O humor corre no sangue de Maria Carmem Barbosa. Filha do humorista, jornalista e compositor Haroldo Barbosa, ela começou a escrever por influência de seu pai, com quem costumava discutir sobre os humorísticos que estavam no ar, desde criança. “Esse hábito me deu prática de leitura de texto. Eu decupava novelas como um exercício, eu sabia que ia fazer isso profissionalmente um dia, não tinha dúvidas”, lembra. Mas antes de se tornar autora de cinema e televisão, criando histórias como as de 'Salsa e Merengue' (1996), 'A Lua me Disse' (2005), 'Toma Lá Dá Cá' (2007), Maria Carmem Barbosa trabalhou com produção. E não foi fácil: desbravou um caminho seguido por poucas mulheres antes.
Para ela, trabalhar em televisão sempre envolve desafios. “A televisão é a arte da prática. Temos que ser humildes perante a ela, porque sempre temos muito o que aprender.”
Webdoc sobre o programa 'Sai de Baixo' com entrevistas exclusivas do Memória Globo.
Trajetória
Com menos de 20 anos, Maria Carmem saiu de casa e começou a trabalhar para o próprio sustento. Depois de alguns empregos que não deram certo, ingressou em uma firma chamada Ensine Audiovisual como produtora, trabalho que desempenharia novamente mais tarde, em seus primeiros anos na Globo.
De lá, no início dos anos 1970, foi para a Rádio MEC, inicialmente escrevendo programas educativos para um projeto chamado Minerva. Seu grande conhecimento de música, porém, acabou por levá-la a escrever um programa de música popular brasileira, o 'Falou e Disse'. Neste mesmo período, casou-se e teve um filho, Pedro, nascido em 1973, e acabou deixando o emprego para cuidar da criança.
Ainda no início dos anos 1970, por intermédio do pai, começou a trabalhar na Globo, como produtora na linha de shows da emissora – tornando-se uma das primeiras mulheres a realizar o trabalho de produção na emissora. Ela fez um estágio curto no 'Satiricom' (1973), uma sátira de programas de televisão escrita por seu pai, Haroldo Barbosa, e Max Nunes, e protagonizada por Jô Soares e Renato Corte Real.
Mas logo começou a trabalhar com Chico Anysio, em 'Chico City', programa em que o humorista encarnava diversos dos seus personagens. De lá, foi para 'Azambuja & Cia', que na época ainda era um quadro de Chico Anysio no 'Fantástico' – só em 1975 ele se tornaria um programa independente.
“Eu tinha uma grande curiosidade de aprender tudo, então eu acabava a gravação e ia direto para a edição, ver como fazia, como era a montagem. Era um verdadeiro quebra-cabeça.”
Em 'Azambuja & Cia', Maria Carmem Barbosa conheceu o diretor Carlos Manga, e foi por meio dele que começou seu trabalho na série de dramaturgia 'Caso Especial'. Os casos especiais eram programas com duração média de uma hora, que apresentavam histórias originais ou adaptações de obras de autores brasileiros e estrangeiros. Como produtora, Maria Carmem Barbosa trabalhou por quase três anos na série, sob o comando de diretores importantes como Ziembinski, Paulo José, Tizuka Yamasaki e Domingos Oliveira, entre outros. Por seu prestígio junto ao público, os programas do 'Caso Especial' eram sempre bem cuidados e exigiam uma produção mais apurada.
'Ciranda Cirandinha'
Em seguida, Maria Carmem Barbosa foi deslocada para a produção do seriado 'Ciranda Cirandinha', que estrearia em 1978. O seriado tinha origem em uma ideia do escritor Paulo Mendes Campos, que escrevera um episódio do 'Caso Especial' com o mesmo nome, exibido em 1977. Dirigida ao público jovem, a série traçava um painel do comportamento juvenil no final dos anos 1970, tendo como cenário a Zona Sul carioca.
O seriado era uma aposta da emissora, que acreditava que a época era favorável à exibição de programas com temática jovem – vivia-se o final do movimento hippie, com a emergência de diversos conflitos de geração. De fato, apesar de vários problemas com a Censura Federal – que vetava a abordagem de temas como drogas e amor livre –, a série foi um sucesso e recebeu diversos prêmios da crítica.
Maria Carmem lembra que era difícil trabalhar em tempos de ditadura, principalmente fazer humor naquela época.
“O humor naquela época foi completamente despedaçado, não podia falar de política, então ou falava de mulher, de gay, ou de droga. Não tinha um pensamento crítico.”
Musicais
Em decorrência do sucesso da série, foi criado o especial 'Mulher 80', idealizado e dirigido por Daniel Filho e exibido em outubro de 1979. Com Maria Carmem Barbosa na produção, o programa reunia números musicais e depoimentos de cantoras e compositoras da MPB – dele participaram Elis Regina, Fafá de Belém, Gal Gosta, Joanna, Maria Bethânia, Marina Lima, Quarteto em Cy, Rita Lee, Simone e Zezé Motta.
Por conta dessa experiência, foi chamada por Daniel Filho para a produção da série musical 'Grandes Nomes', que estreou em março de 1980. Gravado no Teatro Fênix, no Rio, o programa tinha como premissa manter um clima de espetáculo ao vivo, com a presença da plateia. Cada programa era dedicado a um artista, e batizado com o seu nome completo. A estreia contou com Simone, e depois vieram outros nomes da MPB. Em 1983, Maria Carmem Barbosa passaria a roteirizar o programa.
Em 1981, produziu o seriado 'Amizade Colorida', uma comédia urbana que abordava os problemas do homem da cidade grande, solteiro, sem emprego fixo e perplexo diante da crescente independência da mulher.
No ano seguinte, ela produziu a minissérie 'Lampião e Maria Bonita', escrita por Aguinaldo Silva e Doc Comparato (com quem já havia trabalhado em 'Plantão de Polícia'). Baseada na vida do mais famoso cangaceiro do Brasil, a série tinha um texto ficcional, mas com relativo compromisso histórico.
“Foi uma das emoções mais fortes da minha vida. Os bastidores são os mais incríveis que se possa imaginar, porque foi um deslocamento monstruoso levar mais de cem atores para o Nordeste. Construímos uma cidadezinha, pequenos sets lá.”
'Lampião e Maria Bonita' (1982): cena em que o bando é fuzilado
A parceria de Maria Carmem Barbosa com Aguinaldo Silva e Doc Comparato se repetiria na minissérie 'Bandidos da Falange', exibida em 1983. A história explorava o surgimento de uma facção criminosa no Rio. O projeto grandioso envolveu mais de 200 locações, inclusive cenas gravadas no Presídio Vicente Piragibe, em Bangu.
Estreia como autora
Em 1983, estreou como autora de televisão, com um episódio da série 'Caso Especial' chamado 'Feliz Ano-Novo, de Novo', escrito em parceria com Euclydes Marinho e Christine Nazareth. Também naquele ano, escreveu 'Um Projeto de Vida', episódio da série 'Caso Verdade', que estreara um ano antes. Inicialmente, as histórias baseavam-se em fatos sugeridos à Globo por cartas enviadas pelo público, mas, a partir de 1983, começou-se a dramatizar acontecimentos noticiados em jornais e revistas.
Em 1984, voltou aos musicais, roteirizando 'Raça Humana', especial com Gilberto Gil exibido como parte da programação de fim de ano da Globo. No mesmo ano, escreveu o texto de 'Blitz contra o Gênio do Mal', que aproveitava a popularidade do grupo musical Blitz junto ao público juvenil. Com uma linguagem semelhante à das histórias em quadrinhos, o programa contava uma história de aventura em que um vilão, inconformado com o sucesso da banda, sequestrava os seus integrantes.
No ano seguinte, foi convidada por Daniel Filho, que assumira a direção artística da Globo, para ajudar a criar um novo departamento, que viria a ser a Divisão de Recursos Artísticos. Nesta área, Maria Carmem Barbosa ficaria de 1985 a 1992 na função de coordenadora geral de pesquisa e desenvolvimento de recursos artísticos, cuidando, entre outros assuntos, da gestão do elenco da emissora.
Devido às atribuições do novo cargo, ficou mais afastada do trabalho junto aos programas. Mesmo assim, participou da criação do seriado 'Armação Ilimitada', que estreou em 1985 (tendo, inclusive, escrito alguns episódios), e da série 'Chico & Caetano', exibida em 1986 e apresentada por Chico Buarque e Caetano Veloso, que promovia encontros entre grandes nomes da música nacional e internacional.
Parceria com Miguel Falabella
Nesta época, tornou-se amiga daquele que viria a ser um parceiro profissional constante: o ator Miguel Falabella. Nos anos seguintes, a dupla escreveria programas de televisão e peças de teatro. A relação acabou se estreitando a partir de 'Delegacia de Mulheres', seriado idealizado e escrito por Maria Carmem Barbosa, que estreou em 1990 e tinha Miguel Falabella entre seus colaboradores. As tramas eram voltadas para questão da violência doméstica contra as mulheres e, apesar da seriedade do assunto, a linguagem era bem-humorada e descontraída, e o seriado fez um grande sucesso.
Em dezembro de 1990, Maria Carmem Barbosa debutou nas novelas, como autora de 'Lua Cheia de Amor', ao lado de Ana Maria Moretzshon e Ricardo Linhares. Nesta primeira experiência em novelas, mais uma vez a convite de Daniel Filho, ela foi creditada como autora principal, mas atuou mais na retaguarda, como colaboradora – assim como faria três anos depois, na novela 'Olho no Olho', de Antonio Calmon.
Em 1996, Maria Carmem Barbosa e Miguel Falabella estreavam a sua primeira parceria depois de 'Delegacia de Mulheres': o humorístico 'Sai de Baixo'. Exibido nas noites de domingo, o programa era um sitcom gravado com a presença da plateia.
“Eu já estava escrevendo no teatro com o Miguel, estávamos super afinados. E eu adoro trabalhar com ele, é uma delícia, uma gargalhada só. Como eu fazia escalação do elenco também, sugeri o Miguel para fazer o Caco Antibes, e já que ele iria fazer, então escreveríamos juntos. Fizemos os quatro primeiros episódios.”
No mesmo ano, Maria Carmem deixou o programa para se dedicar à novela 'Salsa e Merengue', também iniciada em parceria com Falabella. Na novela, a dupla introduziu elementos da cultura latina por meio da Travessa do Vintém, onde viviam a personagem de Arlete Salles e os “cubanos”, como eram chamados.
“Acho o núcleo dos cubanos muito interessante, e acho que a novela teve um apelo popular muito grande”
'Vida ao Vivo Show'
Em 1998, foi uma das roteiristas do 'Vida ao Vivo Show', humorístico de apenas 25 minutos, exibido às terças-feiras. Comandado por Luiz Fernando Guimarães e Pedro Cardoso, a atração surgiu a partir do quadro 'Vida ao Vivo', apresentado no 'Fantástico'. Vestida de terno e gravata, a dupla aparecia como se fossem âncoras de um telejornal, chamando diferentes quadros que exploravam o lado cômico de situações rotineiras. No ano seguinte, teve a sua primeira experiência de programa para o público infantojuvenil, com o seriado 'Sandy & Júnior'.
Vida ao Vivo Show: Salva-vidas
Em 2005, estreava mais uma novela assinada pela dupla Maria Carmem Barbosa e Miguel Falabella, 'A Lua me Disse'. Curiosamente, a história surgiu da união de duas sinopses feitas cada uma por um dos autores, que foram rejeitadas pela emissora. A trama era uma comédia romântica que trazia personagens e situações que remontavam à chanchada, tendo como protagonistas Adriana Esteves e Wagner Moura.
No mesmo ano, foi exibido o especial 'Toma Lá Dá Cá', humorístico criado e escrito pela dupla. Dois anos depois, o especial se transformou em um programa semanal, nos mesmos moldes do 'Sai de Baixo' – gravado em um teatro com a presença da plateia. Segundo a autora, ela precisou rever seus conceitos de humor para escrever o programa.
“É mais difícil fazer humor do que drama. Porque já sabemos os caminhos do drama: a perda, a dor, a traição, a mágoa. Agora, na comédia, o que faz a pessoa rir? Precisamos de um time de comédia muito preciso para manter a plateia ligada, com o riso aberto do início ao fim.”
'Toma Lá, Dá Cá (2007): cena com Miguel Falabella, Diogo Vilella e Marisa Orth.
Além de novelas, seriados, minisséries, musicais e humorísticos, Maria Carmem Barbosa também escreveu dois especiais de Natal comandados pela apresentadora 'Xuxa: Crer para Ver' (1994), e 'Deu a Louca na Fantasia' (1995). Em 2002, foi um das juradas do reality show 'Fama', cujo objetivo era revelar novos talentos da música.
A parceria com Miguel Falabella foi produtiva também no teatro. Juntos, escreveram, entre outras, 'Querido Mundo' (1993), 'Louro, Alto, Solteiro Procura' (1994), 'Todo Mundo Sabe que Todo Mundo Sabe' (1995) e 'South American Way' (2001).
Também foi autora solo de teatro, em peças como 'Por um Triz Não Sou Feliz' (sua estreia como dramaturga, em 1985), e 'A Mulher Invisível' (2006), entre outras. Em 2008, no cinema, escreveu o filme 'A Guerra dos Rocha', de Jorge Fernando.
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Maria Carmem Barbosa morreu no Rio de Janeiro em 22 de setembro de 2023, aos 77 anos, vítima de uma parada cardiorrespiratória.
FONTE:
Depoimento concedido ao Memória Globo por Maria Carmem Barbosa em 06/04/2009 |