Cinco anos de flagelos causados pela falta de chuvas levaram o Nordeste a índices críticos de pobreza e miséria. Em 1983, cerca de 1.200 municípios, 90% da região, haviam declarado estado de emergência. A vida média do nordestino era inferior em dez anos à dos outros brasileiros, e a mortalidade infantil na região ultrapassava em 150% a do Centro-Sul do país.
Reportagem sobre a seca em Bom Jesus da Lapa, Jornal Nacional, 09/08/1983.
CALAMIDADE
Em 1983, o Jornal Nacional exibiu diversas matérias sobre a seca no Nordeste. Para o jornalista Ronan Soares, um dos editores do telejornal na época, essa cobertura sobre a situação de calamidade que a região enfrentava foi de extrema importância.
“O governo militar falava muito da ponte Rio-Niteroi, da Transamazônica, da ocupação do Centro-Oeste, seguindo a linha do Juscelino. Mas a seca do Nordeste era um atestado de falência. Não é uma ditadura que muda a seca do Nordeste, não é a repressão que muda a situação social, e a seca era a prova visual, emocional disso. Então, quando a gente dava uma matéria da seca, da miséria, destruía toda a propaganda maciça do desenvolvimento. Era como se fosse um martelo batendo. Eu tinha consciência perfeita daquilo. Eles pressionavam, mas a gente já tinha o pé no chão. Falávamos: ‘Não, isso não é político. É uma calamidade igual à enchente no Sul’. Mas não era, era político”, explica.
PANELA VAZIA
A maioria das matérias sobre a seca no Nordeste foi realizada pelo repórter Francisco José, mostrando a realidade dos nordestinos. “Muita gente me criticava, a elite, aqueles que moram no bairro de Boa Viagem (Recife), que não tinham problema, não tinham parentes vivendo no interior. Estes chegavam a dizer: ‘Por que você só mostra o lado negativo do Nordeste?’ Eu respondia: ‘Não, eu mostro também o carnaval, mostro a Paixão de Cristo, em Nova Jerusalém, mostro Fernando de Noronha. Eu mostro o lado bonito, mas o lado feio é tão marcante que é o que fica na memória das pessoas e na sua.’ Eu fui criticado por causa das matérias, mas eu sabia que aquela era a saída, a Globo mostrando a realidade, apesar de toda censura. No início, eu não podia falar a palavra fome, era uma palavra proibida pela censura, não pelas emissoras de televisão, e sim pelos censores. Então, eu não falava a palavra fome, mas abria a tampa da panela de barro e mostrava que estava vazia, o muito que tinha era uma cabeça de bode. Em algumas casas aconteceu isso, aquilo era o alimento, a única refeição do dia para oito, nove pessoas. Era muito mais forte do que usar a palavra fome”, lembra Francisco José.
LEITOS SECOS
A reportagem exibida pelo Jornal Nacional, em 18 de junho, informou que, segundo a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), 25 dos 100 maiores açudes da região estariam totalmente secos até março de 1984. O estado dos rios também era crítico – os sertanejos estavam cavando buracos nos leitos secos para conseguir água para beber.
No dia 30 de julho, outra matéria de Francisco José destacava que 85% do território do Nordeste foram afetados pela seca. Segundo o repórter, uma parcela da população que vivia entre o Maranhão e Sergipe sofria de fome e sede por causa da seca.
Reportagem de Francisco José sobre as alarmantes previsões da Sudene sobre a seca no Nordeste, Jornal Nacional, 18/06/1983.
ROMARIA
Numa tradicional romaria a Bom Jesus da Lapa, cidade a 900 km de Salvador, o número de fiéis oriundos de diversos pontos do Nordeste para participar da procissão em louvor ao padroeiro da cidade chegara, naquele ano, ao recorde de 300 mil. A reportagem, apresentada pelo Jornal Nacional em 8 de agosto, mostrava que devotos rezavam para serem abençoados com a mesma graça: o fim da implacável seca que assolava a região.
No dia seguinte, outra matéria revelava que a população rural de Bom Jesus da Lapa não encontrava sequer água para beber. No município, a agricultura foi destruída e os açudes estavam completamente secos.
Reportagem de Francisco José sobre a romaria em Bom Jesus da Lapa, Jornal Nacional, 08/08/1983.
UM RETRATO DA SECA
Francisco José também acompanhou um dia na vida de dona Maria Iraci Conceição, que morava em Socorro, distrito de Recife, numa casa feita de taipa, com chão de barro. Por volta das 4h, ela saía para trabalhar, deixando em casa dez filhos pequenos. Às 7h, depois de andar a pé dez quilômetros na caatinga, chegava a uma frente de serviço de um programa emergencial, onde trabalhava como operária na construção de um açude. Ao fim do trabalho, percorria novamente o trajeto até sua casa. Ao chegar, preparava a única refeição da família: água, sal e uma cabeça de boi. “Não precisava ter produção; era só entrar com o carro pelas estradas de terra na região, chegar na casa e perguntar: ‘O que tem hoje para comer?’ A resposta era: ‘Esse fogãozinho a lenha aqui não é aceso há vários dias.’”, lembra o repórter que, junto com o cinegrafista, passou a noite no carro para poder registrar a rotina daquela mulher desde as primeiras horas do dia.
Para Francisco José, a personagem foi o símbolo da campanha Nordeste Urgente, criada pela Globo. “Qual era o trabalho de dona Iraci na frente de serviço? Pegar um carro de mão e passar cinco horas levando pedras de um lugar para o outro. Havia lá as pessoas quebrando pedras que ela carregava. Aquelas pedras eram colocadas em forma de barragem – as chamadas barragens de sonrisal, porque não tinham estrutura nenhuma, quando a água chegava, todo o trabalho era desfeito. Nós denunciávamos que aquilo não adiantava nada, que ia desaparecer; quando chovia, íamos lá mostrar: ‘Olha aí a barragem que levou tanto tempo para fazer.’ Mas era uma forma de dona Iraci ganhar dinheiro, uma forma equivocada de resolver o problema. Então, essa foi a grande personagem das matérias sobre a seca”, explica o repórter.
Reportagem de Francisco José sobre o cotidiano de uma família sertaneja em região assolada pela seca no interior de Pernambuco, Jornal Nacional, 08/08/1983.
NORDESTE URGENTE
Frente àquele quadro, a Globo lançou o projeto Nordestinos: o Brasil em busca de soluções, que incluiu a discussão de alternativas para a região e a organização da campanha Nordeste Urgente, de socorro às vítimas da seca. A campanha teve início no dia 18 de setembro, com a veiculação de mensagem gravada pelo cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro, dom Eugênio Salles, e com a realização de uma programação especial na Globo, com 12 horas de duração. Durante um mês, Nordeste Urgente mobilizou a população de todo o país. A Legião Brasileira de Assistência (LBA) coordenou o recebimento das doações em 540 postos e a distribuição dos alimentos não-perecíveis e dos donativos em dinheiro, feitos por telefone. Em São Paulo, a campanha arrecadou cerca de meio milhão de toneladas de alimentos em seu dia de abertura, que foi encerrado com um show de artistas de música popular no Parque do Anhembi.
O cardeal arcebispo do Rio de Janeiro, dom Eugênio Salles, faz a abertura da campanha “Nordeste Urgente”. Na sequência, reportagem de Isabela Assumpção sobre as arrecadações obtidas em São Paulo. Ancoragem de Cid Moreira. Fantástico, 18/09/1983.
Reportagem de Francisco José sobre a gravidade da situação da seca no Nordeste, Jornal Nacional, 30/07/1983.
FONTES
Depoimentos concedidos ao Memória Globo por: Francisco José (04/08/2008), Ronan Soares (27/10/2003); Jornal Nacional: a notícia faz história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004; Jornal Nacional 18/06/1983, 30/07/1983, 8-9/08/1983. |