Fazer a entrevista fluir como se fosse uma conversa entre amigos é arte que Leda Nagle domina como poucos. Informal e divertida, a jornalista consolidou sua carreira na Globo com um estilo inovador de extrair boas histórias. Atores, cantores, escritores, comediantes e diversos outros profissionais protagonizaram momentos marcantes nas edições de sábado do 'Jornal Hoje', levados pela simpatia e descontração que se tornaram marca registrada dos bate-papos conduzidos por Leda, durante os 13 anos em que ela atuou no telejornal. Leda Nagle diz que a entrevista é como um jogo: o repórter deve saber jogá-lo. Primeiro, precisa gostar de ouvir e, segundo, tem que se preparar e estudar o entrevistado.
A primeira entrevista com o poeta Carlos Drummond de Andrade, em 1981, tem lugar especial em suas memórias. “Ele era uma pessoa que não gostava de dar entrevista, só gravava aquela falinha rápida, que a gente chama de sonora. Na nossa entrevista, ele contou até que tinha varizes. Foi uma coisa surpreendente. Rolou mesmo uma simpatia, uma conversa muito boa”, recorda.
O dom de trazer à tona a intimidade de personalidades avessas a entrevistas também foi exercitado com a escritora Janete Clair. “Um dia eu conheci a Janete e ela me convidou para ir a casa dela. Ela não era de convidar todo mundo, mas dava belas festas. Toda vez que eu ia lá, eu falava: ‘Poxa, Janete, me dá uma entrevista.’ E ela dizia: ‘Ah, não, detesto entrevista, entrevista, não’. Um dia, ela e o Dias (Gomes, marido da autora) aceitaram. Mas, quando chegamos lá, ela mandou dizer que estava com febre e que tinha tomado um remédio. Eu me sentei calmamente e falei: ‘Tranquilo, vamos esperar a febre passar’. E a febre passou uma hora depois. Fizemos uma entrevista, que era curtinha nessa época, e eu me arrependo profundamente de não ter ficado conversando com a Janete mais meia hora, porque ela me deixou entrar na casa dela, sentar no sofá dela, respondeu, e era uma coisa que ela detestava, que a afligia mesmo, a tal ponto de ter febre”.
EXCLUSIVO MEMÓRIA GLOBO
Em depoimento exclusivo ao Memória Globo, Leda Nagle fala sobre as entrevistas que fez para o Jornal Hoje, de 1976 a 1989.
De Juiz de Fora para o mundo
Mineira, de Juiz de Fora, Leda Maria Linhares Nagle nasceu em 5 de janeiro de 1951, filha de Amin Nagle e Maria Araci Linhares Nagle. “O meu pai tinha, inicialmente, um armazém e a minha mãe era dona de casa e ajudava no armazém, como todo mundo lá em casa. Depois meu pai foi ser gerente de banco, vendeu seguros e foi por aí.” Leda seguiu o desejo que tinha, desde muito jovem. Influenciada pelo primo Fernando Gabeira (jornalista, escritor, ex-deputado federal), também queria ser jornalista. “Embora em Juiz de Fora não tenha muitos jornais, há um grande número de jornalistas, e tinha o Gabeira, que eu sempre admirei muito, que é meu primo-irmão. Então, eu estava acostumada com isso, mas tinha pouco contato com ele naquela época porque ele foi banido na ditadura e tal. E eu achava que ia mudar o mundo por meio do jornalismo”, conta.
Formada pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Leda estagiou em um jornal local. “Eu fui pedir emprego no Diário Mercantil, mas o rapaz disse que não ia me dar porque só tinha vaga como repórter de polícia e não combinava comigo. É que ele conhecia meu pai, sabe essas coisas? Aí ele me deu uma coluna social. E eu fiz aquilo um tempo, mas eu nunca dei muito certo com esse tipo de coluna.” Por meio de um concurso entre estudantes de Comunicação, conquistou uma vaga temporária como estagiária no Jornal do Brasil. “Naquela época, o JB tinha o Caderno B, onde havia o Drummond, Marina Colasanti, Affonso Romano, José Carlos Oliveira.” Após o estágio, que durou um mês, voltou para Juiz de Fora e se tornou correspondente do jornal Estado de Minas. “Eu cobria os julgamentos na 4ª Região Militar. Foi quando eu conheci toda a turma do (jornal) O Pasquim , que estava presa, e os maiores advogados do Brasil, como Evaristo de Moraes e Marcello Alencar. Eu tinha 19, 20 anos, e as pessoas mais interessantes estavam presas, porque era ditadura. Aí, me formei e decidi vir para o Rio, com a cara e com a coragem. Não tinha emprego, não tinha nada.”
O primeiro emprego que conseguiu no Rio foi como repórter de O Jornal, que era liderado por jornalistas mineiros, mas que acabou sendo extinto. Surgiu, então, a oportunidade de trabalhar em O Globo, em princípio como repórter de Cidade e, depois, no 'Segundo Caderno'.
“A redação era o máximo, foi um dos lugares mais legais que eu já trabalhei. O editor do Segundo Caderno era o Félix Athayde, que era um poeta, o nível dos jornalistas era muito bom, assim como o clima na redação. Um dia o Evandro Carlos de Andrade (então editor-chefe) me chamou porque havia gostado da matéria que eu fiz sobre o enterro do Vianinha, do Oduvaldo Vianna Filho, autor de A Grande Família.Isso me encheu de orgulho, e ele me promoveu para o Segundo Caderno.”
Revista Capricho
Em 1976, um convite da revista Capricho levou Leda para São Paulo. “No Rio, eu dividia apartamento, morei em vaga de pensionato para moças de fino trato, em vaga em casa de família, porque eu não tinha ninguém, era só eu e pouco dinheiro, então foi um “perrengue” o meu começo. E diante dessa ralação toda, eu falei: ‘Oba, vou ganhar muito, vai ser ótimo’. E o título era bom: editora de texto da revista Capricho.” Mas a estadia paulistana durou apenas 40 dias. “São Paulo é muito diferente do Rio: você não encontra casualmente com uma pessoa. E as pessoas não te convidam para ir a casa delas. Eu fiquei muito sozinha. E aí, eu vim passar um fim de semana no Rio e fiquei sabendo que tinha vaga na Globo. Me sugeriram que eu procurasse Alice-Maria, que era diretora de telejornais”.
O encontro aconteceu em um sábado. Leda foi convidada pela diretora a voltar no dia seguinte para assistir ao 'Fantástico', para ver se iria gostar do trabalho em televisão. A paixão foi imediata. “A imagem em movimento me pegou.” No dia seguinte, assumiu o cargo de editora de Variedades do 'Jornal Amanhã' e, três anos depois, em 1979, apresentou esse telejornal, que era exibido no final da noite. “Alice era muito generosa e me ensinou muito. Eu tenho um bom texto de televisão hoje porque aprendi com Alice. Ela sempre foi uma pessoa muito querida, muito mãe, muito tudo. Ela me ensinou tudo, a verdade é essa.”
'Jornal Hoje'
Um dos principais ensinamentos foi que Leda Nagle podia fazer entrevistas em televisão. A primeira delas foi com o cantor e compositor Milton Nascimento. “Eu saí com o Mauro Rychter e Fernando Waisberg (editores) para fazermos a matéria. Eu era meio hippie, usava um brinco de pena, uns vestidos compridos até o chão, um cabelo todo anelado, doido, e, então, fazia essas matérias em off [risos] para poupar o telespectador, porque não era o padrão realmente. As matérias ficavam legais e o Waisberg e o Rychter faziam um trabalho deslumbrante de edição, uma coisa que ninguém fazia na época, eram uma dupla genial”.
Vieram outras entrevistas e Leda passou a aparecer no vídeo. Em 1977, começou a apresentar o bloco local do 'Jornal Hoje', que incluía uma agenda cultural, que logo fez grande sucesso entre os telespectadores. “Esse bloco de agenda tinha notícias, mas incluía coisas como o samba do Circo Voador, e uma entrevistinha que eu fui incrementando e virou um negócio legal.” As entrevistas passaram a ser exibidas nas edições de sábado do Hoje e ganharam prestígio, levando ao estúdio nomes como Chico Buarque, Fernanda Montenegro, Pelé, Caetano Veloso e Zeca Pagodinho, que se iniciava na carreira. Chitãozinho e Xororó, que despontavam no país, foi a primeira dupla sertaneja a falar na Globo. “Eu me lembro direitinho que eu falei cheia de delicadeza, com o maior cuidado, com eles: ‘Vocês sabem que as pessoas falam que vocês são brega, né?’ ‘Nós é brega, mas nós drome na nota’, foi a resposta deles”, se diverte Leda, ao lembrar que a dupla usou a expressão para se referir ao montante de dinheiro que ganhava na época.
Em algumas ocasiões, as entrevistas eram feitas em externas. Uma delas consistiu em um encontro marcado com quatro dos mais importantes escritores brasileiros: “Eu juntei Hélio Pellegrino, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Otto Lara Resende, e fiz uma entrevista para o Hoje de sábado. Foi muito prazeroso. Uma conquista para uma jovem jornalista, e um prazer para o telespectador. A minha passagem de um telejornal para outro foi natural, aos poucos, não foi automático, porque uma coisa não implicava o fim da outra”.
'Bom Dia Rio'
Em 1983, Leda saiu do 'Jornal Hoje' para o telejornal 'Bom Dia Rio', que estava estreando. Compunha a bancada com Marcos Hummel. “No Bom Dia Rio sempre havia um artista que tomava o café da manhã com Zaira Martins ou com Glória Maria, que eram repórteres. Por causa do horário, tinha convidado que só aceitava fazer o quadro Café da Manhã se gravasse. Quer dizer, tinha seus ‘perrengues’, mas valeu, porque implantamos o Bom Dia Rio e, depois, veio o Bom Dia Brasil.” Devido a férias e escalas de apresentadores, Leda chegou a apresentar também outros telejornais, como o 'Jornal da Globo' e o 'RJTV', que contava, na época, com três edições.
Retorno ao 'Jornal Hoje'
Em 1984, Leda voltou ao 'Jornal Hoje', onde permaneceu na bancada até 1989. Ao final de cada edição, se despedia dos telespectadores com uma expressão que acabou se tornando sua marca. “Aguardo vocês amanhã. Com certeza”. Nesse período participou de projetos inéditos, como a cobertura do Rock in Rio I, realizado em 1985. Em um estúdio de vidro, montado em frente a um dos palcos, Leda recebia convidados. “Foi a primeira vez que o Rio viu isso. Uma loucura, choveu canivete, e era um barro terrível, um cheiro de xixi, uma coisa inacreditável, mas eu estava lá na minha torre de vidro maravilhosa, entrevistando Rita Lee, Cazuza. Muito legal”.
Da sua trajetória na Globo, Leda também recorda de apertos, em uma época em que os equipamentos de gravação tinham muitas limitações. Um deles aconteceu quando a equipe ligou o aparato de iluminação e áudio nas saídas elétricas da casa do escritor Pedro Nava, para gravar a entrevista. “Nós queimamos a casa dele, assim, bum, acabou a luz, queimou o relógio, foi punk, a gente morreu de vergonha”. O episódio se repetiu outras vezes “Eu queimei vários lugares ao longo da minha vida. [risos]. Queimamos a PolyGram, entrevistando Bethânia e também entrevistando o Chico (Buarque), mas a vez da Bethânia foi pior porque era minha primeira entrevista com ela, eu era fã absoluta, e é muito difícil entrevistar quando a gente é fã. Quando ligaram a luz atrás da gente, só deu tempo de Bethânia dizer: ‘Não se ilumina duas Iansãs por trás’, bum, queimou a PolyGram. Passamos vários vexames assim”.
Em 1989, Leda Nagle saiu da Globo, foi para a TV Manchete e, em seguida, para o SBT. Em 1992, tornou-se apresentadora do programa 'Sem Censura', na TV Educativa (atual TV Brasil), onde permaneceu até dezembro de 2016. Em 2017, a jornalista estreou seu canal no youtube, onde posta vídeos das entrevistas que realiza.
GALERIA DE ENTREVISTAS:
Jornal Hoje: Entrevista com Carlos Drummond de Andrade (1981)
Jornal Hoje: Entrevista com Zélia Gattai e Jorge Amado (1984)
Jornal Hoje: Entrevista com Tom Jobim (1985)
Jornal Hoje: Entrevista com Dorival Caymmi (1985)
Jornal Hoje: Entrevista com Caetano Veloso (1986)
Jornal Hoje: Entrevista com Fernanda Montenegro (1987)
FONTES:
Depoimento concedido por Leda Nagle em 08/12/2015; https://veja.abril.com.br/cultura/demitida-da-tv-brasil-leda-nagle-desabafa-foi-muito-feio/; https://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/televisao/leda-nagle-descarta-retorno-tv-apos-demissao-traumatica-e-se-define-geriatuber-37484; https://portal.comunique-se.com.br/leda-nagle-estreia-canal-no-youtube/amp/. |