João Araújo foi um dos principais produtores musicais brasileiros. Nascido no Rio de Janeiro, em 1935, o pai do cantor Cazuza trabalhou nas maiores gravadoras do país e fundou a Som Livre, braço fonográfico da Globo, onde atuou por quase 35 anos. Esteve à frente da criação de dezenas de trilhas sonoras de novelas e minisséries da Globo e lançou artistas importantes da MPB, como Gal Costa.
Em sua trajetória, viveu a mudança do vinil para CD e do CD para o MP3. Intuindo que o mercado ainda traria muitas transformações, em 2004, afastou-se da empresa, cedendo espaço aos mais jovens. Manteve-se por três anos como conselheiro da Som Livre e presidente honorário da Associação Brasileira dos Produtores de Disco. Foi o único brasileiro a receber o prêmio Grammy Latino, um reconhecimento de seu trabalho e dedicação à música brasileira. Morreu em 2013, aos 78 anos, após quase 50 anos de carreira.
Em 2007, João Araújo recebeu o prêmio Grammy Latino, pela sua dedicação à música brasileira. Em seus mais de 30 anos à frente da Som Livre, teve papel importante no surgimento de muitos talentos.
O produtor musical João Araújo recebe o prêmio Grammy Latino, nos EUA, G1, 1/12/2013.
Trajetória
Nascido em 1935, o carioca João Alfredo Rangel de Araújo viveu toda a sua vida no Leblon, bairro da Zona Sul carioca. Filho de Agenor de Miranda Araújo e Maria José Rangel de Araújo, ficou publicamente famoso não pela ascendência, mas sim pela descendência, como o pai de Cazuza. Contudo, bem antes do sucesso do cantor e compositor que está entre os grandes nomes da MPB em sua geração, João Araújo já havia se tornado uma referência como produtor e executivo de gravadoras, especialmente no comando da Som Livre, onde ficou por quase 35 anos.
Ele começou a trabalhar muito cedo, na adolescência, em função de uma doença que levou seu pai a ficar internado por meses. Não chegou a completar o ensino médio, por ter se envolvido em um acidente de carro quando ainda estudante e, antes de iniciar a trajetória na música, teve uma breve passagem por um laboratório farmacêutico, experiência que serviu apenas para mostrar que seu caminho era outro. “Somos seis irmãos, eu sou o caçula. Minha diferença para o mais velho era razoável: ele já era homem feito, tinha dois laboratórios, e me levou para trabalhar com ele. Não gostei muito e, na primeira oportunidade, saí”, conta.
Início na música
A primeira oportunidade de trabalhar com música veio por indicação de um cunhado, que ofereceu um emprego na Copacabana Discos, na década de 1950. Seu primeiro trabalho era fazendo assessoria de imprensa: estabelecer contato com jornalistas para divulgação dos artistas contratados. Em seguida, João Araújo foi para uma das gigantes do setor à época, a EMI-Odeon. Inicialmente atuando no contato com a imprensa, logo passou a trabalhar diretamente com os músicos, na direção adjunta artística. Seu papel era indicar novos artistas, acompanhar gravações e participar de reuniões de criação e promoção. Mas foi na gravadora em que atuou na sequência de sua carreira, a Philips, que lançou os primeiros artistas de renome, como Gal Costa, Caetano Veloso e Elis Regina. “Caetano e Gal foram os primeiros que contratei. Imediatamente, gravei com eles um disco, long-play, vinil, chamado 'Domingo'. Tem uma capa bonita: eles dois sentadinhos em uma praça. Foi o primeiro disco que eles gravaram”, recorda.
Antes de finalmente se estabelecer na Som Livre, João Araújo trabalhou na RGE. E poderia ter ficado mais tempo lá, não fosse o futebol. Jogando uma pelada semanal com Glauber Rocha, Paulo Mendes Campos e Luiz Carlos Barreto, entre outros importantes nomes da cultura do país, ele ouviu de Armando Nogueira, também companheiro de partidas, que o jornalista poderia fazer o meio de campo entre João e Walter Clark, então o principal executivo da Rede Globo. “Tinha um pequeno vestiário, a gente ia de bermuda para botar o calção e o tênis. Então, o Armando Nogueira chegou para mim e disse: ‘João, você não mexe com negócio de disco?’ Respondi: ‘Mexo, sim; mexo muito, há não sei quantos anos.’ Ele falou: ‘Você conhece o Walter?’”. Foi assim que começou uma longa trajetória do que seria a maior gravadora brasileira.
Criação da Som Livre
Com a intermediação de Armando Nogueira, o encontro com Walter Clark aconteceu, e João Araújo foi convidado a participar da criação de uma gravadora. Aceitou e ajudou a fundar a Som Livre, em 1969. No início, a intenção da Globo com a criação da nova empresa era apenas lançar trilhas sonoras de novelas, algo que começava a ganhar o gosto do público. “Era um mercado em que o vinil estava se desenvolvendo muito bem. Primeiro era um de dez polegadas, depois passou a ser o de 12, de que os consumidores gostavam muito, porque tinha um campo maior para trabalhar fotografia e tornar a capa mais interessante”, explica.
Para a primeira trilha lançada pela gravadora, de 'O Cafona' (1971), houve a necessidade de contratar cantores, pois a indústria fonográfica não queria emprestar artistas, temendo a concorrência. Como tudo funcionou como esperado, com vendas crescentes, foi lançada também uma trilha internacional. Quando a Som Livre foi criada, João Araújo não tinha nem sala. Muitos contratos eram datilografados pela secretária do executivo no restaurante de um prédio da Globo, no bairro do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. Para vencer a resistência das gravadoras, ele primeiro se associou à EMI-Odeon, que fabricava os discos físicos. Quando o êxito comercial dos lançamentos provou a todos que haveria oportunidade de bons negócios, Araújo negociou royalties com as empresas pela cessão das músicas e dos artistas.
Trilhas especiais e de artistas
Atuando em conjunto com a área de dramaturgia da Globo, João Araújo tornou-se um dos responsáveis pela realização de trilhas sonoras exclusivas, compostas para produções como minisséries, novelas e especiais de música. Sob sua gestão, grandes nomes da música brasileira emprestaram seu talento para fazer história na televisão. “Dorival Caymmi ia fazer uma trilha inteira, mas fez só a abertura. Eu ligava de brincadeira para a Stella, mulher dele, e dizia assim: ‘Olha, o Dorival não quer trabalhar’. Eu sei que nessa confusão toda saiu uma música: Modinha para Gabriela. E depois não saiu mais nada, mesmo com toda a energia da dona Stella”.
A história com Caymmi aconteceu em 1975, quando já tinham passado pelas produções da Som Livre nomes como os de Chico Buarque, Roberto e Erasmo Carlos, Elza Soares, entre outros. Com a consolidação da gravadora, e diante da escassez de artistas disponíveis para suprir a demanda crescente de trilhas sonoras, João Araújo decidiu criar um cast de artistas exclusivos, entre os quais Rita Lee, Fábio Jr., Xuxa e Novos Baianos. O trabalho com artistas durante um período tão crítico da história nacional, quando o Brasil vivia sob a censura imposta pelo Regime Militar, lhe rendeu algumas experiências difíceis.
É o caso do episódio ocorrido no Festival da Nova Música Popular Brasileira – MPB 80, realizado em 1980 pela Globo, quando uma música de Baby Consuelo e Pepeu Gomes, do grupo Novos Baianos, o levou à Polícia Federal. Um representante do aparelho repressivo não gostou da associação da letra de 'O Mal É o que Sai da Boca do Homem' e levou o executivo para depor e o intimidou com o registro de suas digitais. No futuro breve, a ditadura acabaria e o processo do produtor, também.
Anos mais tarde, em 1988, outra música de abertura se tornaria famosa, a da novela 'Vale Tudo'. Além de marcante, teria, para Araújo, um valor pessoal: era Cazuza o autor de Brasil. Mas neste caso, como em tudo o que dizia respeito ao trabalho do filho, João Araújo preferiu não se envolver, para evitar qualquer ruído sobre favorecimento. “Não opinava em nada que fosse do Cazuza, porque eu me ausentava. Não queria que dissessem que o paizinho está fazendo isso e aquilo”, pontua. Infelizmente, no lançamento da novela, não foi possível comemorar o sucesso. Araújo estava embarcando para Boston, nos Estados Unidos, em busca de tratamento para Cazuza, que lutava contra a Aids. A doença, que à época não contava com medicamentos de controle, mobilizou a família, com a esposa Lucinha Araújo à frente, e foi acompanhada de forma emocionada pela sociedade.
“Eu vivi a história do Cazuza, ouvindo ele bater máquina de noite, de vez em quando fazer um som aqui, ali e tal, e não sabia que ele estava produzindo músicas, fazendo algo que ia se tornar a memória da música popular de alguma maneira. O garotinho foi inscrito no pequeno clube, ou no médio clube, com uma obra relativamente pequena, mas dentro da qual há pelo menos 30 ou 20 músicas que vão ser tocadas em qualquer época.”
Durante a trajetória na Som Livre, João Araújo criou diversos selos, como o Documento, para lançar clássicos da cultura brasileira – para além da música. Por meio do selo, a gravadora produziu discos de pequenas tiragens como 'Os Quatro Mineiros', de 1981, que imortalizou conversas de Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Hélio Pellegrino.
Também lançou sucessos que ultrapassaram as fronteiras do país, como o caso de Xuxa, que se tornou o fenômeno fonográfico da Som Livre, liderando vendas na América Latina. O seu primeiro disco na gravadora, 'Xou da Xuxa', lançado em 1986, vendeu mais de 2,5 milhões de cópias. O 'Xegundo Xou da Xuxa', lançado no ano seguinte, com a participação do Trem da Alegria, alcançou a liderança de vendas na América Latina. Mas foi com Xou da Xuxa 3, de 1988, que bateu a marca de 3,2 milhões de cópias vendidas.
No final de 2004, após quase 35 anos na presidência da empresa, o executivo sentiu que era o momento de deixar a tarefa de enfrentar os desafios do futuro para os mais jovens. João Araújo já havia vivenciado a mudança do vinil para CD e do CD para o MP3, a principal tecnologia de compressão digital de músicas então, e sabia que o mercado ainda traria muitas novidades. Dois anos depois, por sua importância, experiência e contribuição para a música, o produtor ganhou o Grammy Latino, na categoria “Prêmio do Conselho Diretor”. Manteve-se ainda por três anos como conselheiro da Som Livre, após deixar a presidência, e foi escolhido pelos colegas das demais gravadoras como presidente honorário da Associação Brasileira dos Produtores de Disco. “Naturalmente, sem salário”, lembrava, aos risos.
Despedida
O produtor musical morreu, aos 78, em 30 de novembro de 2013. Ele enfrentava problemas de saúde e teve uma parada cardíaca, em casa. No dia de sua morte, 30 de novembro, o 'Jornal Nacional' relembrou a carreira do executivo, que dedicou grande parte de sua vida à música brasileira.
Morre o produtor musical João Araújo, aos 78 anos, 'Jornal Nacional', 30/11/2013
FONTE:
Depoimento concedido ao Memória Globo por João Araújo em 31/05/2010. |