Aproveitando três horas de viagem de trem-bala entre Tóquio e Quioto, e atendendo a um pedido do assessor de imprensa Humberto Barreto, o presidente Ernesto Geisel conversou uma hora e meia, no dia 19 de setembro de 1976, com três enviados especiais – Merval Pereira, de O Globo; Costa Manso, de O Globo e da TV Globo; e Liana Sabo, do Correio Braziliense. As entrevistas foram feitas em separado com cada um deles. Na TV Globo, a entrevista foi ao ar no 'Fantástico' no próprio domingo, dia 19.
Toninho Drummond lembra, em entrevista ao Memória Globo, os detalhes da negociação. "Dentro do trem, eu comecei a fazer um movimento para ver se ele nos recebia. Tinha acabado de dar entrevista, não tinha mais o que falar sobre a viagem. Eu queria que ele falasse um pouco dele, pessoa, como cidadão. Não do presidente, mas do sr. Ernesto Geisel. E aí: 'Não, não, não...' Aquela dificuldade! Aí o Humberto vai ao vagão onde ele estava, volta e diz: 'Olha, eu acertei com o presidente o seguinte: nós vamos fazer um sorteio. Quem for sorteado, vai lá conversar com ele. E quem for sorteado tem que distribuir para os outros.' Era outra coletiva, embora feita por um repórter só. Eu fiquei meio frustrado, e o Costa Manso também. (...) Bom, feito o sorteio, caiu um repórter que também trabalhava conosco, Merval Pereira. (...) Aí o Merval foi, conversou, veio, distribuiu para o pessoal o resultado da conversa dele. Eu continuei insistindo, eu só olhava no relógio para saber se Quioto estava perto, ou estava longe. Aí, eu fiz um apelo dramático. (...) Acho que, no fundo, [o Humberto] queria que a gente fizesse, entendeu? (...) Eu falei: 'Faz um apelo a ele. Diga a ele que nós estamos aqui'. E ele conseguiu".
Geisel não deixou de responder a perguntas sobre a situação interna do país, que, na entrevista coletiva da véspera estavam vetadas, e deu, pela primeira vez desde que assumiu o governo, um panorama de seus planos para o futuro da política brasileira. Analisou questões como a reforma da Constituição, a estatização, a anistia, a distensão política e o papel que cabia à oposição.
Pela primeira vez em público, já que a conversa com os jornalistas, ao contrário do que aconteceu em encontros anteriores, estava liberada para publicação, Geisel explicou claramente sua posição sobre a adoção de uma nova Constituição no Brasil. Além de repetir que desejava uma democracia que fosse além do papel, afirmou que em toda a história do país nunca as Constituições foram integralmente respeitadas. "Poderia organizar uma nova Constituição e, seis meses depois, ser obrigado a mudá-la pelas circunstâncias. É preciso que antes sejam preparadas as condições necessárias para que um regime democrático seja verdadeiramente implantado no país", explicou.
Trecho da entrevista do repórter Geraldo Costa Manso com o presidente Geisel, a bordo do trem-bala a caminho de Quioto. 'Fantástico', 19/09/1976.
Ao ser questionado sobre as restrições às liberdades democráticas, Geisel explicou que não acreditava que o regime político de outros países, como França, Inglaterra e Japão, fosse melhor que o brasileiro. Mas concordou que havia no Brasil uma série de deficiências, intimamente ligadas ao estágio econômico e social pelo qual a sociedade brasileira passava na época. Para concluir, alegou: “Eu encontrei nesses países, em certo sentido, restrições, sobretudo à liberdade, muito maiores que as restrições que existem no Brasil”.
Quando à anistia, ele disse: "eu sou um homem sem ódios e sem rancores, não tenho nada contra ninguém. Digo isso sinceramente. Mas existem dificuldades, e eu, como presidente, não posso ser sentimental".
Na vida particular, Geisel falou sobre a falta de privacidade e de liberdade. Dona Lucy Geisel, que assistiu a todas as entrevistas em uma poltrona em frente ao presidente e ao lado do assessor Humberto Barreto, teceu poucos comentários, mas fez questão de se pronunciar quando Geisel falava à TV Globo sobre as dificuldades que a presidência lhe trazia à vida particular. Assim também o fez Amália Lucy, filha do presidente, que comentou estar muito cansada e se queixou de ter de acompanhar os pais em todas as recepções. E o presidente disse, com bom humor: "tenho aqui três ditadores que não me deixam fazer o que quero: o chefe do cerimonial, o chefe da segurança e o médico do Planalto. E agora o Humberto, que tomou conta de toda a minha vida, hoje".
Ao repórter Geraldo Costa Manso, Geisel falou, em tom de desabafo: “Acredito que o dia mais feliz para mim será 15 de março de 1979, em que eu vou transmitir o governo ao meu sucessor. Eu sou um homem profundamente humano, ligado à família, ligado aos amigos, gostando de conviver com as pessoas do povo. E, no governo, eu me sinto tolhido em todas essas manifestações. Tenho em torno de mim vários ditadores, que me impedem de fazer o que quero. Veja, por exemplo, nessa visita ao Japão, eu não tive uma hora livre. Eu não pude ir a uma rua, eu não pude ir a uma loja, não pude conversar com ninguém do povo. Isso é um sacrifício que um indivíduo só pode suportar se ele se convencer de que está cumprindo uma missão”.
A entrevista de Geisel foi histórica porque, pela primeira vez, o presidente assumiu um tom informal e admitiu que havia um cerceamento à liberdade no país, como destacou Toninho Drummond: “Hoje seria uma coisa banal. Mas naquele momento, aquele homem tão fechado, um general, se abrir como ele se abriu para o Costa Manso... Era um domingo, e nós colocamos essa matéria no 'Fantástico'”.
Toninho Drummond voltou às pressas para Tóquio para gerar a matéria, como explica: "Eu cheguei em Quioto e peguei o trem de volta, porque não era fita, era filme, tinha que revelar. Então, desci e peguei um trem de volta para gerar a matéria para o 'Fantástico'."