João Batista de Andrade sempre teve uma vocação para a atividade artística: gostava de escrever, publicou artigos no jornal da Casa do Estudante e teve alguns contos publicados. Chegou a cursar Engenharia, mas, em paralelo ao curso, foi desenvolvendo a paixão pelo cinema. E essa paixão falou mais alto e o fez seguir por outros caminhos.
Início da carreira
João Batista Moraes de Andrade é filho da professora Maria Moraes e do agricultor Fernando Kruger de Andrade. Nasceu na cidade mineira de Iuiutaba em 01 de dezembro de 1939. Para prosseguir os estudos, mudou-se para Uberaba e, em seguida, para Belo Horizonte, cidades onde cursou o que, na época, chamava-se colegial. Em 1960 mudou-se para São Paulo, onde fez Engenharia na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo.
O ano em que João Batista de Andrade deveria se formar, após o último semestre da faculdade, era 1964. Como estava filiado ao Partido Comunista Brasileiro e fazia política estudantil, teve que se esconder na casa de um amigo, para não ser preso após o golpe de Estado. A impossibilidade de terminar o curso apressou o surgimento de uma nova vocação, e a instalação do regime militar foi determinante para sua produção cinematográfica a partir daquele momento. “Eu tinha uma tendência para a atividade artística, escrevia muito, já publicava no jornal do Grêmio, no jornal da Casa do Estudante. Tinha uma coletânea de contos para fazer um livro, mas conheci o Francisco Ramalho, que tinha começado o movimento do cinema, e me entusiasmei. Era época de se entusiasmar, havia Nouvelle Vague, Cinema Novo”, relembra. Dedicou-se, então, à paixão pelo cinema.
Estreia como cineasta
O casamento entre o cinema e a atividade política do jovem que debatia ideias com Leonel Brizola ficou claro logo em seu primeiro filme, de 1967, o documentário 'Liberdade de Imprensa'. Bem recebido pela crítica, não pôde ser visto pelo público, pois sua distribuição foi proibida pelos militares. Em uma das sequências do filme, pessoas recebem na rua livros sobre liberdade de imprensa, leem trechos e falam sobre o assunto, tabu na época.
Em seguida, ligado ao Cinema Marginal paulista, João Batista de Andrade realiza 'Em Cada Coração um Punhal' (1969) e 'Gamal, o Delírio do Sexo' (1969), com o qual ganhou um prêmio na França. “Eu estava numa crise profunda, porque o golpe ainda me atingia e ficava cada vez pior, com o AI-5. Eu vendo meus amigos partirem para a luta armada, morrendo, indo para a droga, para a desistência, fugindo do Brasil. Eu não era a favor da luta armada, não era a favor de droga, fiquei num isolamento terrível. Fiquei muito mal e os filmes refletem isso”, explica.
Início na TV
A dificuldade de abordar os temas que desejava em seus filmes, em função da repressão, foi em parte vencida por sua atuação na TV, no início dos anos 1970. Na volta da Europa, onde foi receber a premiação pelo filme 'Gamal, o Delírio do Sexo', o cineasta recebeu o convite de Fernando Pacheco Jordão e Vladimir Herzog para trabalhar em um projeto na TV Cultura, um telejornal diário. Tornou-se, então, repórter especial de 'Hora da Notícia', em 1972, sua chance de apresentar o Brasil real e incomodar o regime. Enquanto durou a experiência, até 1974, usou o espaço para denunciar problemas como a miséria e a poluição.
Reportagens especiais na Globo
Menos de dois meses depois do fim do programa, surgiu um novo convite, desta vez da Globo. Fernando Pacheco Jordão passou a dirigir a Central Globo de Jornalismo, em São Paulo, e a João Batista de Andrade coube a tarefa de criar um setor de reportagens especiais, que dava suporte a diferentes programas, como 'Fantástico', 'Globo Repórter', 'Domingo Urgente', e 'Esporte Espetacular'. “Eu tinha uma sala mais ou menos grande e alguns funcionários que levei para lá: um produtor e um editor ligados aos meus filmes, além dos repórteres Marília Gabriela e Pena Filho”, relembra.
Com câmeras 16 milímetros ou com a Auricon, que gravava o som diretamente na câmera, fez filmes-reportagens na mesma linha da TV Cultura. Os dois primeiros – 'A Batalha dos Transportes', sobre a dificuldade de deslocamento dos trabalhadores, e 'A Escola de 40 mil Ruas', sobre as razões que levavam meninos a cometer pequenos crimes – foram proibidos num primeiro momento. “O Armando Nogueira, diretor de Jornalismo na época, não me falava se o censor que trabalhava na Globo tinha proibido ou se era censura interna. Em 1974, haveria eleições para o Congresso e tal. No começo de 1975, o Armando falou: ‘Olha, liberei os filmes, vamos passar os dois’. Aí, no intervalo de um mês, os dois foram exibidos”, recorda.
'Caso Norte'
Apesar de trabalhar para diversos programas, João Batista de Andrade acabou mais associado ao 'Globo Repórter', onde conseguiu se reencontrar como cineasta. Nessa fase, seu trabalho mais importante foi o 'Caso Norte' (1977). Conhecendo a história de dois migrantes que haviam brigado, ele misturou atores e personagens reais para dramatizar o que aconteceu. “Sinceramente, é espetacular, é impressionante como deu certo. Eu chamei os guardas que prenderam o José Joaquim Santana, um dos migrantes. Quando eu encenei tudo isso, o tiro, o personagem do Joaquim Santana correndo pela rua com o revólver e tal, eu falei para os policiais: ‘Agora vocês prendem ele’. Aí saíram arrastando o preso, abriram a tampa do carro e jogaram ele lá dentro. Eu entro e falo assim: ‘O que aconteceu aqui’? Quer dizer, quebro toda a ficção e jogo o filme para uma reportagem”, detalha.
Globo Repórter: Caso Norte (1978)
'Wilsinho Galileia'
O filme seguinte, 'Wilsinho Galileia', só foi exibido anos depois. O cineasta tentou revelar que razões levaram seu personagem, real, a se tornar um criminoso perigoso, buscando desvendar a origem da violência no Brasil. A Globo decidiu exibir o filme em duas partes, em 1978, às vésperas da Anistia. O censor de plantão na emissora pediu para assistir antes e vetou a exibição. A Globo tentou liberar em outras instâncias da censura federal no Rio e em Brasília, mas não conseguiu. O filme acabou sumindo e reapareceu 24 anos depois, numa mostra sobre o cineasta realizada em São Paulo. A exibição gerou convites para apresentações em festivais da Europa.
Quando realizou 'Wilsinho Galileia', João Batista de Andrade já não era contratado da Globo. Depois de receber o prêmio de melhor filme e diretor pelo longa-metragem 'Doramundo' (1978), no Festival de Gramado, ele pediu demissão da Universidade de São Paulo, onde dava aula, e decidiu voltar a se dedicar ao cinema, trabalhando de forma independente para a emissora. Além de 'Wilsinho Galileia', fez um especial sobre a Revolução de 32 em seu cinquentenário, com destaque para a Constituinte, desejo de quem lutava pela redemocratização do país.
Globo Repórter: Wilsinho Galileia - 1ª parte (1978)
Globo Repórter: Wilsinho Galileia - 2ª parte (1978)
'O Homem que Virou Suco'
Em 1980, lançou aquele que se tornaria seu filme mais famoso, 'O Homem que Virou Suco'. “O personagem que originalmente seria perseguido e esmagado virou um personagem que lutava pela cidadania com muita vitalidade, porque não era uma invenção abstrata minha. Ganhou o prêmio no Festival Internacional de Moscou com todo mundo, os americanos, os japoneses, os franceses, havia 20 e tantos filmes concorrendo, uma coisa impressionante”, diz.
Nos anos seguintes, João Batista de Andrade continuou ativo, lançando 'A Próxima Vítima' (1983), filme que se passa durante as eleições e fala de abertura política, e 'Céu Aberto' (1985), documentário sobre a morte de Tancredo premiado no Office Catholique International du Cinéma, na França. Mas no início dos anos 1990, quando estava captando recursos para realizar um filme sobre Vladimir Herzog, veio o Plano Collor e inviabilizou este e muitos outros projetos cinematográficos.
Autoexílio
A nova realidade fez com que o cineasta optasse por um autoexílio, mudando-se para uma pequena fazenda em Mato Grosso, onde passou 12 anos. Com o tempo, a vontade de voltar e de filmar foi crescendo, e ele escreveu novos roteiros. Mas enquanto retomava a carreira, recebeu um convite para ser secretário de Cultura no Estado de São Paulo, em 2005. Aceitou e conseguiu, no período como gestor, aprovar uma lei que trouxe muitos recursos para a cultura. “Eu fiquei menos de dois anos, fiz uma gestão superativa, muito democrática. Polemizei demais com a área. A lei é fantástica. Hoje, só de incentivo fiscal, são quase 130 milhões em São Paulo, fora os editais, que são mais 40 ou 50 milhões. Eu fiz isso em 20 meses, entre a discussão toda, a formulação da lei, enfrentar a burocracia, redigir e aprovar na Assembleia, para depois o governador sancionar e colocar em prática”, afirma.
Homenagem a Vlado
Também em 2005, quando o assassinato de Vladimir Herzog completava três décadas, João Batista de Andrade realizou o documentário que pretendia. Em 'Vlado – 30 Anos Depois', homenageou o amigo e fez um relato contundente sobre a ditadura, mostrando seus porões, a divisão entre os militares e a tentativa de golpe da linha dura contra o ex-presidente Ernesto Geisel, com o objetivo de evitar a abertura política.
O tema voltou a ser abordado em 1987, ano em que o cineasta fez 'O País dos Tenentes', sobre o ciclo dos militares no Brasil desde 1922, e nos longa metragens 'Veias e Vinhos' (2006) e 'Travessia' (2009), ligados à ideia de opressão.
João Batista de Andrade também exercitou o ofício de escritor, publicando livros como 'Perdido no Meio da Rua', que reflete o que aconteceu com ele nos anos 1960, quando teve de fugir da universidade. Em 2012, tornou-se presidente do Memorial da América Latina e, de maio a junho de 2017, foi ministro da Cultura do governo Temer.
FONTE:
Depoimento de João Batista de Andrade ao Memória Globo em 10/03/2014. |