tinham duas equipes na 'Diarista': uma dirigida pelo Aloísio e a outra pelo Bruno Mazzeo.”
Lícia lembra que se inspirou no namorado de sua empregada doméstica, Maria, para escrever o perfil do namorado de Marinete (Cláudia Rodrigues). Lícia também escreveu para outros quadros do 'Fantástico', como 'Papo Irado', estrelado por Heloísa Périssé.
Novelas
Em 2008, Lícia foi colaboradora da novela 'Três Irmãs'. Durante a trama, um de seus projetos, o 'Tudo Novo de Novo', foi aprovado. Ela precisou sair às pressas e foi substituída por Elisa Palatnik. O primeiro folhetim com redação final da autora foi inspirado no programa 'Malu Mulher'.
“A ideia me instigou depois de tantos anos porque hoje em dia o número de divórcio é quase igual ao número de pessoas que seguem casadas.”
'Tudo Novo de Novo' mostra um retrato da sociedade contemporânea com seus novos encontros familiares.
A vida como inspiração
Um tema delicado foi abordado em 'A Vida da Gente', em 2011. Com dois colegas em coma, Lícia decidiu escrever sobre o assunto.
“Acho o coma uma coisa misteriosa, emblemática, porque a pessoa não está viva, mas não está morta. Foi essa ideia, essa premissa dramática, de alguém que fica off e que volta, que me veio.”
Na trama, as irmãs Ana (Fernanda Vasconcellos) e Manuela (Marjorie Estiano) são muito ligadas, apesar da preferência da mãe, Eva (Ana Beatriz Nogueira), pela primeira filha. Ana, uma promissora tenista, engravida de Rodrigo (Rafael Cardoso), dá a luz à Júlia, mas sofre um acidente e entra em coma profundo. Quatro anos depois, Ana acorda e percebe que tudo mudou ao seu redor.
EXCLUSIVO MEMÓRIA GLOBO:
Entrevista exclusiva da autora Lícia Manzo ao Memória Globo em 16/11/2015, sobre a novela A Vida da Gente, exibida em 26/09/2011.
No último dia de gravação de 'A Vida da Gente', a autora e Jayme Monjardim, diretor da novela, tomaram um café e conversaram sobre o próximo projeto juntos.
“Ele me falou que tinha vontade de trabalhar com o tema da Antártica e eu falei que tinha visto uma matéria sobre filhos de doadores que se agrupavam via um site de internet e se descobriam meios-irmãos.”
Ainda sem saber qual história escreveria, ela viajou com a filha para Nova York e, ao assistir a 'Rei Leão', na Broadway, ela concebeu 'Sete Vidas' (2015). “O 'Rei Leão' é uma fábula sobre amadurecimento e a dificuldade de crescer”, afirma a autora, que mostrou os sentimentos na trama de Miguel (Domingos Montagner), um doador de sêmen, que tinha um trauma e não conseguia se envolver com ninguém.
Segundo a autora, algumas pessoas ficaram um pouco decepcionadas quando ela citou o 'Rei Leão' como sua inspiração.
“Acho engraçado como as pessoas levam a sério essa coisa de vaidade intelectual, como se fosse mais nobre eu citar Dostoiévski. A Clarice Lispector, que é minha musa eterna, falava que o maior elogio que havia recebido na vida tinha vindo do Guimarães Rosa, que falou: ‘Eu leio Clarice não pra literatura, mas pra vida’.”
Lícia é formada em Jornalismo e fez mestrado em Literatura Brasileira na PUC-Rio. Sua admiração de Lícia Manzo por Clarice Lispector transformou-se no ensaio biográfico 'Era Uma Vez: Eu – A Não Ficção na Obra de Clarice Lispector', indicado ao Prêmio Jabuti, em 2003.
Lícia também assinaria como autora principal a novela 'Um Lugar ao Sol', que foi ao ar entre 2021 e 22. Um desafio e tanto, já que foi sua primeira na faixa das 21h e, ainda por cima, realizada em tempos de pandemia -- originalmente ela iria ao ar em 2020, após 'Amor de Mãe', mas acabou adiada e por isso, foi uma "obra fechada", gravada com antecedência.
A trama parte da história de Christian e Renato, irmãos gêmeos vividos pelo ator Cauã Reymond, que são separados ainda bebês, e só vão se reencontrar na vida adulta.
"Com relação ao horário chamado de 'nobre', o que posso dizer é que escrevi essa novela com o mesmo amor e empenho que as demais. Nunca ambicionei nenhum horário específico. Importa para mim seguir escrevendo, honrando meu ofício", disse ela em entrevista ao Gshow, ao fim da empreitada.
Ela também comentou sobre o processo de gravação em tempos de restrições por causa da Covid-19.
"No que diz respeito à pandemia, sim, foram necessárias diversas adaptações de produção: locações, externas, crianças ou idosos em cena – muita coisa precisou ser alterada. Ainda em função da pandemia, a novela precisou ser encurtada e depois estendida. De todo modo, o comprometimento e entrega da equipe de autores, direção, técnica, elenco, não foi alterado. Graças a isso, a novela se impôs."
FONTES:
Depoimento concedido ao Memória Globo por Lícia Manzo em 16/11/2015. "Lícia Manzo reflete sobre 'Um Lugar ao Sol': 'Eu me identifico com todos os personagens ou seria incapaz de escrevê-los'", In: Gshow, 23/3/2022 |