Os protestos começaram na Tunísia, mas acabaram influenciando outros países do mundo árabe por conta das semelhanças políticas, econômicas e culturais. Em 17 de dezembro de 2010, o ambulante Mohamed Bouazizi morreu após atear fogo ao próprio corpo na cidade de Sidi Bouzid, como protesto pelo tratamento arbitrário recebido por autoridades policiais. As manifestações que eclodiram em seguida levaram à queda do ditador Zine El Abidine Ben Ali, em janeiro de 2011. Revoltas populares aconteceram na Argélia, Líbia, Jordânia, Iêmen, Egito, Síria, Iraque e Barein, além de pequenos incidentes na Mauritânia, Omã, Arábia Saudita, Líbano, Sudão e Marrocos. Esses movimentos pela democracia ficaram conhecidos como Primavera Árabe.
As manifestações populares no Egito começaram em 25 de janeiro de 2011. Durante 18 dias, milhares de egípcios foram às ruas protestar contra o desemprego e a inflação nas principais cidades do país. A revolta levou à queda do presidente Hosni Mubarak, que estava havia três décadas no poder. Após sua renúncia, em 11 de fevereiro, um conselho militar assumiu o governo. Em novembro, no entanto, os protestos reiniciaram, exigindo o estabelecimento de um governo civil e mais agilidade nas reformas prometidas. As primeiras eleições diretas para presidente foram realizadas em maio e junho de 2012.
Reportagem de Ari Peixoto sobre os protestos de milhares de egípcios na Praça Tahrir, no Cairo, contra o regime ditatorial de Hosni Mubarak, Jornal Nacional, 01/02/2011.
A revolta popular na Líbia pôs fim à ditadura de Muamar Kadafi, no poder desde 1969. As manifestações de oposição ao regime começaram em janeiro de 2011, mas foi a partir de fevereiro, em Benghazi, que os protestos se intensificaram. O agravamento da crise líbia provocou uma intervenção militar no país, comandada pela Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte).
Durante oito meses, forças leais ao governo enfrentaram os rebeldes em violentos confrontos que só tiveram fim em outubro, quando Muamar Kadafi foi capturado e morto. Cinquenta mil pessoas morreram ou ficaram desaparecidas por causa da guerra civil que tomou conta do país, segundo os oposicionistas. Em agosto, após a tomada da capital Trípoli pelos rebeldes, o Conselho Nacional de Transição da Líbia assumiu o governo.
Na Síria, os protestos populares em oposição ao governo de Bashar al-Assad se transformaram em uma guerra civil. O conflito armado que assola o país desde março de 2011 já deixou cerca de 100 mil mortos.
EGITO
Equipe estrutura
Os correspondentes da Globo na Europa, nos Estados Unidos e no Oriente Médio acompanharam diariamente os acontecimentos no mundo árabe, e uma equipe foi enviada especialmente para cobrir de perto as manifestações no Egito. Em 28 de janeiro de 2011, logo após o início dos protestos, os repórteres Ari Peixoto e David Cohen, ambos correspondentes em Jerusalém, chegaram ao Cairo. No início de fevereiro, Cohen foi substituído por Sergio Gilz.
Durante o período em que esteve no país, a equipe da Globo enviou material diariamente para os principais telejornais da emissora, fazendo algumas entradas ao vivo. Além de tratar do factual, houve também a preocupação de contextualizar os acontecimentos no mundo árabe para o telespectador brasileiro, explicando, sempre que necessário, o cenário histórico da região.
Numa tentativa de reprimir os protestos, o governo egípcio suspendeu os serviços de telefonia celular e internet, o que dificultou o trabalho dos correspondentes.
Após a queda de Hosni Mubarak, a Globo enviou sua equipe para o Egito em diferentes ocasiões. Os correspondentes Carlos de Lannoy e David Cohen, por exemplo, acompanharam as comemorações pelo aniversário de um ano da revolta popular que derrubou o ditador e as primeiras eleições diretas para presidente, em maio de 2012.
Direto da cidade do Cairo o repórter Ari Peixoto participa ao vivo do Jornal Nacional para falar sobre os protestos contra o governo egípcio e sobre as dificuldades encontradas pelos correspondentes no país, Jornal Nacional, 28/01/2011.
A insurgência popular
A insurgência popular no Egito foi destaque no Jornal Nacional em 25 de janeiro, quando milhares de egípcios foram às ruas protestar contra o regime de Hosni Mubarak, no poder desde 1981. Inspirados pelo movimento popular que derrubou o governo na Tunísia, os manifestantes se organizaram através da internet, mobilizando jovens para um dia de revolta. Nesse primeiro momento, Ari Peixoto acompanhou, de Jerusalém, os acontecimentos no país, utilizando as imagens das agências de notícias internacionais.
Já em 28 de janeiro, no entanto, o correspondente fez uma entrada ao vivo no Jornal Nacional, direto do Cairo, numa das principais avenidas da cidade. Ari Peixoto contou da dificuldade que a imprensa internacional estava enfrentando no país. Alguns jornalistas tiveram seus equipamentos quebrados ou confiscados pela polícia local. Para evitar esse confronto, a equipe da Globo optou por fazer imagens de longe. Apesar do toque de recolher imposto pelo governo, era possível ouvir os manifestantes ao fundo. Era a juventude egípcia fazendo história, como explicaria o repórter: “Naquele primeiro dia, percebemos que não conseguiríamos mandar nosso material para o Brasil, pois estávamos gravando em um sistema, e a geração era em outro. Então, para não jogar o trabalho fora, propus ao dono da empresa que, em vez de gerar nossas imagens, entrássemos ao vivo no horário do Jornal Nacional. Expliquei ao pessoal do Brasil que não seria possível enviar as imagens para que eles cobrissem o off com material das agências. E perguntei se poderia fazer uma entrada ao vivo durante o telejornal. Eles concordaram, e entramos direto do Cairo, marcando um golaço. Fizemos sozinhos; a concorrência chegou lá cinco dias depois”.
Em 29 de janeiro, Hosni Mubarak se pronunciou pela primeira vez. Apesar da demissão em massa dos ministros e da promessa de mais democracia e reformas na economia, a população tornou a se reunir na Praça Tahrir para pedir a renúncia do ditador. Naquele dia, sem a presença da polícia e com o exército se recusando a enfrentar os manifestantes, o clima, como contou o enviado especial da Globo, era tranquilo, sem violência ou tensão: “Na chegada [ao Egito], vimos muita briga, muito confronto entre policiais e manifestantes, muito gás lacrimogêneo. Mas, na Praça Tahrir, para onde íamos todos os dias, o clima era absolutamente favorável. Não tivemos nenhum problema”.
Direto da Praça Tahrir
Em 1º de fevereiro, milhares de egípcios se reuniram mais uma vez na Praça Tahrir. Era a maior manifestação contra o governo até então. Em pronunciamento histórico, Mubarak anunciou que deixaria o poder após as eleições que aconteceriam em setembro. Mas o povo queria que o presidente renunciasse imediatamente. As imagens exibidas naquela noite pelo Jornal Nacional mostravam a praça e as ruas próximas tomadas pela população.
O governo cortou o sistema de trem e de ônibus, mas mesmo assim as pessoas não paravam de chegar ao local dos protestos. Para gravar sua passagem no meio da multidão, Ari Peixoto contou com a ajuda de um manifestante, que o colocou em seu ombro. “Eu vi um grupo de pessoas que ficava rodando a praça, carregando sempre alguém: líder político, deputado etc. Aí não tive dúvida, perguntei ao homem que estava ao meu lado: ‘Fala inglês? Pode me botar no seu ombro?’ E gravamos a passagem assim, eu no ombro do cara. A primeira não deu certo, porque ele ficou pulando comigo. ‘No jumping, no jumping! Please, no jumping’, eu pedi. Fiz uma, duas, na terceira valeu”, explica o repórter.
No dia seguinte, 2 de fevereiro, um grupo de manifestantes a favor do governo seguiu em direção à Praça Tahrir, transformando o local em campo de batalha. A reportagem de Ari Peixoto e David Cohen mostrou ativistas contra e pró Mubarak atirando pedras uns nos outros. Montados a cavalo e a camelo, alguns simpatizantes do presidente invadiram a praça e, com chibatas, bateram nos opositores, como numa cena de filme. Por segurança e também para evitar ter o equipamento confiscado, a equipe da Globo utilizou a câmera de um telefone celular para fazer as imagens do confronto.
A partir de então, a situação no Cairo ficou mais tensa, exigindo cautela por parte dos correspondentes. A imprensa internacional passou a ser perseguida pelo governo. Dois jornalistas brasileiros, um repórter da Rádio Nacional e um cinegrafista da TV Brasil foram presos ao desembarcarem na capital e passaram 18 horas isolados.
Reportagem de Ari Peixoto sobre o confronto entre oposicionistas e simpatizantes do presidente egípcio Hosni Mubarak, Jornal Nacional, 02/02/2011.
A renúncia de Hosni Mubarak
Em 11 de fevereiro, após 18 dias de protestos e tentativas de negociação com a oposição, Hosni Mubarak renunciou. O presidente entregou o poder a um conselho militar e, segundo as agências de notícias, embarcou para o balneário Sharm el-Sheik. A renúncia levou os egípcios às ruas, dessa vez para comemorar o fim do regime autoritário. Como explicaria o apresentador William Waack no Jornal da Globo daquela noite, foi a primeira grande revolução popular no mundo árabe.
Teria condições de mudar o mapa dos conflitos no Oriente Médio, mas, segundo o jornalista, ainda era impossível prever as consequencias da queda do ditador egípcio. Naquele momento, seu mérito principal era a celebração da ideia de democracia.
Ao vivo do Cairo, no Egito, Ari Peixoto relata a euforia da população após a renúncia do ditador Hosni Mubarak, Jornal Nacional, 12/02/2011.
Nessa mesma edição do Jornal da Globo, o comentarista Arnaldo Jabor também destacou a importância histórica da revolta popular no Egito:
Dois dias antes da renúncia de Hosni Mubarak, acreditando que ainda levaria um tempo até que ele cedesse aos protestos da população, a equipe da Globo deixou o Cairo. Mas, no dia seguinte à queda do ditador, Ari Peixoto e Sergio Gilz já estavam de volta à capital egípcia, onde permaneceram por mais quatro dias. Em 12 de fevereiro, Ari Peixoto fez uma entrada ao vivo no Jornal Nacional, direto da Praça Tahrir. Apesar do anúncio do fim dos protestos, milhares de pessoas continuavam a se reunir no local.
Reportagem de Ari Peixoto sobre o clima pacífico na Praça Tahrir, Cairo, no dia seguinte aos protestos populares contra o regime de Hosni Mubarak, Jornal Nacional, 29/01/2011.
Em junho de 2012, após dez meses de julgamento, o tribunal egípcio condenou o ex-ditador à prisão perpétua por ter sido cúmplice da morte de centenas de manifestantes durante os protestos contra o seu governo. Segundo grupos de direitos humanos, cerca de 850 pessoas morreram nos confrontos.
Naquele mesmo mês, os egípcios elegeram por voto direto, pela primeira vez, um presidente civil. Com 52% dos votos, Mohamed Morsi, da Irmandade Muçulmana, venceu o candidato Ahmed Shafik, ex-primeiro ministro de Hosni Mubarak.
LÍBIA
Equipe e estrutura
Durante a crise na Líbia, por duas vezes, foram enviadas equipes de reportagem para a região. No final de fevereiro, quando os conflitos se intensificaram, Marcos Losekann e Sergio Gilz desembarcaram em Túnis, capital da Tunísia, e seguiram de carro até Ras Jédir, na fronteira. O acesso ao país de Muamar Kadafi, no entanto, estava fechado a jornalistas. Mas, dias depois, os dois conseguiriam entrar na Líbia pela fronteira com o Egito e, de carro, seguiriam até Benghazi, segunda maior cidade do país.
Reportagem dos correspondentes Marcos Losekann e Sergio Gilz sobre a situação da população na fronteira da Tunísia com a Líbia, Jornal Nacional, 25/02/2011.
Marcos Losekann e Sergio Gilz estavam em Kiev, na Ucrânia, fazendo uma reportagem sobre Chernobyl, quando receberam a ligação de Eric Hart, editor de Internacional do Jornal Nacional, perguntando quando os dois retornariam. A situação na Líbia estava se agravando, e a ideia era que eles fossem direto para a Tunísia cobrir a crise no país vizinho. Como obrigatoriamente teriam que fazer escala em algum país da Europa, Losekann e Gilz optaram por voltar a Londres.
Por causa do horário restrito para a geração de imagens via satélite, a equipe enviava reportagem apenas para o Jornal Nacional e o Jornal da Globo. Os demais telejornais utilizavam o material das agências de notícias e, quando possível, contavam com a participação do correspondente por telefone.
Em agosto, quando os rebeldes entraram em Trípoli, os repórteres Marcos Uchoa e Edu Bernardes foram à Líbia. Eles conseguiram chegar à capital por terra, cruzando de carro pela fronteira com a Tunísia. Os dois ficaram oito dias no país.
Enquanto os enviados especiais à região do conflito buscavam um olhar particular em suas reportagens, Carlos de Lannoy, repórter da Globo em Jerusalém, acompanhava os avanços dos rebeldes com o material produzido pelas agências de notícias. Os correspondentes na Europa e nos Estados Unidos mostravam a repercussão ao redor do mundo, garantindo um noticiário completo e diário nos principais telejornais da emissora.
Além do factual, os telejornais da Globo se preocuparam em mostrar o contexto histórico e o que aquele movimento pela democracia representava para o mundo.
Em diferentes momentos, o Jornal da Globo, por exemplo, exibiu um quadro no qual o apresentador William Waack se levantava da bancada para, com o auxílio de duas telas grandes, explicar ao espectador a série de manifestações populares que ficou conhecida como Primavera Árabe. “A ideia era trazer para o nosso público o contexto histórico e social recente que o ajudasse a entender o que estava acontecendo na frente dele. E acho que com esse quadro, que foi apelidado internamente de ‘aulinha do professor Raimundo’, conseguimos esse ajuste entre reportar o fato e, ao mesmo tempo, inseri-lo numa perspectiva histórica. Esse foi o nosso jeito de cobrir a Primavera Árabe”, explica Waack.
Na fronteira, o drama dos refugiados
Em 25 de fevereiro, o Jornal Nacional exibiu a primeira reportagem dos correspondentes Marcos Losekann e Sergio Gilz, enviada direto da fronteira da Tunísia com a Líbia. A matéria mostrava os refugiados estrangeiros em Ras Jédir que conseguiram sair das áreas de conflito. Os líbios estavam proibidos de deixar o país naquele momento.
Marcos Losekann e Sergio Gilz percorrem 550 km entre a fronteira do Egito e Benghazi, na Líbia, recém libertada do domínio do ditador Kadafi, Jornal Nacional, 03/03/2011.
Após três dias em Ras Jédir, a equipe da Globo optou por deixar a cidade para tentar entrar na Líbia pela fronteira com o Egito, por onde conseguiriam chegar mais facilmente a Benghazi, que ficava no lado leste do país. “Descobrimos que ficar ali pouco ou nada adiantaria, já que a fronteira estava fechada para jornalistas. Havia uma possibilidade de entrarmos na Líbia por um posto a 250 km mais ao sul, mas estaríamos por nossa conta e risco, dentro de uma área perigosamente controlada por Kadafi. E nossa intenção era chegar do outro lado, mais precisamente em Benghazi, reduto dos rebeldes, que eram bem mais amistosos à imprensa estrangeira. Além disso, estávamos num hotel em condições precárias e, claro, sem internet e telefone. Tudo isso contribuiu para nossa decisão de voltar à Tunis, embarcar num avião para Roma, fazer conexão para o Cairo e, de lá, seguir de carro até a fronteira da Líbia controlada pela oposição. Tínhamos a expectativa de encontrar mais facilidades nessas circunstâncias, afinal aos rebeldes interessava mais, senão totalmente, o testemunho da imprensa internacional. E, sendo brasileiros, tínhamos evidentemente uma confiança a mais.”, explica Marcos Losekann.
A entrada na Líbia
Em 3 de março de 2011, dois dias depois de saírem de Ras Jédir, a equipe chegou à fronteira do Egito com a Líbia. Resolvida a burocracia, Marcos Losekann e Sergio Gilz entraram no país na carroceria de uma caminhonete pilotada por líbios que acabavam de voltar de uma rápida excursão ao Egito, onde foram comprar mantimentos. Em seguida, os dois alugaram um carro com motorista, que os levou a Benghazi, a segunda maior cidade da Líbia, já tomada pelos opositores de Kadafi.
“Já era quase meia noite quando chegamos a Benghazi. Eram sete horas da noite no Brasil. Eu e Sergio havíamos gravado toda a nossa saga até então e sabíamos que daria para botar aquele material no Jornal Nacional com louvor se conseguíssemos enviá-lo para o Rio. Antes era preciso falar com os editores. Mas quem disse que os telefones, principalmente os estrangeiros, funcionavam? Dei 100 dólares ao motorista do carro para usar o dele por um minuto. Foi suficiente para descobrir que a editoria do JN havia comprado 15 minutos de sinal de satélite para que gerássemos o nosso material. Bastava achar o ponto de geração, que ficava no terceiro andar de um hotel. Chegamos quando faltava um minuto. Graças a Deus, deu tudo certo”, conta Marcos Losekann.
A reportagem exibida naquela noite pelo Jornal Nacional mostrou o trajeto de 550 quilômetros percorrido pela dupla. No caminho para Benghazi, eles foram surpreendidos por uma parada no meio do deserto, em Tobruk. Era uma questão de segurança, como informaria o motorista que os acompanhava. A equipe passou então para um carro mais conservado para enfrentar a viagem noturna. Na região leste do país, onde os rebeldes derrotaram as milícias do presidente, o clima era de euforia e liberdade, como mostravam as imagens exibidas pelo telejornal.
Benghazi, a capital dos rebeldes
No dia seguinte, 4 de março, Marcos Losekann e Sergio Gilz conheceram o quartel militar de Benghazi, onde, segundo os rebeldes, foram torturados e mortos mais de mil opositores de Muamar Kadafi. Foi a primeira equipe de TV ocidental a entrar no local. “Lá fomos apresentados às ruínas do horror, os restos do que um dia foram prisões, ou melhor, centros de torturas. Havia celas subterrâneas, completamente desprovidas de ventilação e de luz, além de outras provas de atrocidades”, relembra Losekann. A matéria, exibida pelo JN, ainda mostrou como estava a rotina na cidade tida como a capital da revolução, onde as tropas contrárias ao regime, mesmo sem treinamento ou armamento suficiente, se preparavam para enfrentar os ataques das forças leais ao ditador.
A falta de preparo e organização da oposição ficou evidente na reportagem exibida na noite seguinte pelo telejornal. Em Ajdablya, cidade na fronteira da resistência, a 150 quilômetros ao sul de Benghazi, os enviados especiais puderam constatar as diferenças entre os dois lados da guerra. “Enquanto as tropas do governo lutavam com um aparato militar, os rebeldes pareciam um exército de maltrapilhos, com armas caseiras até. Vez ou outra, eles dispunham de tanques, metralhadoras antiaéreas e outras armas apreendidas durante os combates. Mas, com frequência, estavam em nítida desvantagem”, conta Marcos Losekann.
Intervenção militar na Líbia
Em março, as tropas de Muamar Kadafi intensificaram os bombardeios contra os rebeldes no leste da Líbia, o que acabou provocando uma intervenção militar no país para proteger a população civil. A ofensiva – liderada por uma aliança formada por Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, Canadá e Itália – teve início em 19 de março, dois dias após o conselho de segurança da ONU aprovar a criação de uma zona de exclusão aérea na Líbia. Barack Obama estava no Brasil, numa visita oficial, quando autorizou o ataque militar ao país.
Além de destacar o anúncio do presidente norte-americano, o Jornal Nacional daquela noite apresentou a cobertura completa do conflito, com reportagens dos correspondentes Carlos de Lannoy, em Jerusalém, e Flávio Fachel, em Nova York. Os primeiros ataques, como informou o telejornal, partiram de caças franceses, com o objetivo de destruir as defesas antiaéreas de Kadafi. Também foram disparados mísseis contra a capital Trípoli e a cidade Misrata, uma das bases das forças leais ao governo. A partir de 27 de março, a Otan assumiu o comando da operação contra a Líbia.
Trípoli sob o comando dos rebeldes
Em 20 de agosto, o Jornal Nacional noticiou o início do cerco à capital Trípoli. Era a primeira vez que os rebeldes entravam na cidade, desde o início dos confrontos. Segundo a oposição, a ofensiva fazia parte de um ataque coordenado para derrubar o ditador Muamar Kadafi. O Fantástico da noite seguinte trouxe mais informações sobre a tomada da capital. Pela internet, o correspondente Carlos de Lannoy falou ao vivo, direto de Jerusalém. Com os principais pontos de Trípoli sob o controle dos rebeldes, faltava ocupar apenas o quartel-general de Kadafi, o que não demoraria a acontecer.
A reportagem de Carlos de Lannoy exibida no JN de 22 de agosto mostrou a comemoração dos líbios nas ruas de Trípoli. Ainda assim, a oposição, que afirmava ter tomado estradas, o aeroporto internacional e a TV estatal, enfrentava a resistência das tropas leais ao ditador. A reportagem de Ilze Scamparini, também exibida naquela noite, mostrou a repercussão na Europa. Líderes mundiais pediam o fim do governo de Kadafi, porém de forma pacífica, para evitar mais violência. Aos poucos, os países foram reconhecendo o Conselho Nacional de Transição da Líbia como o novo governo do país, e a bandeira rebelde já podia ser vista hasteada em diversos lugares.
Equipe chega à capital líbia
Em 23 de agosto, Marcos Uchoa e Edu Bernardes chegaram à Líbia. Os dois entraram no país pela fronteira com a Tunísia e, apesar das dificuldades de transmissão, conseguiu enviar algumas imagens para o Jornal Nacional ainda naquele dia. Eles estavam a oeste da capital, numa região também conquistada pelos rebeldes.
Na primeira noite no país, os correspondentes dormiram em Zintan, cidade onde ocorreram diversos combates, mas que naquele momento já estava dominada pelas tropas oposicionistas. Na manhã seguinte, os dois se juntaram a uma caravana de jornalistas que seguia para Trípoli.
Reportagem de Marcos Uchoa e Edu Bernardes sobre a situação na Líbia após a derrubada do ditador Muamar Kadafi pelos rebeldes, Jornal Nacional, 23/08/2011.
Pouco antes de chegar à capital, no entanto, a equipe ficou retida por questões de segurança. A precária infraestrutura da região impossibilitou que fosse enviado material para ser exibido no Jornal Nacional daquela noite, como explicaria o apresentador William Bonner aos telespectadores do telejornal.
Quando finalmente entraram em Trípoli, em 25 de agosto, Marcos Uchoa e Edu Bernardes encontraram uma cidade ainda em guerra, com focos de confronto entre as forças pró e contra o governo. Além das dificuldades de locomoção, por conta do conflito, os dois enfrentaram a escassez de recursos básicos, como luz, água, comida e gasolina. Nada que os impedissem, no entanto, de produzir uma cobertura jornalística consistente, como destacaria William Bonner após a exibição da primeira reportagem da dupla direto da capital líbia.
Durante o período em que estiveram em Trípoli, os correspondentes enviaram material diariamente para os principais telejornais da emissora. O link para a transmissão via satélite ficava no próprio hotel onde os jornalistas estavam hospedados.
Reportagem de Marcos Uchoa e Edu Bernardes sobre a situação social e política na cidade de Tripoli, capital da Líbia, dominada pelos rebeldes que haviam deposto o ditador Muamar Kadafi, Jornal Nacional, 25/08/2011.
Reportagem de Marcos Uchoa e Edu Bernardes mostrando a situação em Trípoli, na Líbia, após a tomada da cidade pelos rebeldes, Bom Dia Brasil, 29/08/2011.
Jornal Nacional exibe imagens de protestos na Tunísia após a queda do ditador Zine El Abidine Ben Ali, Jornal Nacional, 18/01/2011.
O conflito na Líbia em destaque no noticiário
Ao som de tiros, Marcos Uchoa entra, ao vivo, no Jornal Nacional, fala sobre o dia de confrontos entre rebeldes e simpatizantes do ditador Muamar Kadafi e apresenta reportagem sobre a falta de serviços e produtos básicos em Trípoli, 27/08/2011.
As reportagens de Marcos Uchoa e Edu Bernardes em Trípoli ganharam destaque no Bom Dia Brasil, Jornal Hoje, Jornal Nacional, Jornal da Globo e também no Fantástico. Mesmo diante das dificuldades inerentes a uma cobertura jornalística numa zona de guerra, Marcos Uchoa ressalta que foi um privilégio acompanhar a tomada da capital pelos rebeldes: “Ver um povo se libertar depois de décadas de ditadura é sempre um espetáculo de alegria”. O clima de euforia que tomou conta dos líbios era evidente nas entrevistas que Uchoa fez pelas ruas da cidade. Apesar da guerra ainda presente, as pessoas sempre falavam com entusiasmo da Líbia que estava nascendo com a derrubada do governo de Kadafi.
Trípoli estava majoritariamente contra o ditador, mas em algumas áreas os combates ainda existiam. O hotel no qual a imprensa estrangeira estava hospedada se transformou em alvo de franco-atiradores por conta da presença de ministros do conselho dos rebeldes no local. Os tiros eram constantes, como Marcos Uchoa mostrou numa de suas entradas ao vivo no JN. Além disso, como conta o correspondente, o boato de que um dos filhos do ditador estava hospedado no hotel fez com que rebeldes entrassem em todos os quartos para checar se a informação era verdadeira.
Marcos Uchoa e Edu Bernardes foram à fortaleza de Muamar Kadafi, já tomada pela oposição, e também à prisão de Abu Salim, onde eram mantidos os inimigos do regime. A equipe ainda acompanhou o enterro de jovens executados a mando do ditador e a reza de sexta-feira numa das mesquitas da cidade.
Os repórteres Marcos Losekann e Sergio Gilz chegam ao front da guerra civil na Líbia e mostram como os rebeldes enfrentam as forças de Muamar Kadafi. Jornal Nacional, 05/03/2011.
Para o Fantástico de 28 de agosto, os repórteres visitaram um dos principais hospitais de Trípoli, onde foram encontrados quase 200 corpos. Os feridos eram levados para o local, mas, sem médicos ou enfermeiros que fugiram durante os dias de combate, acabavam morrendo sem atendimento. Uchoa também entrevistou dois jornalistas italianos que gravaram a invasão do quartel-general do ditador pelos rebeldes.
Nessa mesma edição do programa dominical, Renata Ceribelli conversou com dois cirurgiões plásticos brasileiros que operaram Kadafi em 1995 – Liacyr Ribeiro e Fabio Naccache. Os médicos contaram curiosidades da cirurgia como, por exemplo, o desejo do ditador – atendido – de comer hambúrguer no meio da operação.
Reportagem de Renata Ceribelli sobre médicos brasileiros que fizeram cirurgia plástica e implante de cabelo no ditador da Líbia Muamar Kadafi, Fantástico, 28/08/2011.
A reportagem de Marcos Uchoa e Edu Bernardes exibida no Jornal Nacional em 29 de agosto mostrou a prisão de Abu Salim, onde milhares de pessoas morreram ou foram torturadas. Após quatro dias sem comer, os prisioneiros foram soltos pelos rebeldes. O correspondente visitou as celas e conversou com líbios que, em algum momento, estiveram presos no local. Entre os entrevistados, estava um homem que falava português e adorava o Brasil.
O fim de uma era
Em 20 de outubro, às 9h40 (horário de Brasília), num plantão da Globo, Sandra Annenberg anunciou que, segundo a agência de notícias Reuters e a rede de TV norte-americana CNN, Muamar Kadafi havia sido capturado em Sirte, sua cidade natal. Naquele momento, as informações ainda estavam chegando às redações e a morte do ditador líbio não havia sido confirmada.
No Jornal Hoje, falava-se sobre a captura e possível morte de Kadafi, já que o chefe do Conselho de Nacional de Transição ainda não havia feito um pronunciamento oficial. Imagens da TV Al Jazeera mostravam o corpo de Kadafi, mas a autenticidade delas também não havia sido confirmada.
Quando o Jornal Nacional foi ao ar, o governo de transição da Líbia já havia anunciado oficialmente a morte de Kadafi. Era o desfecho de uma ditadura de 42 anos e um novo capítulo na Primavera Árabe, como destacaria William Bonner e Fátima Bernardes na escalada do telejornal.
A reportagem de Carlos de Lannoy – que estava na Tunísia para acompanhar as primeiras eleições livres e democráticas em mais de 50 anos no país – mostrou a comemoração do povo líbio nas ruas e as imagens do ex-ditador depois da captura numa tubulação de esgoto.
O correspondente Luís Fernando Silva Pinto, em Washington, destacou a repercussão da notícia entre os líderes mundiais, enquanto a repórter Ilze Scamparini, na Itália, fez um perfil de Muamar Kadafi. Elaine Bast deu as últimas informações sobre a morte do ex-ditador, ao vivo, direto de Nova York. Segundo o Conselho Nacional de Transição, não houve uma ordem para executá-lo. Kadafi teria sido morto numa troca de tiros após ser capturado. Os corpos dele e de um de seus filhos foram levados para uma mesquita em Misrata, próxima a Sirte. O plano era enterrar Kadafi num lugar secreto para evitar que houvesse peregrinação ao local.