Lançado no período da Ditadura Militar, o ‘Fantástico’ não conseguiu escapar à censura prévia dos meios de comunicação. Todos os domingos, o programa era submetido à análise minuciosa de um censor. E isso se deu desde a estreia. O programa do dia 05 de agosto de 1973 foi liberado pelo Serviço de Censura de Diversões Públicas, com parecer assinado por José Vieira Madeira, técnico de censura, que atestou: “observada a legislação em vigor, nada impede a liberação do programa, condicionada sua apresentação para após as 20h”.
“Desde que nasceu até 1981, 82, o ‘Fantástico’ teve um casal de censores. [...] Às oito horas, o programa entrava no ar, às seis horas o casal de censores começava a ver o material. Então, às vezes, sete e meia, 15 para as oito, eles estavam cortando, por isso que eu tinha uma gaveta de bichinhos, de aventura, de circo, de mágica que era para tapar os buracos. Eles cortavam tudo, mesmo que não tivesse nada para cortar, eles cortavam”, relembra José-Itamar de Freitas, diretor-geral do programa entre 1977 e 1991, em entrevista à Glória Maria no DVD de 30 anos do ‘Fantástico’.
Entrevista de José Itamar de Freitas sobre censura no 'Fantástico', em DVD dos 30 anos do programa
A edição de 26 de agosto de 1973 precisou de alterações. Segundo avaliação do censor, o humorista Chico Anysio estaria fazendo críticas veladas ao regime militar e, por isso, trechos de seu texto deveriam ser cortados, como indica o documento: “Foi solicitado ao sr. Chico Anisio, humorista e redator de seus textos, que se abstivesse de críticas ou comentários de dúbio sentido político, encerrando aí veladas críticas ao governo, como o inserido na piada sob a constância dos trens da Central do Brasil, chamada pelo humorista de ‘Estrada de Ferro Sem Trem do Brasil’ para o que solicite corte no áudio da gravação, salve melhor juízo de V.S”.
Em 09 de novembro, foram determinados cortes em várias partes do programa: toda a entrevista de Madame Satã e a entrevista do cabelereiro Renó a Ibrahim Sued, além da supressão radical de cenas de um jovem sendo alvejado. A justificativa era que os trechos atentavam “abusivamente contra os preceitos legais”. O técnico de censura também registrou que o tape não foi entregue aos censores na íntegra, uma vez que identificaram a ausência de reportagem sobre os índios xavantes.
“Era uma Ditadura, você era limitado. O que você podia falar? Esse título [‘Fantástico’] escapista já foi dado de propósito. Era o único que caberia, você não podia espalhar realidade numa Ditadura. Tinha que ser ‘Fantástico’. Então ele nasceu escapista. Fugiu, enganou a Censura com pequenas reportagens de bicho, por exemplo", lembra José-Itamar de Freitas.
Ainda em novembro, no dia 25, reportagem sobre anticoncepcionais para ambos os sexos foi cortada do programa. No documento de avaliação, o censor deixou claro que o programa só seria liberado para o horário solicitado, às 20h, com o corte demandado. Em 16 de dezembro, foi eliminada do programa a parte onde aparecia a filha da escritora Cecília Meireles, Maria Fernanda, declamando as poesias da mãe.
Em 06 de janeiro de 1974, a Censura determinou o corte na reportagem em que apareciam patinadoras com maiôs cavados, em close das suas “partes sexuais”. Destaque também para uma observação sobre Chico Anysio, dizendo que o humorista “mostrou-se sóbrio, embora na piada de banho de mar houvesse um double sens perceptível a maiores de 18 anos”.
No dia 17 do mesmo mês, uma carta de Rogério Nunes, diretor da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), encaminhada a Walter Clark reforçava que todo o conteúdo da TV Globo, incluindo o jornalístico, deveria passar por censura prévia. Não haveria, pois, distinção entre “informativo, entretenimento ou publicidade”.
Em 03 de fevereiro, o programa sofreu com corte na apresentação introdutória do cantor Luís Melodia por atentar ao disposto no artigo 41, alínea E, do Decreto-Lei N°20493 e no artigo 2, incisos II e III da Lei N°5536. O artigo 41, alínea E, do Decreto-Lei N°20493 negava a autorização sempre que a representação, exibição ou transmissão radiotelefônica prejudicasse a cordialidade das relações com outros povos. Já o artigo 2, incisos II e III, da Lei N°5536 tratava de censurar peças teatrais que ofendessem a coletividades ou as religiões, incentivassem preconceitos de raça ou luta de classes, e prejudicassem a cordialidade das relações com outros povos. Nesse mesmo documento, o próprio José-Itamar de Freitas, como aponta o censor, teria retirado as cenas do incêndio no edifício Joelma.
Em alguns documentos, os censores teciam comentários elogiosos ao programa, destacando sua importância para a formação de cidadãos bem-informados e sua valorização cultural.
Em 24 de junho de 1974, a Censura comunicou à produção que o programa estaria apresentando sentidos eróticos e pornográficos durante o quadro do humorista Chico Anysio. Solicitou, portanto, a revisão dessas apresentações para que não causasse mais “desconforto”. Em 12 de julho, a Censura determinou o corte do quadro que apresentava o músico Tom Zé em função da letra da música ‘Só olhos’.
Na edição de 04 de maio de 1975, a Censura demandou dois cortes: “no quadro com Ney Matogrosso, quando ele aparece de corpo inteiro, somente de tanga, no camarim. E no teleteatro de Carmen Monegal, quando esta se despe indo para o banheiro”. Em setembro, o parecer do censor justificava um corte em matéria do repórter Hélio Costa com o ator norte-americano Joel McCrea, quando ele disse: “(...) e a Censura nem sempre é justa”.
Ney Matogrosso canta 'Barco Negro'. A introdução do musical teve um trecho cortado à pedido da Censura Federal. 'Fantástico', 04/05/1975.
No final de dezembro de 1975, foi expedido documento em que se solicitava que programas musicais, incluindo o ‘Fantástico’, também encaminhassem para a análise o roteiro das músicas, com informações sobre autor, intérprete e número de registro. Em janeiro de 1976, a técnica responsável pela avaliação do programa reclamou do atraso na entrega do material.
Várias vezes foi preciso recorrer a musicais ou números de circo e mágica para ocupar o lugar de alguma matéria vetada pelos censores minutos antes do programa entrar no ar. Devido a esse tipo de pressão da Censura, resolveu-se, em um primeiro momento, privilegiar as reportagens internacionais, que acabaram marcando época.
“A cobertura internacional da TV Globo começou como escapismo. Que era o escapismo? Um processo político extremamente difícil na década de 60, quando nós ainda estávamos com uma situação de penúria no jornalismo brasileiro, com tudo vetado pelo regime militar, uma dificuldade muito grande de se cobrir assuntos nacionais. A TV Globo não podia fazer absolutamente nenhuma cobertura política, não podia fazer uma entrevista política. Para dizer a verdade, até algumas entidades internacionais estavam vetadas. No quadro da redação da Globo tinha uma nota proibindo a imagem do senador Ted Kennedy na televisão brasileira por causa dos ataques que ele fazia ao regime militar na questão dos direitos humanos”, lembra Hélio Costa, correspondente em Nova York nas décadas de 1970 e 1980.
No período em que foi correspondente em Nova York, Hélio Costa se recorda de momentos em que a Censura se fez presente, especialmente em uma reportagem investigativa sobre o assassinato do presidente norte-americano John Kennedy, que ocorrera em novembro de 1963. Um dos entrevistados não era bem-quisto pelo governo militar brasileiro, o que dificultou a exibição do material.
“Durante o tempo em que nós estávamos em Nova York fazíamos reportagens científicas, de interesse geral, mas também fazíamos reportagens políticas. Talvez o maior exemplo da preocupação com a Censura tenha surgido na época em que eu preparei uma grande reportagem para o ‘Fantástico’ sobre o assassinato do presidente John Kennedy. Não era necessariamente a história do assassinato, mas a história do filme de oito milímetros com 20 segundos de duração feito por um comerciante de Dallas, chamado Abraham Zapruder, que tinha filmado o assassinato do presidente, e que se tornou a peça mais importante da investigação oficial da Comissão Warren e de todas as investigações jornalísticas da morte do presidente Kennedy. Nós conseguimos entrevistar quase todas as pessoas envolvidas. Para fazer o trabalho do ‘Globo Repórter’ e da reportagem do ‘Fantástico’, eu tinha entrevistado a Evelyn Lincoln, secretária particular do Kennedy; o Theodore Sorensen, o redator dos discursos; o melhor amigo do Kennedy, a pessoa mais querida que ele tinha do lado dele o tempo todo, o David F. Powers; o Lawrence O’Brien, o assessor político mais ouvido; o senador Arlen Specter, que foi da Comissão Warren; o advogado David Belin, que foi da Comissão Warren; o governador John Connally, do Texas, que estava com ele no carro na hora do assassinato; e a mulher do governador, a Nellie Connally, que também estava na limusine presidencial na hora do assassinato. Para surpresa nossa, o problema maior é que, na época, o Ted Kennedy era persona non grata no Ministério da Justiça. Como senador dedicado às causas das minorias, dos direitos civis, das liberdades individuais, o senador Kennedy fazia constantemente críticas no plenário do Senado americano contra a tortura, contra a censura da imprensa. Então, ele atacava direto e frontalmente o governo militar brasileiro. Por essa razão, ele era censurado na imprensa brasileira. Ao ponto de, conforme disse, ter uma nota no quadro de avisos da TV Globo: ‘É proibida a imagem do senador Edward Kennedy, democrata do Massachusetts, Estados Unidos’. Mas para esta reportagem era fundamental ter a participação do senador Kennedy. E nós conseguimos uma entrevista com ele. Eu acho que nós conseguimos superar o problema, porque nós conseguimos dois grandes furos internacionais com essa reportagem. Primeiro, foi a declaração dele, a primeira que ele dava na época, de que não seria candidato a presidente da República. Depois de ter aparecido no ‘Fantástico’ e no ‘Globo Repórter’, acabou virando notícia nos Estados Unidos: ‘O senador Ted Kennedy, democrata de Massachusetts, disse a uma televisão brasileira que não será candidato a presidente dos Estados Unidos’. E a outra coisa importante é que o senador Kennedy [...] dava a entender que ele tinha aceitado a decisão do relatório Warren, que falava que não tinha havido conspiração para assassinar o Kennedy, que o Lee Oswald tinha agido sozinho. Tudo isso era a palavra oficial da Comissão Warren. E ele aceitava, entre aspas. E concordava que se tivesse alguma informação diferente, deveria ser reaberto o caso. Isso foi a nossa matéria. E isso também deu notícia lá. A ponto da revista Time, na época, ter feito uma nota de que ‘O senador Kennedy, falando à imprensa brasileira, declarou que não acreditava completamente nos resultados da Comissão Warren”.
O repórter Helio Costa entrevista com exclusividade o senador norte-americano Edward Kennedy, Fantástico, 03/08/1975.
José-Itamar de Freitas lembra um caso que gerou grande repercussão com os militares, em decorrência de um erro seu. Geralmente, entre uma notícia de atualidade e um musical, havia uma entrada do apresentador, explicando a atração seguinte. Na edição, José-Itamar decidiu deixar atualidade e musical em sequência. “Em resumo, morre um militar importante da Revolução, que era da Academia Brasileira de Letras. A matéria entra no final do programa, seguida pelo musical. [...] Aparece o corpo dele. Um dos militares que estava lá falou: ‘Nós esperamos que, ao chegar lá no alto, Deus faça justiça a esse grande militar. Não foi compreendido aqui na terra’. Corta, começa o musical com Martinho da Vila: ‘Aí, São Pedro, quando ele chegar aí faz que ele volte para a terra’. [...] Eu já saí direto para o corredor: ‘É agora’. Aí começou... Boni me chamando de maluco pelo telefone, Armando Nogueira me chamando de maluco, generais no dia seguinte aqui. Uma loucura total.”