Por Memória Globo

Zé Paulo Cardeal/Memória Globo

Costuma-se dizer que nada acontece por acaso. Talvez por isso, ao assistir à peça 'A Ratoeira', de Agatha Christie, Irene Yolanda Ravache Paes de Mello, então com seus 16 anos e deslumbrada com o que via, tenha decidido: “Acho que posso trabalhar com esse negócio.” O que não chegava a significar exatamente um desejo de ser atriz, mas de participar daquele mundo mágico que via no palco. De lá pra cá, a mocinha que estudou piano e pensava se tornar bailarina mudou de rumo. Estudou teatro, passou pelo telejornalismo, mas seu rosto e seu nome se tornaram conhecidos do público pelas novelas, minisséries e peças nas quais atuou, na televisão e nos palcos. A trajetória de Irene Ravache confirma um talento dramático que ela nem sonhava possuir.

“Sou uma atriz com enorme curiosidade pelos meus personagens, pelo que me possa estar reservado. Ainda sou uma mulher em processo de aprendizagem”

Irene Ravache em 'Pega Pega', 2017 — Foto: João Miguel Júnior/Globo

Início da carreira

O acaso sempre pareceu estar ao seu lado. Seu noivo ia fazer um teste para um papel numa peça de Gianfrancesco Guarnieri, e ela resolveu acompanhá-lo. Acabou no elenco de 'Eles Não Usam Black-Tie', no Teatro do Centro Popular de Cultura, o CPC, da União Nacional dos Estudantes, a UNE. Tudo porque o diretor Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, lhe pediu para ler parte do texto enquanto as atrizes que seriam testadas para o personagem não chegavam. Irene leu, convenceu e acabou como a Mariazinha, namorada do filho do protagonista. Ao chegar em casa com a notícia, a mãe, Dona Lygia Azevedo Ravache, funcionária pública e esposa do mecânico Carlos Alberto Ravache, estranhou: a filha definitivamente não devia estar passando bem. Motivo para que lhe marcasse um eletroencefalograma.

“Foi uma experiência boa, enriquecedora para uma jovem. Fazíamos teatro em sindicatos, em praças públicas, em cima de caminhão. Nos sindicatos, sempre havia debates depois da encenação”, lembra. Era a década de 1960, da ditadura militar e do teatro engajado. “Quando a polícia chegava, como costumava acontecer na época, o motorista tocava o caminhão, e você, no meio da cena, caía sentada”. Por outro lado, foi nessas aventuras que a ruivinha de rosto redondo, criticada por não ter cara de favelada para o papel, foi começando a ver a vida por um viés mais político. “A partir daí, da convivência com Oduvaldo Vianna, com o pessoal da UNE, passei a ter uma visão mais crítica, mais analítica, das coisas, que até então eu não tinha”.

Estreia na TV

A estreia na televisão aconteceu na TV Rio, também nos anos 1960, e foi ligada ao jornalismo. O programa era 'Pergunte ao João', que reproduzia um sucesso da Rádio Jornal do Brasil. “Eu lia as perguntas dos telespectadores, ligadas a conhecimentos gerais, e uma marionete respondia.” Na mesma emissora, Irene também lia pequenas notas num programa que reunia a fina flor da televisão da época: Heron Domingues, o conhecidíssimo 'Repórter Esso', dizia as notícias, o comentarista João Saldanha falava de esportes, o jornalista e escritor Nelson Rodrigues fazia uma crônica carioca e Ibrahim Sued se encarregava da coluna social. “Era o que havia de melhor, de mais curioso, de mais interessante”, resume.

Na Globo

Chegar à Globo foi questão de sorte e determinação. “Não fui convidada para ir para a Globo. Eu fui”. Havia tido seu primeiro filho, precisava de emprego, e a Globo, em 1965, estava começando no Rio. Saiu para fazer dois testes: um para a peça 'Hello, Dolly', produção de Oscar Ornstein, no Teatro Mesbla, e outro para a Globo. Mãe de primeira viagem, amamentando, preocupava-se com a demora do teste e com o filho que ficara em casa. Na hora, esqueceu tudo, inclusive a música que tinha preparado. Cantou a primeira coisa que lhe veio à cabeça, 'Parabéns pra Você', dançou com o coreógrafo – e conseguiu o papel.

Na Globo, a atriz deveria procurar pelo diretor Rubens Amaral. Passou horas esperando, até o momento em que foi informada pela secretária de que ele havia acabado de sair. “Vi que ele estava entrando no carro e corri atrás. ‘O senhor é o Rubens Amaral?’ ‘Sou.’ ‘Pois está cometendo um erro gravíssimo.’ ‘E você vai me dizer qual é’. ‘É que eu não estou trabalhando nesta emissora – isso é um erro enorme.’ Disse isso e virei as costas. Ele saiu do carro e perguntou por quê. ‘Porque eu canto, danço, represento e apresento telejornal’. Na porta da emissora, ele mandou que ligassem para o diretor Paulo de Grammont, repetiu o que eu tinha dito e pediu que me testasse por uma semana para saber se tudo aquilo era mesmo verdade. E foi logo avisando: ‘Se não for, vou espalhar por todo o Rio de Janeiro que tem uma moça doida chamada Irene Ravache.’”, recorda.

Irene Ravache em 'Champagne', 1983 — Foto: Acervo/Globo

'Paixão de Outono', 'Eu Compro Essa Mulher', 'Os Galãs Atacam de Madrugada,' 'Beto Rockefeller',' A Viagem'. “Essa novela foi um marco no meu trabalho. Ganhei prêmios com ela”. 'O Profeta', 'Cara a Cara', 'Sol de Verão', 'Guerra dos Sexos', 'Champagne', 'O Machão'. Foram inúmeras novelas, em passagens pelas diferentes emissoras, TV Tupi, TV Excelsior, TV Bandeirantes e Globo, em diferentes épocas. No 'TV Mulher', nos anos 1980, chegou a substituir Marília Gabriela nas férias e conduziu várias entrevistas. Uma delas, inclusive, com a própria Marília Gabriela.

'TV Mulher': Ponto de Encontro

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'TV Mulher': Irene Ravache entrevista Ayrton Senna (1984)

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Na novela 'Beto Rockefeller', escrita por Bráulio Pedroso e exibida pela TV Tupi entre 1968 e 1969, fazia Neide, irmã do protagonista Beto, vivido pelo ator Luis Gustavo. “Foi um divisor de águas na história da teledramaturgia, uma novela divertida, em que nenhum dos personagens estava muito ligado a drama.” A novela já invertia pressupostos até então intocados: o mocinho da trama não era exatamente um mocinho, mas um trambiqueiro, inteiramente diferente dos galãs de terno e gravata que se via à época. E o diretor era um ator, o Lima Duarte. Neide era apaixonada pelo patrão, um homem casado. Mas pelos rigores da censura, não podia ter beijo, não podia nada.

Irene Ravache em 'Sassaricando', 1987 — Foto: Nelson Di Rago/Globo

Na Globo, em 'Sassaricando' (1987), Irene Ravache foi parte do trio de mulheres formado com Tonia Carrero e Eva Wilma, dispostas a arranjar marido, de preferência rico. Paulo Autran era o milionário que ficava viúvo e acabava se envolvendo com as três. Com o ator, ela trabalhara antes na primeira versão de 'Guerra dos Sexos', na qual interpretou a Bárbara. Quase 30 anos depois, atuaria novamente na trama de Silvio de Abreu, que assinou o remake de 'Guerra dos Sexos' (2012). Desta vez, o papel de Irene Ravache seria o da protagonista Charlô.

Irene Ravache, Enrica Ducan, Claudia Raia, Bianca Comparato e Lima Duarte em 'Belíssima', 2005 — Foto: Márcio de Souza/Globo

Dos seus trabalhos feitos nos anos 2000, a atriz destaca a Katina de Belíssima, outra novela de Silvio de Abreu. A personagem era grega, casada com um turco, povos que foram inimigos. O turco era Murat, vivido por Lima Duarte. “Katina era vital, sensual, e isso reforçava a ideia de pessoas que já não são tão belas nem tão jovens podiam ter um entendimento homem e mulher bem bacana”. Em Suave Veneno, viveu Eleonor, a mulher de José Wilker, autodenominado imperador do mármore e apaixonado pela personagem de Gloria Pires. Em compensação, Eleonor caía de amores pelo jovem Rodrigo Santoro, que vivia um pintor iniciante a quem ela ajudava. “A repercussão entre as menininhas era enorme. Elas viviam me perguntando sobre Santoro, que ainda nem tinha feito o filme Bicho de Sete Cabeças, mas já tinha fã-clube”.

EXCLUSIVO MEMÓRIA GLOBO

Webdoc novela - 'Sassaricando' (1987)

Webdoc novela - 'Sassaricando' (1987)

Webdoc novela - 'Belíssima' (2005)

Webdoc novela - 'Belíssima' (2005)

Atuou em Eterna Magia (2007), que acabou lhe rendendo uma indicação para o Prêmio Emmy 2008 de melhor atriz, por sua interpretação como Loreta O’Neill; e nas minisséries 'A Casa das Sete Mulheres' (2003) e 'Amazônia – De Galvez a Chico Mendes' (2007). A atriz esteve ainda 'Passione' (2010).

Em 2015, a atriz recebeu o convite para interpretar a vilã de 'Além do Tempo', de Elizabeth Jhin: a Condessa Vitória, uma mulher vaidosa, que não se preocupa com os sentimentos dos outros. ‘Ela se acha acima do bem e do mal’, define a autora. Dois anos depois, outra personagem mau-caráter: a milionária Sabine Fevre de 'Pega Pega', de folhetim de Claudia Souto para o horário das 19h. Em 'Os Dias Eram Assim', novela de Ângela Chaves e Alessandra Poggi, Ravache deu seu depoimento sobre a ditadura militar, período em que a trama se passa.

Éramos Seis

Retornou à faixa das 18h em 'Espelho da Vida' (2018), de Elizabeth Jhin, em dois papéis: Margot e Hildegart Breton. Em seguida, deu vida a Tereza no remake de 'Éramos Seis' (2019), de Ângela Chaves, baseada no romance de mesmo nome de Maria José Dupré. A participação teve um significado especial para os telespectadores: Irene Ravache foi a protagonista, Lola (dessa vez papel de Gloria Pires), na versão de 1994 escrita por Silvio de Abreu e Rubens Ewald Filho. Na ocasião, outra presença ilustre foi a de Nicette Bruno, que defendeu a protagonista na versão de 1977 na TV Tupi, escrita pela mesma dupla.

Irene Ravache e Gloria Pires em Éramos Seis, 2019 — Foto: Paulo Belote/Globo

Para Irene Ravache, exercer a profissão de atriz foi a possibilidade de entender a si mesma e ao outro. E esse aprendizado se amplia a cada novo personagem, assim como também aumenta a curiosidade, traz a vontade de aprender mais. “A verdade é que você nunca mais é a mesma pessoa depois de um personagem”, avalia.

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