Contar melhor a história, em vez de contá-la primeiro. Pesquisá-la sob vários ângulos e ouvir os dois lados. Essas são diretrizes da carreira do premiado jornalista Caco Barcellos, que ganhou notoriedade como autor de reportagens investigativas em defesa dos direitos humanos. Desde 2006, ele atua como diretor do Profissão Repórter, uma verdadeira escola de jornalismo, onde jovens repórteres investigam fatos importantes que ocorreram no Brasil e no mundo, revelando os bastidores da notícia. Ali se mostra como a reportagem é construída: discussões de pauta, conflitos éticos e o envolvimento da equipe com o assunto. Em busca do trabalho bem feito, Caco Barcellos deixa claro que é preciso ter provas: “mesmo acreditando em uma fonte, temos o dever de desconfiar dela”.
O jornalista afirma que o momento mais prazeroso de seu processo de trabalho é o de “captação de informação”, quando conhece o entrevistado pela primeira vez. Até hoje, se lembra do primeiro contato com o traficante que liderava o tráfico de drogas no morro Santa Marta, no final da década de 1990. A história foi tema do livro "O Abusado" (2003), uma das duas obras de não ficção com que Barcellos ganhou o Prêmio Jabuti. Dez anos antes, havia sido consagrado com o prêmio literário pelo livro-reportagem "Rota 66" (1992), no qual denunciava a existência de um esquadrão da morte dentro da Polícia Militar de São Paulo e citava nominalmente os oficiais envolvidos. Dias após o lançamento da obra, houve uma rebelião de presos no Complexo do Carandiru, repreendida com violência pela polícia: 111 detentos morreram e 35 ficaram feridos. Muitos dos oficiais citados no livro foram protagonistas do Massacre de Carandiru, episódio acompanhado de perto por Caco Barcellos para a Globo. Essa foi apenas uma das muitas coberturas investigativas que marcaram a carreira do jornalista que pretende ser repórter “até o fim”.
Início da carreira
Gaúcho de Porto Alegre, Cláudio Barcelos de Barcellos é filho de Nérsio Pereira de Barcellos, funcionário público, e Antoninha Barcelos de Barcellos, dona de casa. Ele cursou a faculdade de Matemática para ser engenheiro civil. Dois anos e meio depois, no entanto, mudou para Jornalismo. Formou-se em 1975 pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Sua primeira experiência, ainda no Sul, foi na Folha da Manhã, onde permaneceu três anos. Na mesma época, participou da fundação do Coojornal, primeira cooperativa de jornalistas da América do Sul. E escrevia para o Versus, um dos mais importantes jornais alternativos da década de 1970. Depois que se formou, passou cinco anos viajando pelo mundo. Para se sustentar, mandava matérias para o Jornal da Tarde, de São Paulo.
Em Nova York, onde morava, em 1979, viu pela televisão a ação de grupos que lutavam contra a ditadura de Somoza, na Nicarágua. Não pensou duas vezes: embarcou num avião para fazer a reportagem. Logo após a chegada, porém, foi preso por rebeldes. Gravador, microfone, roupas americanas, tudo levava a crer que era um espião. Ao descobrir que o repórter era brasileiro, os guerrilheiros resolveram esperar a chegada do chefe, de uns 13 anos, antes de libertá-lo. Daí viria, inclusive, o título do primeiro livro de Caco Barcellos, A Revolução das Crianças.
Repórter de TV
Um ano depois, de volta ao Brasil, trabalhou na revista IstoÉ e, em seguida, na Veja, em São Paulo. O convite para trabalhar na Globo partiu de Luiz Fernando Mercadante, que comprava suas matérias de freelancer no Jornal da Tarde. Caco Barcellos preferiu continuar viajando e voltou para Nova York. Em pouco tempo, ligou para Mercadante: estava fascinado com documentários de jornalistas exibidos na TV americana. O convite para trabalhar na Globo estava de pé, mas o repórter teria que fazer um teste: cobrir uma passeata com Lula à frente dos metalúrgicos.
“A passeata acabou em pancadaria da polícia contra os metalúrgicos, da polícia contra a imprensa e dos metalúrgicos contra a imprensa”, lembrou em depoimento ao Memória Globo. Foi assim que Caco Barcellos entrou para a Globo, em 1982, na equipe do programa Globo Repórter.
Em 1983, aceitou o convite para um projeto de TV da Editora Abril. Um ano depois, estava de volta à Globo como repórter especial da redação de São Paulo. Ali, como todos os repórteres, tinha que cobrir os assuntos do dia. Mas, aos poucos, começou a fazer suas reportagens investigativas, como a da prisão de meninos na favela de Heliópolis, quando ele e o repórter-cinematográfico Renato Rodrigues conseguiram filmar as agressões de policiais da Rota (unidade de choque da Polícia Militar de São Paulo) aos meninos na favela e até dentro da delegacia. A matéria foi ao ar no Jornal Nacional, e as imagens viraram capa do Relatório Anual da Anistia Internacional.
Ossadas humanas no cemitério de perus
Entre as reportagens que tornariam Caco Barcellos um dos principais repórteres da Globo, destaca-se Desaparecidos Políticos, na qual o jornalista conseguiu identificar oito vítimas da repressão consideradas “desaparecidas” durante o regime militar. A reportagem começou a ser produzida no início dos anos 1990, mas só foi concluída e exibida pelo Globo Repórter em 1995, quando ganhou o Prêmio Líbero Badaró, o Prêmio Embratel de Jornalismo e o Prêmio Caixa Econômica Federal de Jornalismo Social (1995).
Caco Barcellos conta ter feito um levantamento sobre pessoas mortas pela Polícia Militar para seu livro Rota 66: ele identificou 60 mil histórias, entre as quais estavam os 1,5 mil guerrilheiros do Cemitério de Perus, em São Paulo. Durante a reportagem, o jornalista conseguiu identificar oito. “Esses cadáveres que saíram do IML – parte deles – foram para o Cemitério de Perus. Num domingo, um funcionário do cemitério, embriagado, me procurou, pediu para conversar comigo atrás de uns túmulos, e me contou a seguinte história: que ele foi testemunha da chegada de uns carros do Exército com alguns militares que fizeram escavações em vários pontos do cemitério, reuniram uma grande quantidade de ossadas, fizeram uma grande vala, e um enterro comum. Ele calculava em 1,5 mil ossadas. E ele tinha certeza que aquilo era uma coisa clandestina”. Após as investigações, os túmulos rasos foram cavados, revelando ossos humanos, conforme mostrou a reportagem.
Carandiru
Ao mesmo tempo em que investigava a história dos desaparecidos, em 1992, aconteceu o episódio do Carandiru. O jornalista estava no Nordeste quando foi convocado para cobrir a rebelião em São Paulo. Naquele dia, ficou cara a cara com oficiais que havia denunciado em seu livro. Os soldados foram chamados para conter uma rebelião que se iniciou com uma briga entre líderes de dois grupos de presos. A PM entrou com cães, bombas e armas pesadas. Vinte minutos depois, abandonou o local. “Lembro que já era início de noite, a matéria era para o JN, e a gente tinha uns 40 minutos para editar tudo”. A reportagem mostrou que os aspectos técnicos contradiziam o depoimento dos policiais. Com a ajuda de bilhetes dos presos sobreviventes, o jornalista encontrou vestígios de execução nos corredores dos pavilhões e, especialmente, dentro das celas. As paredes mostravam uma linha uniforme de marcas de rajadas de metralhadoras, apontadas certamente para áreas vitais como cabeça e peito dos presos. “As camas superiores dos beliches exibiam perfurações de projéteis disparados de baixo para cima. Não havia sinal que indicasse reação dos presos. Os detalhes foram levados ao ar no JN logo depois”, conta.
Furos de reportagem, no Brasil e no exterior
Na queda do Fokker da TAM, em São Paulo (1996), integrou a equipe mobilizada para preparar um Globo Repórter sobre o assunto. No aeroporto de Congonhas, recebeu a informação de que o mecânico Antônio Bueno havia visto o reverso do Fokker 100 se abrir na decolagem. “O mecânico percebeu que esse freio tinha sido aberto logo na subida. Em desespero, correu para a pista gritando, como se o piloto pudesse ouvi-lo. Esse freio fez com que uma turbina exercesse força contrária a outra e provocasse a queda do avião”, conta.
Em 1996, voltou a ganhar um prêmio importante, dessa vez em parceria com o jornalista Fritz Utzeri. A dupla investigou o atentado do Riocentro, ocorrido em 1981. Com a reportagem Riocentro – 15 Anos Depois, também exibida no Globo Repórter, os dois receberam o Prêmio Vladimir Herzog, oferecido pelo Sindicato dos Jornalistas de São Paulo.
O jornalista participou da série de reportagens que denunciou a corrupção no Tribunal de São Paulo. Na ocasião, o juiz Nicolau dos Santos Neto foi acusado de desviar US$ 200 milhões dos cofres públicos para sua conta. Com a ajuda de um carpinteiro brasileiro, Caco Barcellos entrou no apartamento do juiz em Miami, nos Estados Unidos, e mostrou o luxo em que vivia o juiz acusado de corrupção.
Caco Barcellos fez também reportagens internacionais. Em Angola, contrariando o interesse do exército angolano, obteve ajuda da ONG Médicos sem Fronteiras para visitar hospitais onde um sem número de crianças morriam de fome ou em consequência da guerra. Esta reportagem, Angola, a Agonia de um Povo, deu ao jornalista pela segunda vez o Prêmio Líbero Badaró (2001).
EXCLUSIVO MEMÓRIA GLOBO
Depoimento sobre experiência como correspondente internacional
De 1997 a 2001, Caco Barcellos colaborou no programa Espaço Aberto, da GloboNews. No ano seguinte, assumiu o posto de correspondente internacional em Londres e, em seguida, foi transferido para Paris. Em abril de 2002, ele, o repórter-cinematográfico Sergio Gilz e a correspondente do jornal O Globo Debora Berlinck fizeram reportagem sobre o conflito entre palestinos e israelenses na cidade de Nablus. “A cobertura culminou com o nosso carro sendo metralhado pelo Exército israelense”, lembra. Apesar do susto, ninguém ficou ferido no episódio.
Como correspondente, cobriu o atentado terrorista em Madri (2003) e a morte do papa João Paulo II (2005). Para fazer essa reportagem, ele e Sergio Gilz permaneceram 18 horas na fila formada por fiéis que esperavam para dar o último adeus ao Papa. A matéria foi exibida com destaque no Jornal Nacional. Também em 2005, fez reportagens no Paquistão e, depois, no Peru, onde cobriu um acidente aéreo que envolveu brasileiros.
Caco Barcellos voltou para o Brasil em agosto de 2005, como repórter especial da redação de São Paulo. Seu novo livro, Abusado, também baseado em extensa e rigorosa apuração, dessa vez sobre o traficante Marcinho VP, deu ao repórter novamente o prêmio Vladimir Herzog e o Prêmio Jabuti.
Profissão Repórter: a estrela é o conteúdo
Em abril de 2006, estreou um novo projeto, o Profissão Repórter, no qual ele e uma equipe de jornalistas recém-formados passaram a revelar os bastidores da notícia, mostrando ao telespectador o processo de produção de uma reportagem. A ideia era que os jovens repórteres assumissem todas as funções da etapa inicial de produção das reportagens, da pauta à edição, quando ganhariam o reforço de um grupo mais experiente, para dinamizar o processo.
Concebido, dirigido e apresentado por Caco Barcellos, o Profissão Repórter estreou como um especial do Globo Repórter e, em seguida, como quadro do Fantástico. Em junho de 2008, ganhou seu lugar na grade de programação da Globo, às terças-feiras, sendo reprisado na GloboNews aos sábados, com seu núcleo de produção baseado inicialmente em São Paulo. “Pensei no formato em 1995. Eu desejava uma dinâmica de reportagem que pudesse contar a história sob vários ângulos. Porque não existe verdade absoluta; a verdade é sempre relativa de acordo com o olhar que você tem sobre aquela história. O bastidor que mostramos é o relacionado ao conteúdo: a dúvida na hora de escolher uma pauta, a discussão sobre essa pauta, a escolha do processo que a gente vai seguir durante a captação de informação, a discussão de uma questão ética. Nem sempre a gente percebe que a estrela do programa é a reportagem, o conteúdo”, explica.
EXCLUSIVO MEMÓRIA GLOBO
Caco Barcellos fala sobre Profissão Repórter (2006)
Quase todo ano, o Profissão Repórter realiza matérias sobre o consumo de crack. A primeira, exibida em 2009, teve grande repercussão no Brasil: em São Paulo, o carro de reportagem foi apedrejado pelos usuários da droga. Caco Barcellos conta que, na noite seguinte ao ocorrido, ele já conseguiu, a pé, se aproximar daquelas pessoas e colher suas histórias, do centro da cracolândia. “É uma história bem representativa, porque envolve risco – fumantes do crack ficam em um estado de total envolvimento com a droga, a ponto de perder de maneira severa o juízo. Então, se torna uma situação potencialmente perigosa. Como sou o mais experiente, em uma das matérias, decidi ficar no meio dos usuários para dizer que é possível contar uma história não apenas de maneira distanciada no registro daquela cena tão triste, à distância. Acho que é importante que a gente conheça de perto quem são as pessoas”.
Em 2013, o Profissão Repórter ganhou também uma base no Rio de Janeiro. A luta dos sem-teto por moradia foi um dos temas do programa em 2014. Naquele ano, a final da Copa do Mundo, disputada por Alemanha e Argentina, no Maracanã, ganhou edição especial, mostrando entre outras coisas, os oito mil argentinos que cruzaram a fronteira com o Brasil.
No dia em que seria realizado o primeiro jogo da final da Copa Sul-Americana, 30 de novembro de 2016, o programa mostrou a solidariedade dos clubes que abriram seus estádios para homenagear os mortos da tragédia com a Chapecoense.
A estreia da temporada de 2018 abordou as denúncias feitas pela vereadora Marielle Franco, assassinada em março do mesmo ano, as acusações contra o 41º Batalhão e o crescimento das milícias. Na quarta-feira seguinte, dia 2 de maio, a equipe do Profissão Repórter fez um retrato das condições precárias de moradias em São Paulo, nas quais vivem pessoas de baixa renda. O programa foi ao ar um dia depois do desabamento de um prédio de 24 andares, ocupado por moradores sem-teto, no centro de São Paulo.
Desde o começo, a equipe do Profissão Repórter ficou responsável também por alimentar o site do programa, no qual o público é estimulado a assistir aos episódios, com conteúdo exclusivo, e a interagir com os jornalistas. Dessa forma, além do olhar particular, Caco Barcellos continua fazendo o que gosta. “Quero ser repórter até o fim”, afirma.
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