Como se faz um bom repórter? Com um pouco de vaidade, porque todo o repórter é vaidoso, principalmente o de televisão. Com um pouco de espírito de aventura. Um pouco de ambição profissional, para querer subir na carreira. Um pouco de falta de juízo. E muito de estar no lugar onde os fatos estão acontecendo, seja para ser testemunha da história, seja para denunciar o que vir de iniquidade, preconceito, prepotência, abuso de poder, violência ou maldade. Essa receita é de José Hamilton Ribeiro, considerado o repórter do século, título de um dos mais de 15 livros que escreveu, contendo as sete reportagens que lhe deram sete Prêmios Esso de Jornalismo, a mais importante premiação do jornalismo brasileiro, marca até hoje não superada por outro profissional.
Início da carreira
José Hamilton Ribeiro nasceu na cidadezinha paulista de Santa Rosa de Viterbo em 29 de agosto, “mês do cachorro louco”, como gosta de frisar. Seu pai era um pequeno produtor rural e sua mãe, de prendas domésticas, como se dizia na época. Estudou em escola pública e na Faculdade Cásper Líbero, a primeira escola de jornalismo do Brasil, fundada em 1947, de onde foi expulso no último ano por causa de uma greve e para onde voltou anos mais tarde como professor. Na primeira reunião da congregação falou: “Tenho o dever de avisar vocês de que fui expulso. Revejam o que estão fazendo”. Lecionou na escola por um bom tempo. Depois, já como jornalista, fez graduação em Direito, em Uberaba (MG) para cumprir um compromisso assumido com a mãe, que não achava jornalismo uma profissão séria. Nunca exerceu a profissão de advogado. Em compensação, tornou-se uma lenda no jornalismo.
Começou como “repórter iniciante”, em 1954, no jornal O Tempo, criado por jornalistas que se demitiram da Folha de S. Paulo quando essa foi vendida. Em 1956, atendendo a um anúncio da Folha – “Você quer ser jornalista? Se você quiser ligue para o número…” – ligou e foi entrevistado por telefone. Em seguida, foi convidado a ir ao jornal, onde lhe perguntaram por que queria ser jornalista, lhe pediram para escrever uma história e o mandaram esperar em casa. Alguns dias depois, recebeu um telegrama: “Compareça hoje à Folha”. Ao chegar lá, disseram: “Você começa agora”.
Em 1962, já como repórter da Folha, foi convidado para trabalhar na revista Quatro Rodas, de uma editora desconhecida, que estava lançando no Brasil uma coleção de livros infantis, principalmente de desenhos de Walt Disney. Quatro Rodas, conta José Hamilton, foi a primeira revista da Editora Abril feita por jornalistas brasileiros com criação própria. Apesar das opiniões contrárias dos colegas de trabalho, aceitou o convite. Chegou a ser editor-chefe de Quatro Rodas e ganhou seu primeiro Prêmio Esso de Jornalismo em 1963 e outro em 1964. “No Brasil, a Abril foi um laboratório de jornalismo, do qual participei”, afirma.
Referência na imprensa
Desse laboratório, saíram as pessoas que fizeram o Jornal da Tarde, um marco no jornalismo dos anos 1960 em São Paulo, e a revista Realidade, também da Editora Abril, a mais importante revista brasileira daquele tempo. Em 1966, José Hamilton Ribeiro foi para a Realidade.
“As grandes mudanças que a Realidade fez foram a forma de tratar a pauta, o assunto e as condições de trabalho do repórter”, diz José Hamilton. “As pautas eram voltadas para a vivência pessoal. Como se tratava de uma revista mensal, eram feitas grandes reportagens, com profundidade ambiciosa. Só escrevíamos depois de ter vivenciado uma situação pessoal. Às vezes, o repórter trabalhava três ou quatro meses numa pauta, algo que nunca tinha sido feito no Brasil. A empresa oferecia as condições para o repórter trabalhar todo aquele tempo.” Para fazer uma matéria sobre preconceito racial no Brasil, José Hamilton foi orientado a ficar preto. Bem que tentou. Tomou remédio para estimular a produção de melamina sob supervisão de um professor de dermatologia e banhos de imersão com permanganato de potássio, mas continuou branco. Quando sugeriram maquiagem, desistiu: não queria passar pelo vexame de ser descoberto na rua como falso negro, nem ir contra a orientação da revista.
Tragédia no Vietnã
Se a matéria do preconceito quase vira farsa, a tentativa de cobrir a guerra do Vietnã se transformou em tragédia: com 20 dias de Vietnã, José Hamilton pisou numa mina e teve a perna esquerda estraçalhada. Mas não perdeu a matéria. Uma foto dele ferido no campo de batalha foi para a capa da Realidade e entrou para a história. Em 1969, escreveu um livro sobre a cobertura, O Gosto da Guerra, e ganhou outro Prêmio Esso. Ficou na Realidade por sete anos, chegou a ser editor-chefe e por três vezes ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo, em 1967, 1968 e 1973. Foi repórter da revista Veja de 1973 a 1975.
Em função do governo militar, diz José Hamilton, muitos jornalistas ficaram sem espaço em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Rio Grande do Sul e Recife. “A grande imprensa brasileira, ou por bem ou por mal, se acomodou com a censura. Quem tentou reagir por mal levou pancada e se enquadrou. Dessa forma, de 1975 a 1980, deixei a grande imprensa escrita e fui trabalhar em jornais do interior”, lamenta. Seu raciocínio era: “Já que não podemos fazer nada do ponto de vista do conteúdo na imprensa, vamos mexer com a forma, vamos fazer a reforma dos jornais do interior”. Para não perder o costume, ganhou outro Prêmio Esso de Jornalismo, dessa vez como diretor do jornal Dia e Noite, de Rio Preto (SP), em 1977.
Entrada na Globo
Globo Repórter: Garimpo de Serra Pelada (1982)
O primeiro trabalho de José Hamilton para a Globo foi como freelancer, uma reportagem sobre o Pantanal, região pouco vista na televisão brasileira de então, exibida pelo Globo Rural na comemoração de seu primeiro ano de existência, em 1981. José Hamilton já tinha escrito um livro sobre o Pantanal e foi chamado para participar do programa como repórter convidado. “A reportagem deu muito certo, foi muito comentada, e eu fiquei com uma boa cotação dentro da Globo. Tempos depois, fui chamado pela emissora para trabalhar no programa 'Globo Repórter', no Rio”.
Na época, o programa era gravado em filme de 16 mm, com narração em off, sem a imagem do repórter. A primeira gravação em videoteipe foi justamente uma reportagem de José Hamilton Ribeiro sobre o garimpo de Serra Pelada, no Pará, exibida em 10 de junho de 1982. Era também a primeira vez que o repórter aparecia no vídeo. Um episódio ocorrido durante a gravação dessa matéria mostra, segundo José Hamilton, que uma das condições para ser repórter de televisão é a vocação, para o profissional não correr o risco de escolher a profissão errada. Para conversar com as famílias dos garimpeiros, que moravam no Maranhão, a equipe pegou um avião até Imperatriz e de lá seguiu de carro até onde a estrada acabava. Dali em diante, só a pé ou em lombo de burro, opção escolhida porque havia muito material a transportar. Na hora de montar, o cameraman reagiu: “Eu ganho para fazer reportagem de avião ou de carro, mas de burro, não. Eu não vou”. José Hamilton retrucou: “Tenho duas opções. Uma delas é ligar para a chefia, no Rio, e dizer que você não quer fazer a reportagem, o que provavelmente resultará no envio de outro cameraman e na sua demissão, mas isso eu não vou fazer. A segunda hipótese é trazer a casa do garimpeiro até aqui para você filmar. Vai ser assim”. Trouxeram a mulher do garimpeiro, as crianças, a tia e a avó, arranjaram uma casa parecida com a da família do garimpeiro e filmaram. Algum tempo depois, José Hamilton soube que o cameraman passara a ser chefe de departamento de um shopping center, e pensou: “Pronto! Essa é a vocação dele”.
Globo Rural
Ainda em 1982, José Hamilton passou a integrar a equipe do 'Globo Rural'. Nascia assim o que muitos consideram a parceria perfeita: um dos repórteres brasileiros com um dos melhores programas da televisão brasileira. Dessa parceria, nasceram reportagens maravilhosas. Na Trilha da Onça foi uma delas. A caçada foi real, até o momento em que o animal, cansado e acuado pelos cachorros, se refugia numa árvore, pronto para ser abatido. “A caçada de onça é uma covardia, embora, infelizmente, ainda hoje isso aconteça”, diz José Hamilton. “Quando a onça subiu na árvore, mandamos os cães e os caçadores embora. Ficou somente o cameraman, que filmou o animal apavorado. Mas, ele logo recobrou a confiança, desceu da árvore e foi embora”.
José Hamilton Ribeiro acompanhou um grupo que caçava uma onça pintada. Globo Rural, 24/05/1987
De volta ao Vietnã, em 1995, para fazer uma reportagem sobre a paz para o programa Contagem Regressiva, comemorativo dos 30 anos da Globo, José Hamilton aproveitou para “abordar um prato vietnamita típico”, numa matéria para o Globo Rural. Na primeira tentativa, miolo de macaco vivo: “Não dá pra comer nem fazer reportagem”. Na segunda, carne de cachorro: “Não passo nem perto!”. Só lhe restou comer costelinhas de cobra fritas: “Para mim, se assemelhou à carne de peixe”. Ao começar a comer, perguntou ao cozinheiro se aquela cobra era venenosa: “Quando ele disse que sim, eu brinquei, dizendo: ‘então, não preciso de pimenta’”.
Globo Rural: Vietnã, 25/06/1995
Outra reportagem memorável foi a série sobre o ciclo do tropeirismo. “Toda a fase do ouro no Brasil, nos séculos XVIII e XIX, foi movimentada pelos muares, porque não havia caminhão, trem ou estrada. Tudo foi feito no lombo das mulas”, conta José Hamilton. “Foi uma pauta jornalística muito importante, que resultou numa série de 12 reportagens, transmitida em 12 domingos seguidos – o que considero um dos maiores acontecimentos jornalísticos do Brasil”.
Globo Rural - Série sobre tropeirismo no Brasil (2006)
Em novembro de 1996, mostrou o trabalho dos índios bakairis, que constroem canoas com a casca de jatobá. Em 1999, foi até Portugal reportar o trabalho no campo, como a produção de azeitonas e a criação de cavalos. Em 2002, acompanhou uma investigação científica no Rio Paraguai com pesquisadores da Embrapa. Em 2003, fez uma série de reportagens sobre a música caipira. O assunto foi retomado em 2018, quando ajudou a contar a história da canção Romaria, de Renato Teixeira.
Conheça a história da música "Romaria", de Renato Teixeira. Globo Rural, 18/02/2018
Em 2006, recebeu o Prêmio Maria Moors Cabot, da Universidade de Columbia, um dos mais importantes prêmios do jornalismo nos Estados Unidos. Ele foi um dos vencedores na categoria Outstanding on Latin America, que homenageia profissionais que demonstraram comprometimento com a liberdade de imprensa e a compreensão das relações interamericanas.
Trabalhou na TV Globo até novembro de 2021. No ano seguinte, foi tema de uma reportagem, "de jornalista a fazendeiro".
De jornalista a fazendeiro: saiba onde está José Hamilton Ribeiro. Globo Rural, 20/03/2022
Em mais de 60 anos de jornalismo, José Hamilton Ribeiro diz que aprendeu três coisas: “Primeiro, azeitona preta é tingida; segundo, nos banheiros, em geral, a torneira quente é a da esquerda; terceiro, de ovo de cobra, não sai canarinho. O resto eu aprendo todo o dia”.
Veja participações mais recentes de José Hamilton em programas da Globo:
Em 2018, conversou com Ana Maria Braga no 'Mais Você':
José Hamilton Ribeiro dá a fórmula da grande reportagem. Mais Você, 01/01/2018
Em 2024, foi tema de reportagem do 'SP1' por conta do relançamento do livro O Gosto da Guerra:
Lançada a nova edição de "O GOSTO DA GUERRA". SP1, 11/07/2024
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