“Eu sou um cara de muita sorte”, define José Lavigne de Lemos Filho, carioca bem-humorado e apaixonado desde adolescente pelo teatro. Cria do Tablado, Lavigne deixou o riso conduzir sua vida profissional. Nos palcos, foi também palhaço. Mas, por trás das câmeras, optou por outro tipo de piada: a sátira. Dirigiu alguns dos principais humorísticos da televisão brasileira, como 'TV Pirata', 'Casseta & Planeta Urgente!' e 'Os Trapalhões'. Vinte anos depois de aprender a lidar com as câmeras, usou a experiência que tinha em auditório para embarcar em outro desafio: dirigir 'Na Moral', um bate-papo informal que discute diversos temas, tendo como mediador o jornalista Pedro Bial.
EXCLUSIVO MEMÓRIA GLOBO
Webdoc sobre concepção e formato do programa “Casseta & Planeta, Urgente!”, com entrevistas exclusivas ao Memória Globo.
Webdoc sobre composição dos personagens do programa “Casseta & Planeta, Urgente!”, com entrevistas exclusivas ao Memória Globo.
Tudo começou no Liceu Franco Brasileiro. José Lavigne era um adolescente rebelde, que não respeitava muito as regras da escola, e viu nas aulas de teatro um ponto de fuga para a educação rigorosa que recebia também em casa. Ali, conseguia exercitar a criatividade reprimida. O filho de José Lavigne de Lemos, bancário, e Adair Roma Leão Lavigne de Lemos, dentista, foi estimulado pelas atrizes Sura Berditchevsky e Louise Cardoso, suas professoras, a ingressar no Tablado. Em dezembro de 1972, quando tinha 15 anos, tornou-se frequentador assíduo do pequeno auditório que funcionava na Zona Sul do Rio de Janeiro.
O grupo de teatro amador se tornou sua segunda casa. Assistia a todos os espetáculos, à espera de um papel. Em depoimento ao Memória Globo, ele conta que as reuniões do Tablado foram fundamentais para sua formação intelectual. O fascínio também se deveu à proximidade com Maria Clara Machado, fundadora do grupo.
“Eu vinha do Catete e o Tablado era cheio de gatinhas, todas faziam análise. [Formei] uma linha de raciocínio psicanalítica junguiana, que é uma coisa que me norteia até hoje. O Tablado foi meu porto seguro!”
Asdrúbal Trouxe o Trombone
Após trocar de escola duas vezes, concluiu o colegial e prestou vestibular para direito, na Uerj, para agradar os pais. Continuou se dedicando ao Tablado diariamente e, em dado momento, não conseguiu mais equilibrar mais as duas coisas. Largou a universidade e se dedicou integralmente à vida artística. Em meados da década de 1970, conheceu o grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, que, com a peça 'Inspetor Geral', arejou o teatro carioca de comédia.
“A peça era engraçada, jovem, diferente, abusada e não era fiel ao texto. O Asdrúbal estimulou não só a mim, mas a todos da minha época”.
Em 1978, o grupo abriu teste para sua nova atração, 'Aquela coisa toda'.
“Fiz o teste com a faca nos dentes… Porque ali não era só uma coisa de ser ator, era um modelo de colaborar criativamente, de poder participar com ideias do espetáculo. Eu me joguei, suei a camisa e me aprovaram.”
Lavigne permaneceu no grupo por dois anos, contracenando com Luiz Fernando Guimarães, sob direção de Hamilton Vaz Pereira.
Manhas e Manias
No final de 1979, José Lavigne, Chico Diaz, Márcio Trigo, Dora Pellegrino e outros colegas do Asdrúbal decidiram formar um grupo de teatro coletivo, baseado em performance circense. No ano seguinte, Manhas e Manias já estreava com o espetáculo 'Diante do Infinito'. Com a nova empreitada, voltou às origens.
“Nossa primeira apresentação foi no Tablado, fomos os primeiros a fazer circo de verdade, criamos um sistema de treino, depois, adaptamos para o teatro infantil”
No Manhas e Manias, realizou seus primeiros trabalhos de direção. A experiência anterior com criação coletiva o ajudou.
“Aprendi a ouvir, respeitar a opinião do outro. Hoje, minha principal característica como diretor é ouvir todo mundo, saber diferenciar o que é importante do que não é. O trabalho do Asdrúbal e do Manhas e Manias me deu paciência. Temos que ser generosos para que a plateia receba aquilo com generosidade.”
'Teletema' e 'Armação Ilimitada'
Em 1986, José Lavigne teve sua primeira experiência na Globo. A convite de Roberto Talma, dirigiu um episódio do programa 'Teletema', chamado 'Laércio é nosso Rei', uma adaptação livre da peça 'Rei Lear', de Shakespeare, para a televisão. A temporada na emissora foi curta: tão logo terminou as filmagens, casou-se e viajou para a Europa. De volta ao Brasil, deu aulas de teatro no Tablado antes de ser chamado para a televisão.
“Quando o Guel me chamou, eu tremi nas bases. Era o único programa na TV que eu queria fazer! O Armação era moderno, um programa jovem. Eu falei que eu precisava aprender a filmar e o Guel me ensinou tudo, foi meu mestre.”
Em 1987, Guel Arraes convidou José Lavigne para ajudar na direção de 'Armação Ilimitada', que já estava no ar. O seriado estrelado por Kadu Moliterno, André de Biasi e Andréa Beltrão se transformou em um dos programas mais influentes da TV, ao mesclar a linguagem acelerada dos videoclipes, a um roteiro quase sem papas na língua e referências à cultura pop.
Ao dirigir as primeiras cenas externas de aventura, Lavigne aprendeu que é essencial não complicar as coisas. Principalmente em ambientes que envolvam a força da natureza e o imprevisível. “Tinha um [esquete] que se chamava 'Programa de Índio', e o nome já dizia tudo. Lembro de uma das minhas primeiras gravações que eu queria fazer uns planos diferentes na Praia da Macumba, com uma câmera no barco”, para mostrar Juba (Kadu Moliterno), em uma prancha de surfe, em alto mar. Ao fundo, a paisagem da cidade seria contemplada. Mas não deu certo. Naquele dia, a maré estava alta e as ondas, fortes. Ator e diretor conseguiram – a duras penas – nadar até o barco, mas chegando lá, o enquadramento não funcionou.
“Quando eu enquadrava não dava para ver nada da praia, então foi aquela lição: simplifica e faz direito!”
'TV Pirata'
O segundo desafio que assumiu na emissora foi a direção de 'TV Pirata', também ao lado de Guel Arraes. O humorístico estreou em abril de 1988, como uma sátira ácida da televisão brasileira.
“O programa era a continuação do 'Armação' no sentido da paródia e da galera. Eu tinha que estar lá! Débora Bloch, Regina Casé e Luiz Fernando [Guimarães], Louise Cardoso já tinham trabalhado comigo [no Asdrúbal], e o Diogo Vilela era muito meu amigo. Qual foi a sabedoria do Guel? Ele pegou o pessoal alternativo, underground, [do teatro] na época e trouxe para a televisão. Considero que, para todos dessa turma, foi o nosso lançamento”, explica.
José Lavigne revela que os bastidores do 'TV Pirata' eram uma loucura. Não só pelo perfil dos atores, mas pelo desafio de conjugar roteiros de escritores diferentes, em grande quantidade, e ainda fazer com que o episódio mantivesse uma única identidade.
“O Cláudio Paiva tem muito mérito, foi o cara quem montou aquilo ali. Eu chegava muito cedo e saía muito tarde, a edição tinha que correr. E eu fazia um trabalho muito delicado, que era a escalação do elenco, porque todos os atores tinham que ter a mesma quantidade de tamanho do personagem.”
Webdoc humor - TV Pirata (1988)
O diretor lembra que, no início da atração, mesmo os atores mais conhecidos faziam pontas em algumas cenas. “Todo mundo estava a fim que aquilo desse certo, tinha um espírito de grupo”, justifica. Para ele, 'TV Pirata' foi a “mãe” dos humorísticos que vieram na década seguinte na televisão. Principalmente 'Dóris para maiores', em 1992, e o subsequente 'Casseta & Planeta Urgente!', ambos dirigidos por Lavigne, tendo como roteiristas Hubert, Claudio Manoel, Bussunda, Helio de La Peña, Reinaldo, Marcelo Madureira e Beto Silva.
“A ideia era fazer um programa meio humorístico e meio jornalístico. A gente teve o Dóris para errar, e fomos acertando nossa mão com o Casseta”.
Cassetas
Lavigne chegou a participar da segunda fase do TV Pirata, em 1992, mas deixou a equipe para dirigir os Cassetas, que estrearam no mesmo ano. Ele, que permaneceu no programa até 2010, conta que um dos maiores desafio no começo foi a decisão de fazer dos roteiristas, atores principais. E explica:
“Tudo era um truque de representação, eles eram palhaços. Gosto do exemplo do Bussunda representando a Vera Fischer. Me perguntavam: ‘por que o Bussunda de Vera Fischer?’ e eu dizia ‘porque ele é nosso astro e ela, o astro da novela’. Ele não tinha nada a ver com a Vera Fischer, mas ele fazia um barulho com a boca parecido com o dela, a ponto de, um dia, anos depois, o Dennis [Carvalho] estar passando no Projac e falar que eles se pareciam. Não vem com essa! O que a gente fazia era escolher uma característica do humorista e uma do ator, e investíamos naquilo”.
E, por isso, os papéis eram distribuídos com cuidado. Ficava a cargo de Lavigne fazer a escalação do elenco para não dar briga. O diretor-geral seguia dois critérios: visualizar o personagem no intérprete (como o caso da Vera Fisher em Bussunda) e não ridicularizar nenhum dos Cassetas por alguma de suas características físicas. Ele ressalta a personalidade de cada um. Bussunda, em sua opinião, “não era versátil, mas era engraçado, se sobressaía”; Claudio Manoel seria “o mais versátil de todos”, enquanto Hubert, que já tinha sido ator, entrava mesmo na pele do personagem, “se concentrava de verdade”. “O Reinaldo era totalmente delicado. Um dia a Fernanda Montenegro falou que o Reinaldo fazia as mulheres mais delicadas da televisão, e era verdade!”, lembra. Já Marcelo Madureira “não tinha saco algum, ele brilhava fazendo o Coisinha de Jesus, que foi escrito para ele”. Beto Silva, o mais tímido, se destacou na pele do personagem Acarajete Love, uma paródia da cantora Ivete Sangalo. Hélio de La Peña era de um humor ácido e excelente redator.
Em 1994, com a entrada de Maria Paula no elenco, uma gama de outros personagens surgiu. Para Lavigne, a atriz caiu no programa como uma luva. “Ela entrou sem medo de ser feliz, topava a onda dos caras, não se impressionava com as barbaridades e também sacaneava os outros sem perder a classe. Fora que não namorava ninguém do grupo, esnobava a gente completamente! Então isso a mantinha acima… Sempre respeitamos muito ela”.
Naquele ano, Lavigne encontrou tempo para dirigir também 'Os Trapalhões', que passava por uma reformulação. Ele, que era fã do grupo desde criança, adorou ter passado pela experiência. “Foi muito importante para ter feito o programa, minha formação passou pelos Trapalhões, adorava assistir quando era mais novo. Foi muito legal ter participado”, comenta.
A partir de 1998, o 'Casseta & Planeta' foi produzido semanalmente e, nas palavras de Lavigne, entre tapas, beijos e trabalho árduo. O tempo era curto e as piadas, urgentes. “A Globo confiou muito na gente. Fazíamos o programa quase ao vivo nessa época, e eu achava que estava fazendo televisão de verdade, porque tinha que ser feito na hora. Isso me deu muita felicidade”. Principalmente quando conseguiam entrevistas polêmicas, com políticos.
“A gente chegava em Brasília e pensávamos: ‘Será que os caras vão falar com a gente?’ E eles faziam fila para ser sacaneados! A gente ia no lugar, fazia piada. Nosso jornalismo era muito ligado a ir no local e fazer a matéria. Viajamos o mundo todo”.
Outros trabalhos
Mesmo com os desafios da nova fase do 'Casseta', Lavigne conseguiu dirigir dois episódios de 'Você Decide', em 1999. No primeiro deles, chamado 'É se lhe parece', uma livre adaptação da peça 'Assim É, Se Lhe Parece', do diretor italiano Luigi Pirandello, Lavigne convidou Fernanda Montenegro para ser a protagonista. Já 'Meus Dois Fantasmas' teve participação especial de Claudia Raia. Em 2000, também equilibrou a agenda ao assumir a direção do seriado 'Garotas do Programa', humorístico escrito e estrelado por mulheres, que satirizava o universo feminino. Os rapazes do Casseta faziam a supervisão do roteiro elaborado pelo grupo de humor Grilo Falante.
Em 2006, o 'Casseta e Planeta Urgente!' cobriu a Copa do Mundo de futebol, na Alemanha. Mas a morte de Bussunda durante o mundial deixou toda a produção em choque. Lavigne revela que a perda do amigo foi um dos momentos mais difíceis da sua vida. E que foi duro ter fôlego para fazer humor depois. “Nós éramos um grupo de super-heróis, invencíveis, mas depois disso percebemos que somos mortais. Foi um baque total”. Para ele, a perda artística para o Casseta foi enorme.
No ano seguinte, Lavigne participou de outro projeto, em paralelo com o humorístico. Criou, com Alexandre Machado, 'O Sistema', outra série, mas desta vez de ficção científica, que “foi um barato de fazer”. Com Selton Mello, Betty Goffman e Gregório Duvivier no elenco, as tramas mostravam neuroses contemporâneas como consequência de um sistema de vigilância universal. O formato adotado na série contava com a capacidade de improviso dos atores.
Em seguida, o diretor idealizou com Luiz Fernando Guimarães um especial de natal que, em 2008, se tornou série semanal, feita em 12 episódios. Em 'Dicas De Um Sedutor', Luiz Fernando era Santiago Ortiz, um consultor sentimental que ajudava mulheres a conquistar o amor de suas vidas, ao desvendar o que se passava na cabeça dos homens. O jeito de encontrar clientes era fácil: Santiago tinha poderes especiais e conseguia ouvir o pensamento das mulheres à sua volta. Já em 2010, Lavigne dirigiu 'Batendo Ponto', série de humor que se passava no ambiente corporativo, estrelada por Ingrid Guimarães.
Quando o 'Casseta' saiu da grade de programação, em 2012, Lavigne aceitou um novo desafio na carreira, o de ser diretor-geral de 'Na Moral': “Eu já conhecia o Pedro [Bial] de outros carnavais, a gente se dava bem. Quando entrei no programa, senti valorizado o meu talento de ouvir e conciliar, que vem do teatro de grupo”. Uma característica que se adequa ao próprio espírito do programa, que busca ouvir diferentes pontos de vista a respeito de assuntos importantes da sociedade. A ideia é suscitar o debate, principalmente entre os jovens.
FONTE:
Depoimento concedido ao Memória Globo por José Lavigne, em 4/12/2013. |