Por Memória Globo

Arte/Globo

Em 19 de outubro de 1922, nascia Alfredo de Freitas Dias Gomes, mais conhecido por seu nome artístico Dias Gomes. Escritor, dramaturgo e roteirista, o baiano nascido em Salvador traçou uma carreira de sucesso na literatura, no teatro, no cinema, no rádio e na televisão. Foi na TV Globo que seus grandes sucessos conquistaram o telespectador brasileiro. No final de 1960 e nos anos 1970, a teledramaturgia passou por uma grande renovação estética e se consolidou como preferência nacional, tendo à frente dessas mudanças nomes como Dias Gomes e sua esposa, Janete Clair. Até então, o estilo predominante era o de Glória Magadan, que escrevia melodramas capa e espada, com histórias sobre reinos e personagens distantes da realidade brasileira. Com Janete e Dias, as tramas ganharam tons mais naturalistas, ágeis, com enfoque em nosso cotidiano. Ao longo dos anos 1980 e 1990, esse modelo de novelas e minisséries continuou a envolver os telespectadores. Era a consagração de um novo jeito de entreter e emocionar a audiência.

Para celebrar o centenário de nascimento de Dias Gomes, confira seus grandes sucessos, que marcaram e marcam a memória dos brasileiros.

Dias Gomes — Foto: Acervo/Globo

Teatro

Antes de estrear na televisão, Dias Gomes já tinha uma carreira consolidada como autor. Escreveu sua primeira peça, ‘A Comédia dos Moralistas’ (1937), aos 15 anos. Com ela, ganhou o primeiro lugar do concurso para jovens autores de teatro, organizado pelo Serviço Nacional do Teatro (SNT) e pela União Nacional de Estudantes (UNE). No entanto, o texto nunca chegou a ser encenado e foi publicado em livro. Na década de 1940, escreveu inúmeras peças de destaque, como as produzidas para a Companhia Procópio Ferreira, entre elas ‘Pé de Cabra’ (1942) e ‘Zeca Diabo’ (1943). Uma das peças mais famosas de Dias Gomes foi ‘O Pagador de Promessas’ (1959), encenada pelo Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A história ganhou o prêmio Palma de Ouro do Festival de Cannes com a versão cinematográfica dirigida por Anselmo Duarte, lançada em 1962. Muitas peças de Dias Gomes foram adaptadas, com sucesso, para as telas do cinema e da televisão.

Rádio

Em 1944, Dias Gomes aceitou um convite de Oduvaldo Vianna para trabalhar em São Paulo na recém-inaugurada Rádio Panamericana. Nessa época, ingressou no Partido Comunista Brasileiro (PCB), no qual permaneceu até 1971. Na rádio, trabalhou como roteirista, ator, produtor e diretor, tendo adaptado uma centena de contos, peças e novelas da literatura universal. Em 1945, transferiu-se para a Rádio Tupi-Difusora, em São Paulo, tendo sido demitido por motivos políticos em 1948. De lá, foi para a Rádio América e, logo em seguida, para a Rádio Bandeirantes.

Estreia na televisão

Com muita dificuldade de continuar seu trabalho na rádio e no teatro em tempos de Ditadura Militar, principalmente depois do AI-5 (1968), aceitou o convite de escrever para a televisão. Janete Clair, sua esposa, já era autora consagrada de radionovelas e telenovelas, e trabalhava na TV Globo desde 1967. Para burlar a Censura, Dias Gomes assumiu o pseudônimo de Stela Calderón e começou a escrever para a Globo em 1969. Sua primeira telenovela na emissora foi ‘A Ponte dos Suspiros’, uma adaptação da obra de Michel Zevaco e ainda de gênero “capa e espada”, comum à época.

Dias Gomes e Janete Clair — Foto: Acervo/Globo

A novela era escrita por um autor com quem, mais tarde, eu faria inúmeros trabalhos e de quem me tornei, graças a Deus, um excelente amigo: Dias Gomes. Ele era perseguido por ser comunista - se bem que a revolução perseguia até quem não era. Por isso, para trabalhar, ele tinha que usar pseudônimo: Stela Calderón. Depois de ‘A Ponte dos Suspiros’, eu fiz outra novela de Dias, ‘Verão Vermelho’.
— Ary Fontoura em depoimento exclusivo ao Memória Globo em 02 de abril de 2007
EXCLUSIVO: Memóriadoc de 'A Ponte dos Suspiros' (1969)

EXCLUSIVO: Memóriadoc de 'A Ponte dos Suspiros' (1969)

Renovação estética

A segunda novela, ‘Verão Vermelho’ (1969), foi assinada por Dias Gomes sem pseudônimo. Era ambientada no Brasil, mais precisamente na Bahia, e já apresentava traços da renovação estética da dramaturgia brasileira. Abordava temas polêmicos para a época, como desquite, reforma agrária e candomblé.

Foi deliciosa essa novela. Foi com colegas inesquecíveis: Jardel Filho, Dina Sfat – o Dias sempre estava presente nas gravações.
— Arlete Salles em depoimento exclusivo ao Memória Globo em 24 de junho de 2010

Dina Sfat e Mário Lago na novela 'Verão Vermelho', 1969 — Foto: Acervo/Globo

EXCLUSIVO: Memóriadoc de 'Assim na Terra Como no Céu' (1970)

EXCLUSIVO: Memóriadoc de 'Assim na Terra Como no Céu' (1970)

Logo depois, Dias Gomes escreveu ‘Assim na Terra como no Céu’ (1971), levando para a televisão a moda e os costumes da juventude carioca. Dias fez, em seguida, ‘Bandeira 2’ (1972), que apresentava, pela primeira vez, um bicheiro – Tucão, vivido por Paulo Gracindo – como protagonista de telenovela. A história era uma espécie de ‘Romeu e Julieta’ dos subúrbios do Rio de Janeiro, protagonizada por bicheiros e taxistas.

'Bandeira 2' foi um sucesso, uma novela urbana, feita na Zona Norte, perto da Imperatriz Leopoldinense. Ao lado da quadra da escola, tinha um prédio onde ficou nossa sede, durante dez meses. Tudo era feito em Olaria, em Ramos, na Professor Lacê. Trabalhavam o Grande Otelo; o Paulo Gracindo, que fazia o Tucão; o Felipe Carone fazia o Sabonete. Enfim, tinham vários personagens, todos eles muito centrados na Zona Norte, no jogo do bicho, na escola de samba, o próprio romance entre os meninos estava com uma conotação meio de Romeu e Julieta suburbano, uma novela muito interessante.
— Ary Fontoura em depoimento exclusivo ao Memória Globo em 02/04/2007
EXCLUSIVO: Memóriadoc de 'Bandeira 2' (1971)

EXCLUSIVO: Memóriadoc de 'Bandeira 2' (1971)

TV em cores

Dias Gomes foi autor da primeira novela diária em cores no Brasil. Em 1973, ‘O Bem-Amado’ apresentava personagens inesquecíveis vividos por Paulo Gracindo, Lima Duarte, Dirce Migliaccio, Emiliano Queiroz, Ida Gomes, entre outros. O prefeito Odorico Paraguaçu (Paulo Gracindo) fez tanto sucesso que deu origem a um seriado que permaneceu no ar durante quatro anos, a partir de 1980, e deu continuidade aos discursos e neologismo do prefeito Odorico.

Discursos e neologismos de Odorico Paraguassu em 'O Bem-Amado'

Discursos e neologismos de Odorico Paraguassu em 'O Bem-Amado'

A televisão em cores parecia um sonho, porque a gente via cores no cinema. Começando na televisão, eu disse: ‘Meu Deus do céu, que coisa boa, eu vou fazer a primeira novela em cores’. Foi uma sensação, uma emoção muito grande para todos nós.
— Dorinha Duval em depoimento exclusivo ao Memória Globo em 09/12/2008
EXCLUSIVO: Memóriadoc de 'O Bem-Amado' (1973)

EXCLUSIVO: Memóriadoc de 'O Bem-Amado' (1973)

A história era simples e se passava na fictícia Sucupira: o prefeito Odorico, sem escrúpulos, quer inaugurar o cemitério da cidade, sua grande obra pública. O problema é que ninguém morre. Para resolver o problema, contrata um matador que garanta o defunto e, consequentemente, a inauguração. Mas, para desespero de Odorico, o matador Zeca Diabo (Lima Duarte) está arrependido e parou de matar. A novela também traz outros tipos, como Zelão das Asas (Milton Gonçalves), que constrói asas para voar, e as irmãs cajazeiras, fofoqueiras que paparicam o prefeito. As personagens eras interpretadas por Ida Gomes, Dorinha Duval e Dirce Migliaccio.

O Dias aproveitou um fato verdadeiro, lá do Nordeste, de um cara que tinha feito promessa de voar, só que ele não morreu. Então, ficou emblemático o personagem, porque voar não é só voar, é dar um salto qualitativo, é avançar na vida, é conquistar outras paisagens, é ir para frente. E, para mim, era essa a leitura que eu fazia do Zelão das Asas. Não era só um cara louco que queria subir na igreja e voar com aquela asa de morcego.
— Milton Gonçalves em depoimento exclusivo ao Memória Globo em 31 de março de 2008

Além da grande repercussão positiva no país, a produção conquistou quase toda a América Latina, tendo sido a primeira novela brasileira a ser vendida para o exterior – antes, apenas os textos das novelas eram comercializados. Em tempos de Censura Federal, a trama de 'O Bem-Amado' sofreu interferências, como a proibição do uso das palavras Coronel e Capitão, além de cortes de cenas.

Em 2010, a história ganhou nova versão em formato de minissérie, originada do longa-metragem homônimo, dirigido por Guel Arraes e com roteiro dele e de Claudio Paiva, a partir do original de Dias Gomes. Tendo Marco Nanini no papel do prefeito, a minissérie da TV Globo foi ao ar em quatro capítulos, acumulando 26 minutos a mais do que o filme e com mais destaque às tramas paralelas.

Marco Nanini, Zezé Polessa, Andréa Beltrão e Drica Moraes durantes as gravações de 'O Bem Amado', em Alagoas, 2009 — Foto: Ricardo Ledo/Globo

Em 1974, Dias Gomes escreveu a novela ‘O Espigão’, tratando de temas ambientais, criticando o progresso tecnológico das grandes cidades e a desumanização das relações sociais. Voltou a abordar a temática ecológica denunciando crimes ambientais ao escrever a novela ‘Sinal de Alerta’, em parceria com Walter George Durst, em 1978. Essa foi a última novela da faixa das 22 horas.

Logo da novela 'O Espigão' — Foto: Acervo/Globo

Censura

Em 1975, umas das mais graves ações da Censura à teledramaturgia acertou Dias Gomes em cheio. A novela ‘Roque Santeiro’, com 51 capítulos escritos e 20 gravados, foi totalmente proibida pela Censura Federal para a faixa das 20h, para a qual havia sido aprovada, e liberada somente para as 22h, mudando completamente a programação da emissora. Roberto Marinho, proprietário da Globo, decidiu não transmitir a novela em outro horário. O motivo da proibição nunca ficou completamente comprovado, mas tudo leva a crer que teria sido uma conversa telefônica de Dias Gomes com Nelson Werneck Sodré, gravada pelo Serviço Nacional de Informações (SNI). Na ligação, Dias Gomes teria dito que havia enganado os censores com uma adaptação de sua peça proibida ‘O Berço do Herói’.

O ministro Falcão, que havia proibido 'Roque Santeiro', achou que realmente não tinha nada, que eles proibiram mais para mostrar autoridade e especialmente porque Dias Gomes havia dado um telefonema dizendo que tinha enganado a censura militar ao adaptar 'O Berço do Herói' para 'Roque Santeiro'. Não sei se isso ocorreu, na verdade, mas foi um momento extremamente difícil.
— Boni em depoimento exclusivo ao Memória Globo em 04 de maio de 2000
Eu sabia, nós sabíamos, que a novela era baseada na peça 'O Berço do Herói', que fala de um pracinha supostamente morto na guerra, mas que, na verdade, não morreu. Como nós tínhamos tirado da história o rapaz que fazia santos na cidade e que tinha morrido defendendo a cidade de supostos cangaceiros, então nós achávamos que tínhamos saído da linha de tiro.
— Daniel Filho em depoimento exclusivo ao Memória Globo em 19 de julho de 2000

Realismo Fantástico

Pesando a mão na linguagem mágica que já tinha sido usada em outras novelas, Dias Gomes levou às telas ‘Saramandaia’, em 1976. O realismo fantástico da literatura latino-americana ganhou as telas da TV Globo, contrapondo a fantasia à realidade. Sem sair da mira da censura e tendo muitos trechos e cenas censuradas, o autor conseguiu mostrar personagens que, apesar da aparente contemporaneidade e normalidade, pegavam fogo de tesão, explodiam de tanto comer, colocavam o coração pela boca de nervosismo e tinham asas para voar. Em ‘Saramandaia’, as alegorias eram críticas ao cotidiano vivido no país naquele momento. Em 2013, foi levado ao ar um remake de sucesso, assinado por Ricardo Linhares.

Era um tema inusitado, se falava do realismo fantástico, que era o chavão da época, classificaram como realismo mágico. Tinha o homem que botava formiga pelo nariz, a mulher que explodia de tanto comer – tipos estranhos assim. Tinha o homem que voava.
— Pedro Paulo Rangel em depoimento exclusivo ao Memória Globo 12 de junho de 2002
EXCLUSIVO: Memóriadoc de 'Saramandaia' - 1ª versão (1976)

EXCLUSIVO: Memóriadoc de 'Saramandaia' - 1ª versão (1976)

Em primeiro plano, Vera Holtz como Dona Redonda, na segunda versão de 'Saramandaia', 2013 — Foto: João Miguel Júnior/Globo

Casa de Criação Janete Clair

Janete Clair, importante autora de novelas e esposa de Dias Gomes, faleceu em decorrência de câncer em 1983. O autor foi chamado para supervisionar a parte final da novela ‘Eu Prometo’, último trabalho da autora, e orientar a então iniciante Gloria Perez, que era assistente de Janete Clair e ficou responsável pela trama. Em 1985, Dias Gomes coordenou a Casa de Criação Janete Clair, que selecionava e elaborava roteiros para as produções da emissora, com o intuito de renovar a linguagem da dramaturgia da Globo.

Roque Santeiro

A ideia de levar 'Roque Santeiro' às telas pôde finalmente ser realizada com a abertura política em 1985. Roque Santeiro, Sinhozinho Malta e Viúva Porcina, vividos respectivamente por José Wilker, Lima Duarte e Regina Duarte, tornaram-se ícones da teledramaturgia brasileira. Autor da versão original, Dias Gomes escreveu apenas os primeiros e os últimos 50 capítulos da nova versão, deixando a trama a cargo de Aguinaldo Silva e Marcílio Moraes.

EXCLUSIVO: Memóriadoc de 'Roque Santeiro' (1985)

EXCLUSIVO: Memóriadoc de 'Roque Santeiro' (1985)

Minisséries

Dias Gomes escreveu minisséries de grande sucesso. A adaptação de ‘O Pagador de Promessas’, dirigida por Tizuka Yamazaki, foi ao ar em 1988 e obteve enorme êxito e reconhecimento. Outra minissérie bem-sucedida foi ‘As Noivas de Copacabana’ (1991), narrando a história de um psicopata vivido por Miguel Falabella. Já ‘Decadência’ (1995), fazia um contraponto entre o súbito enriquecimento de um pastor que explora fiéis e a decadência de uma poderosa família. Dias Gomes também adaptou o romance ‘Dona Flor e Seus Dois Maridos’, de Jorge Amado, para minissérie protagonizada por Giulia Gam, Marco Nanini e Edson Celulari, exibida em 1998.

EXCLUSIVO: Memóriadoc de 'O Pagador de Promessas' (1988)

EXCLUSIVO: Memóriadoc de 'O Pagador de Promessas' (1988)

Inovações na linguagem

Em 1990, escreveu a novela ‘Araponga’, com Ferreira Gullar e Lauro César Muniz, que parodiava filmes antigos de espionagem. Em 1996, Dias Gomes assinou, com Ferreira Gullar, ‘O Fim do Mundo’, a primeira micronovela da TV Globo no horário nobre, com apenas 35 capítulos. Também nesse período, foi o responsável, em parceria com Marcílio Moraes, pela segunda versão da novela ‘Irmãos Coragem’, de Janete Clair.

Otávio Augusto na novela O Fim do Mundo, 1996. Nelson Di Rago/Globo - memoriaglobo/O-Fim-do-Mundo-Otávio-Augusto5.jpg — Foto: Memória Globo

O imortal da cadeira número 21 da Academia Brasileira de Letras faleceu de forma trágica aos 76 anos, no dia 18 de maio de 1999, em um acidente de carro em São Paulo. Assim, o Brasil perdeu um dos maiores criadores da televisão brasileira, mente fértil que imaginou Sucupira, Saramandaia, Odorico, dona Redonda, Sinhozinho Malta, viúva Porcina, entre tantos outros que se imortalizaram na imaginação dos brasileiros.

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