No dia 16 de julho de 2006, o ‘Fantástico’ exibiu uma reportagem que mostrava como um quadro do programa repercutiu em jornais do mundo todo. O quadro era 'Jogo Falado', e a situação analisada por ele aconteceu na final da Copa do Mundo daquele ano, entre França e Itália.
Graças à leitura labial realizada no programa do dia 9 de julho, com auxílio de pessoas com deficiência auditiva, fonoaudióloga e especialistas em línguas, foi possível identificar que o jogador italiano Materazzi xingou a irmã de Zidane de prostituta duas vezes, e ainda usou palavra de baixo calão para se referir ao próprio jogador. Da discussão veio a reação do craque francês: uma cabeçada no peito do italiano, resultando em sua expulsão do jogo.
Quadro 'Jogo Falado' analisa conversa entre jogadores na final da Copa de 2006 que resultou na expulsão de Zidane. 'Fantástico', 09/07/2006
Era a consagração de um quadro já popular no Brasil, mas que saiu do papel a partir de muita discussão interna.
'Jogo Falado’ nasceu naquela Copa do Mundo, na Alemanha, a partir de uma percepção de Luizinho Nascimento, então diretor do 'Fantástico', que estava no país coordenando a cobertura do evento esportivo. Luizinho comentou em seu depoimento como surgiu a ideia.
Ideia lançada, os produtores foram atrás de pessoas que dominassem a leitura labial para fazer o trabalho. Conta Eduardo Salgueiro, um dos produtores: "Eu fui no Instituto de Surdos [Instituto Nacional de Educação de Surdos], (...) achei três, quatro meninos que eram superengraçados e que eram amigos. (...) Foi muito legal e, ao mesmo tempo, muito desafiador, porque até então os jogadores não se preocupavam com isso, e depois disso você começou a ver todo mundo conversando em campo daquele jeitinho [cobrindo a boca com a mão], fruto da leitura labial que a gente fez no 'Fantástico'”. Além dos três rapazes, a fonoaudióloga Helena Dale Couto também participou do quadro. A dublagem era feita por Zeca Camargo.
Mas o quadro não foi unanimidade: houve muito debate interno, segundo Luizinho. Para alguns colegas da chefia, a ação comprometia o direito à privacidade. "Eu, como defensor da ideia, achei que não: 'Se eu estivesse invadido um vestiário para gravar o que os caras... Aí seria invasão de privacidade. Os caras estão na praça pública, num campo de futebol, qual é o torcedor que não tem curiosidade de saber o que o técnico está falando ali?'"
O quadro foi ao ar, e a polêmica rendeu. Então técnico da seleção, Carlos Alberto Parreira chegou a fazer uma reclamação formal e citou o assunto em uma coletiva. "Aí a gente fez uma análise interna, que a gente talvez tivesse extrapolado um pouco com relação aos palavrões, porque a gente botava o pi [Imita o som] e três pontinhos [na legenda]. Talvez, a gente não precisasse ter usado. Talvez a gente tivesse errado não na leitura labial, no ‘Jogo Falado’, mas talvez na coisa dos palavrões", explicou Luizinho.
Por conta disso, chegou a ser feito um pedido de desculpas no 'Jornal Nacional'. "A gente continuou fazendo, só com a preocupação de não ter palavrão.”
O quadro era possível porque naquela Copa do Mundo havia o Fifa Max, servidor da federação de futebol que dava acesso às imagens de várias câmeras, inclusive algumas focadas exclusivamente na comissão técnica e outras em jogadores específicos no campo. "Então você consegue ter o tempo inteiro das reações do técnico e do banco numa partida de futebol. E se o cara fechar um pouquinho, você consegue ver o lábio", explicou Eduardo Salgueiro. O maior desafio, segundo ele, era extrair todo o material bruto da partida do servidor, para decupar e identificar as oportunidades para fazer a leitura labial.
Salgueiro observa ainda que, com o tempo, membros da equipe do ‘Fantástico’ foram adquirindo habilidade de leitura labial. "O Felipe Wainer fez com a gente por muito tempo também. Então a gente começou a fazer a leitura, e usávamos os meninos como uma ajuda, porque eles também entendiam. Discutíamos com eles as falas."
A experiência na final de Itália contra a França, na famosa cabeçada de Zidane em Materazzi, foi "no susto". Salgueiro conta: "Eu lembro que o Luizinho me ligou de lá: 'Queridão, vamos achar alguém que fale italiano para fazer uma leitura labial em italiano'. Falei: 'Pô, o 'Fantástico' é daqui a pouco....'. 'Vamos só esse, só essa cena. O que que eles falam?'. A gente conseguiu. Aí eu achei uma professora de italiano, e ela nos ajudou, a gente pegou o Fifa Max e conseguiu identificar o que que o Zidane tinha falado para o Materazzi".
Finda a Copa de 2006, o quadro seguiu aparecendo no 'Fantástico' em ocasiões especiais. E também nas copas seguintes.
'Jogo Falado' desvenda diálogos em campo entre jogadores e técnicos. 'Fantástico', 17/06/2018
A ideia chegou inclusive a ser exportada para outras frentes. Em 2011, o ‘Fantástico’ leu os lábios dos britânicos William e Kate, no casamento real. E repetiu a dublagem no casamento de Harry e Meghan, em 2018.
'Fantástic'o confere o que os noivos Harry e Meghan e convidados falaram no casamento real. 'Fantástico', 20/05/2018
Nos programas de esporte, o recurso também passou a ser usado sempre que houve necessidade ou curiosidade. Em 2016, um gol anulado num Fla X Flu fez o ‘Esporte Espetacular’ convocar o Luiz Felipe, um dos rapazes que participaram do ‘Jogo Falado’ no ‘Fantástico’, para esclarecer as conversas no 'Esporte Espetacular'.
Leitura labial: entenda o que jogadores e árbitros falaram durante a polêmica do Fla-Flu. 'Esporte Espetacular', 16/10/2016
Em 2020, a leitura labial realizada em outra edição do programa dominical de esportes chegou à Justiça. O PSG disse que iria usar o recurso para provar que Neymar sofreu racismo em campo, sendo chamado de "mono" (macaco) por um jogador espanhol. Esta notícia foi ao ar no 'Globo Esporte'.
PSG vai usar imagens de leitura labial para provar racismo sofrido por Neymar. 'Globo Esporte', 21/09/2020