Por Memória Globo

Paulo Jabur/Memória Globo

Dos tempos em que chegou ao Rio de Janeiro e, para sobreviver, precisou vender sanduíche natural na praia e nas coxias das peças em que atuava, ela aprendeu a dar valor ao que realmente importa. Já de seus maiores sucessos, como as personagens Lulu, de Roque Santeiro, Leila, de Vale Tudo, e Dulce, de Morde & Assopra, ela renova a lição de que, neste país, o ator precisa mesmo matar um leão por dia para se manter dignamente na ativa. A atriz Cassia Kis é tão intensa quanto a pessoa Cassia Kis. Aliás, Cassia Kis, nome que adotou para homenagear a família de seu marido. A atriz é uma usina de emoções e é dali que tira a inspiração para trabalhar.

Eu gosto de contar histórias do jeito mais verdadeiro possível, gosto de viver as experiências de forma intensa. A nossa profissão é a melhor do mundo, porque temos a oportunidade de ser tudo, basta querer.

Cassia Kis em Os Dias Eram Assim, 2017 — Foto: Acervo/Globo

“Quer ser um bom ator? Pegue sua vaidade e ponha no lixo. O ator tem que servir à história que vai contar. Por exemplo, para fazer a Maria, da minissérie JK, peguei toda a minha força e meu histórico dramático e botei nela. Então, o resultado foi muito impressionante para mim. A minha vida é meu instrumento para trabalhar. Aprendi a acreditar no que faço. Todas as personagens mudaram muito a minha vida, algumas me ajudaram a tomar decisões importantes. Quando fiz Pantanal, por exemplo, decidi que queria ter filhos. Quando botaram uma criancinha de uma semana mamando no peito, eu falei: ‘Cacilda, preciso arrumar um filho. Meu Deus do céu, o que estou fazendo? Já estou com não sei quantos anos e não tenho filho, não tenho marido?’ Mexi com a minha vida de A a Z. Hoje, tenho quatro filhos. Para se ter uma ideia de como essas coisas mexem com a gente, amamentei aos 50 anos”, analisa a atriz.

Artes cênicas

Filha caçula de um mecânico semi analfaberto e uma dona de casa, Cassia Kis chegou a prestar vestibular para a faculdade de História, cismou de cursar matemática, mas optou mesmo foi pelo teatro, que já a havia conquistado desde os tempos de escola. Após uma dica de uma professora de literatura, matriculou-se na Fundação das Artes, então uma das mais conceituadas escolas de música e artes da América Latina, que abrira uma filial em São Caetano do Sul. Participou de uma companhia de teatro amador, rodou a cidade apresentando peças e participou de festivais amadores pelo Estado, até que conheceu o hoje respeitado diretor Ulysses Cruz, que a convidou para atuar em Alice, o Que uma Menina Bonitinha como Você Faz num País como Este?, de Paulo Afonso Grisolli. “Eu cantava 15 músicas, com 15 coreografias, cercada de adultos. Fiz tudo na intuição. Foi bárbaro, lindo”, lembra.

A atriz estava definitivamente apaixonada pelas artes cênicas, mas uma paixão mais humana, pelo diretor teatral Marcelo Souza, mudou o rumo da sua vida, trazendo-a para o Rio de Janeiro. “No Rio, fiz parte do grupo do Marcelo. Ficamos casados apenas um ano. Na época, eu sobrevivia do sanduíche natural que eu fazia e vendia na Praia da Barra. Levava, também, para vender no teatro, na coxia, aos meus colegas. Eu trabalhava na cozinha de um restaurante natural, no Leblon, em troca de alimentação e do dinheiro da condução. Não ganhava nada, não tinha salário”, lembra.

Amigo de Cassia, o ator Luiz Armando Queiroz, já falecido, indicou-a para o ator Flávio Migliaccio, que protagonizava a série Tio Maneco na TV Educativa. Ela já tinha experiência, pois fizera, na TV Bandeirantes, em São Paulo, a novela Cara a Cara, em 1979. Foi aprovada e trabalhou um bom tempo fazendo de tudo na programação da emissora estatal.

Estreia na Globo

Em 1984, fez um teste para atuar em Livre para Voar, de Walther Negrão, na Globo. “Eu e Miguel Falabella fizemos juntos nosso primeiro teste na Globo”, conta. Não passou, mas a atriz que ficara com a vaga, Eliane Giardini, acabou desistindo, e o diretor Wolf Maya a convidou para atuar. “Lembro do meu entusiasmo, da minha alegria, fiquei pulando de felicidade. Agarrei aquela personagem com unhas e dentes, uma entrega absoluta, um brilho no olhar”, recorda. É claro que deu certo. A partir daí, atuou em episódios do programa Caso Especial e foi convidada para o elenco da minissérie Padre Cícero (1984), de Aguinaldo Silva e Doc Comparato. Mas foi logo em seguida, em 1985, que ela viveu seu primeiro grande sucesso: a Lulu das Medalhas, em Roque Santeiro, de Dias Gomes e Aguinaldo Silva. “Foi um marco na história da telenovela. Foi realmente um divisor de águas, um sucesso estrondoso. Eu fiz uma personagem que repercutiu muito. Era a novela das oito e eu estava em três, quatro capas de revista por semana. Foi interessante, porque eu ainda estava muito envolvida em fazer as coisas do dia a dia: andava de ônibus e ainda ganhava muito pouco, apesar de trabalhar na novela das oito, que fazia um sucesso fantástico”, analisa.

EXCLUSIVO: Memóriadoc da novela - Vale Tudo (1988)

EXCLUSIVO: Memóriadoc da novela - Vale Tudo (1988)

Cassia foi convidada para protagonizar Roda de Fogo, de Lauro César Muniz, mas não aceitou porque estava em cartaz, dividindo a cena com Fernanda Montenegro. Não seria possível assumir ambos os compromissos. Mas foi chamada para atuar em Brega & Chique, de Cassiano Gabus Mendes, em 1987. Em seguida, viveu Leila, em Vale Tudo (1988), de Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères. Um detalhe fundamental: Leila foi quem matou Odete Roitman. “A novela também teve um sucesso avassalador. A morte de Odete Roitman tomou tamanha dimensão, só se falava nisso, teve até concurso na televisão para adivinhar quem havia matado Odete Roitman. No dia seguinte, eu estava estampada na primeira página de todos os principais jornais do país, como a assassina de Odete Roitman. Foi marcante, histórico!”, lembra.

Contratada por obra, no entanto, foi para a TV Manchete fazer Kananga do Japão, de Wilson Aguiar Filho (1989), e participar de Pantanal, de Benedito Ruy Barbosa (1990), outro marco na TV brasileira. Sua entrega era total, como não podia deixar de ser em se tratando de Cassia Kis. “Fiquei 40 dias no Pantanal e lembro que estava tão impregnada daquela região que ficava com meu figurino, uma camisola, dia e noite. Meus pés eram lama só; as unhas, pretas. Era uma loucura. Toda picada de mosquito. Não tinha maquiagem, não tinha nada; meu cabelo comprido, meio ensebado. Eu estava totalmente integrada ao lugar. Então, na hora de gravar, eu não tinha que me concentrar em nada, já era dona daquela história. Foi lindo fazer aquela novela no Pantanal”, lembra.

Em seguida, voltou para a Globo para atuar em Barriga de Aluguel, de Gloria Perez (1990), mais um sucesso em sua carreira. Também atuou em diversos Casos Especiais e minisséries, e emprestou sua voz para a narração em off do Criança Esperança. A atriz gosta de destacar o episódio Mamãe Coragem, de Você Decide, como “uma das histórias mais lindas” de que já participou. “Posso garantir que foi uma das coisas mais bonitas que vi em televisão", afirma. Na trama, Cassia era uma catadora de lixo que tinha cinco filhos e se via num impasse: ou vendia um filho para salvar os demais ou assumia aquela vida, cheia de percalços e miséria. “Eu gosto de contar uma história do jeito mais verdadeiro possível, viver as experiências de forma intensa. Se vou fazer o papel de catadora de lixo, quero viver aquilo; só falta ir morar embaixo da ponte”, revela.

Em 1994, em Fera Ferida, ela foi Ilka Tibiriçá, dona de um guarda-roupa extravagante – no melhor estilo anos 60 –, a personagem passou boa parte da novela tentando inventar uma receita capaz de curar a impotência do amado. Quando não se dedicava a empurrar ervas milagrosas goela abaixo do pobre homem, Ilka estava à frente da TV assistindo pela enésima vez ao filme O Candelabro Italiano. Uma série de novelas e minisséries, além de participações especiais, completam seu currículo na Globo: Quem é Você? (1996), de Solange Castro Neves e Lauro César Muniz; Por Amor (1997), de Manoel Carlos; o remake de Pecado Capital (1998), assinado por Gloria Perez a partir do original de Janete Clair; Esplendor (2000), de Ana Maria Moretzsohn. Em Porto dos Milagres (2001), de Aguinaldo Silva e Ricardo Linhares, viveu a vilã Adma, mulher do inescrupuloso Félix, personagem de Antonio Fagundes.

Voltou a viver uma vilã em Eterna Magia (2007), de Elizabeth Jhin. Participou de outras duas novelas da autora, Escrito nas Estrelas (2010) e Amor Eterno Amor (2012). A atriz também atuou em Sabor da Paixão (2002), de Ana Maria Moretzsohn, Agora é Que São Elas (2003), de Ricardo Linhares, Cobras & Lagartos (2006), de João Emanuel Carneiro, Paraíso (2009), adaptada por Edmara e Edilene Barbosa a partir do original escrito pelo pai delas, Benedito Ruy Barbosa, Morde & Assopra (2011), de Walcyr Carrasco, e Amor Eterno Amor (2012), de Elizabeth Jhin.

Já em Felizes para Sempre?, que foi ao ar em 2015, a atriz interpretou uma sedutora e aventureira fotógrafa que já viajou o mundo todo a trabalho. No mesmo ano, deu vida à sofrida Djanira na novela A Regra do Jogo. Em 2016, esteve na pele de Odete, a humilde mãe de Beatriz, personagem de Bruna Marquezine em Nada Será Como Antes. Em 2017, interpretou Vera Reis, dona de uma livraria, viúva e mãe dedicada de Gustavo e Renato na superssérie Os Dias Eram Assim. Também participou da novela Segundo Sol, em 2018, como Claudine Athayde, que, em seu leito de morte, revela a Roberval que ele é filho do patrão. No mesmo ano, fez também uma participação na série Ilha de Ferro. Em 2020 e 2022, foi a bruxa Haia Lachovicz nas duas temporadas da série Desalma, que estreou no Globoplay.

Teatro

No teatro, já foi dirigida pelos principais nomes da direção teatral brasileira, como Ulysses Cruz, Augusto Boal e José Possi Neto, em inúmeras peças. Participou, ainda, de 17 longas-metragens, entre os quais Bicho de Sete Cabeças, de Laís Bodanzky (2000), quando ganhou o Troféu Passista de atriz coadjuvante, do Festival de Recife, e o Prêmio Qualidade Brasil 2001, de melhor atriz.

Campanhas de saúde

Cassia Kis emprestou sua imagem, ainda, para duas campanhas sociais de grande alcance popular: em 1989, estrelou uma campanha do Ministério da Saúde sobre a prevenção do câncer de mama; em 2006, foi madrinha, no Brasil, da Semana Mundial do Aleitamento Materno, promovida pelo Ministério da Saúde e a Sociedade Brasileira de Pediatria. 

Cassia Kis em Fera Ferida, 1994. — Foto: Acervo/Globo

Fonte

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