NELSON RODRIGUES
Algumas das entrevistas realizadas por Otto Lara Resende no 'Painel' se tornaram históricas, como a que foi ao ar em 22 de agosto de 1977. Em um cenário simples – fundo azul, duas cadeiras separadas por uma pequena mesa –, ele entrevistou o jornalista, dramaturgo e amigo de longa data Nelson Rodrigues, que estava lançando o livro de crônicas 'O Reacionário'. O livro, entretanto, foi um dos últimos assuntos abordados na entrevista. Antes, os dois conversaram durante quase meia-hora, em clima de absoluta descontração e informalidade, sobre os mais variados tópicos, a começar pela saúde de Nelson Rodrigues. O dramaturgo disse ter saído de um período de 15 dias doente com a firme convicção de que a alma é imortal e que, por isso, desprezava os que achavam que a morte era o fim definitivo. Perguntado sobre qual seriam as suas últimas palavras, contou que quando esteve de cama, com febre, o jornalista Pinheiro Jr., seu colega no jornal Última Hora, lhe fez a mesma pergunta, em tom de brincadeira. Com 40 graus de febre, Nelson respondera então ao amigo que suas últimas palavras seriam “Marx é uma besta!”.
Declarando ser o único a elogiar a velhice como a maior das qualidades, Nelson afirmava que o jovem só pode ser levado a sério quando envelhece e que, à parte Mao-Tsé-Tung, nenhum líder ilustre foi realmente grande quando ainda era jovem. Otto discordou e deu início a um delicioso debate sobre o tema. Ao ser confrontado com exemplos de homens que já eram brilhantes na juventude – Rimbaud, Pascal, Napoleão, Beethoven –, Nelson os aceitava apenas como raras exceções. Otto insistiu: “Você próprio, Nelson Rodrigues, que começou na imprensa muito cedo: você era um idiota?” Nelson respondeu que sim e acrescentava: “Aos 20 anos, eu não sabia dizer ‘boa noite’ a uma mulher”. Otto: “E Jesus Cristo, que morreu aos 33 anos?” Nelson: “Ele era o Cristo. Te dou vários anos de meditação para descobrir um cristo de 15 anos”. Otto: “Nós estamos numa conversa e não numa competição. E longe de mim pretender te dar uma chave de rim ou ganhar uma discussão, porque da discussão não nasce a luz, nascem os perdigotos!”
Otto Lara Resende entrevista Nelson Rodrigues, Painel, 18/10/1977.
'O Reacionário' tinha como subtítulo, “memórias e confissões”. Mesmo observando que a palavra “reacionário” já teve inúmeras conotações no decorrer da história – chegando até a ser sinônimo de “revolucionário” durante a década de 1920 –, Otto Lara Resende questionou a escolha do termo para dar nome a um livro que retratava uma parte substancial da atividade jornalística de Nelson Rodrigues. Seria uma forma de chamar a atenção, alguma “técnica de publicidade”?, perguntou ele. “Não, meu caro Otto, é uma técnica de sinceridade”, respondeu o escritor, acrescentando que se considerava reacionário, no melhor dos sentidos. O título do livro era uma provocação àqueles que, chocados com suas opiniões pouco convencionais, o taxavam de retrógrado. Dizendo ter se descoberto anticomunista as oito anos de idade, Nelson preferia atribuir o sentido pejorativo da palavra a determinadas tendências políticas da época: “Reacionário, no sentido que conheço, é a esquerda brasileira, que tomou o lugar da direita”.
Na entrevista ao 'Painel', Nelson Rodrigues criticou o descaso das “grã-finas de narinas de cadáver” e dos “idiotas da objetividade” pelo Brasil, dissertou sobre a vitória numérica dos “cretinos fundamentais” sobre os inteligentes, elogiou a molecagem como a melhor qualidade do brasileiro e admitiu que era um homem cheio de obsessões.
A obsessão de Nelson Rodrigues foi justamente um dos temas da entrevista, mais precisamente a lendária obsessão pela figura do próprio Otto Lara Resende, celebrizado nas obras do dramaturgo em inúmeras citações – muitas delas inventadas – e no título de uma de suas peças, Bonitinha mas Ordinária, ou Otto Lara Resende, de 1962. “Logo a segunda crônica do seu livro se chama 'A Viagem Fantástica de Otto…' Você sabe que eu sou permanentemente perseguido por essa pergunta. Houve momentos em que pessoas acharam que eu não existia, de tal maneira que você abusou do meu profano nome em vão. Por que essa obsessão com alguns amigos?” Olhando para a câmera, Nelson respondeu, entre cândido e irônico: “Eu sou amigo do Otto. E, como amigo do Otto, eu quero sempre tratá-lo de uma maneira pessoal, com a ternura que ele merece. Você é um dos personagens do Brasil”.
No encerramento da entrevista, Otto pediu a Nelson que enviasse uma mensagem aos jovens telespectadores. Ele disse, então, gesticulando como quem faz uma súplica, uma de suas famosas frases:
VINICIUS DE MORAES
O clima de bate-papo informal quase sempre dava o tom das entrevistas de Otto Lara Resende, e, às vezes, causava um contraste interessante com a seriedade quase filosófica de certas perguntas. No dia 18 de outubro de 1977, o entrevistado foi o poeta Vinicius de Moraes, então prestes a completar 64 anos de idade. Otto iniciou a conversa perguntando: “Marcus Vinicius da Cruz de Mello Moraes: quem é você? Quem é o Vinicius que não se conhece?”, “Eu ainda não sei muito bem não, sabe Otto? Eu sou um labirinto em busca de uma porta. De saída.”, “E há saída?”, “Eu ainda não encontrei, não”.
Entrevista de Otto Lara Resende com Vinicius de Moraes, Painel, 18/10/1977.
Entre outros assuntos, Vinícius falou sobre a importância fundamental da presença feminina na sua vida, de sua curta experiência fazendo psicanálise e da resistência em fazer ginástica. No fim da entrevista, Otto perguntou ao poeta qual seria a regra de ouro da sabedoria. “Como viver com o mínimo de atrito e o máximo de equilíbrio?” Vinicius respondeu: “Acho que o fundamental é amar. Muito. Sempre. Mão de obra 24 horas por dia. E adquirir capacidade seletiva. Não amar as pessoas erradas. Acho que isso vem com a vida, a experiência.”
OUTRAS ENTREVISTAS
As entrevistas da jornalista Teresa Cristina Rodrigues eram, em geral, com figuras que se destacavam de alguma forma nas áreas da cultura ou do entretenimento, como músicos, artistas plásticos, atores e cineastas. No dia 2 de fevereiro de 1978, a jornalista entrevistou o carnavalesco Joãosinho Trinta, que era considerado um talento inovador nos desfiles das Escolas de Samba do Rio de Janeiro. No barracão da Beija-Flor de Nilópolis, escola para a qual trabalhava na época, e onde tinha status de diretor artístico, Joãosinho Trinta falou sobre assuntos que ainda seriam discutidos por muitos anos, como a transformação de uma festa de origens populares como o carnaval em um show para turistas. “Nós lamentamos tanto, porque nós gostaríamos que o povo, a massa, assistisse a muito mais. Mesmo porque o povo nunca assistiu muito ao carnaval. Antigamente, só assistiam mesmo as pessoas que estavam na primeira fila do cordão. As outras já tinham que espichar o pescoço. Hoje, com os preços das arquibancadas, o volume de pessoas limita muito a presença do grande público”, comentou ele.
Ainda sobre as mudanças do carnaval, Joãosinho Trinta disse que o sentido original da festa estava sendo deturpado: “Um dos motivos é a influência de pessoas estranhas ao samba. Nós devemos preservar as raízes, e com isso eu tenho tido o maior cuidado”. “Então você é contrário à idéia de pessoas de classe média, que moram em outros lugares, participarem da festa?”, perguntou Teresa Cristina. “Na Beija-Flor, sim. Porque deve existir um ‘espírito’ que envolve uma comunidade. Esse espírito existe aqui em Nilópolis. A Beija-Flor é coisa nossa. Todo mundo se conhece. Existe entrosamento entre todos”, respondeu ele.
Em março de 1978, o correspondente Sérgio Motta Melo entrevistou para o 'Painel' Violeta Chamorro, viúva de Pedro Joaquim Chamorro, jornalista liberal e editor do jornal La Prensa, assassinado na Nicarágua durante o governo do ditador Somoza. A morte do jornalista havia detonado naquele país uma onda de protestos populares sem precedentes contra o somozismo. Liberais e setores da classe média descontentes passaram a apoiar a FSLN (Frente Sandinista de Libertação Nacional).
Logo no início da entrevista, o repórter perguntou à Violeta Chamorro quem era o responsável pelo assassinato do seu marido. “Ele trabalhou a vida toda na imprensa, denunciando os roubos e todas as coisas que não lhe agradavam no governo. Quem o matou? Eu toda a vida digo que foi o regime corrupto que nós temos na nossa triste Nicarágua”, respondeu ela. Sobre o futuro político de seu país, ela disse: “Creio que qualquer nicaraguense pode dizer com alento, com alegria, que vê um futuro muito bom, porque terminando com Somoza, vamos estar livres no sentido em que teremos eleições”.
Nos anos seguintes, Violeta Chamorro assumiria o controle do jornal La Prensa, faria parte da junta de liberais e sandinistas que assumiriam o governo após a queda de Somoza, em 1979, e, onze anos mais tarde, se tornaria presidente da Nicarágua.