Personagens reacionárias segundo José J. Veiga

Por Jean Pierre Chauvin, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

 16/11/2023 - Publicado há 1 ano

A literatura brasileira está repleta de criaturas que agem de modo arbitrário, ou seja, que exercem mandos e desmandos conforme desígnios pessoais, em nome de princípios aparentes, valores dúplices e causas inquestionáveis.

Dessa extensa galeria, poderíamos destacar o Major Vidigal [Memórias de um Sargento de Milícias (1855), de Manuel Antônio de Almeida], que personifica o poder máximo de aplicar corretivos em nome da lei e da ordem; Simão Bacamarte [O Alienista (1882), de Machado de Assis], o cientista formado em Coimbra e Pádua que transforma a vila de Itaguaí em um experimento capaz de determinar limites entre os vícios e as virtudes; João Romão [O Cortiço (1890), de Aluísio Azevedo], que sobe de modesto comerciante a poderoso especulador de imóveis, escorado nos esforços sobre-humanos de Bertoleza; o Soldado Amarelo [Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos], que prende e solta o retirante Fabiano, conforme o humor do momento; Philogônio Castro Maya [O Mulo (1981), de Darcy Ribeiro], um latifundiário decadente que pretende justificar a brutalidade dos modos como pré-requisitos para o exercício do poder e manutenção do prestígio pessoal.

Como dizia, a lista é longa; mas a intenção não é reduzir esta coluna a um inventário de determinados tipos literários. De todo modo, conviria aprofundar a reflexão. Por isso, sugiro que examinemos algumas personagens que habitam Aquele Mundo de Vasabarros (1982) – território sombrio que José J. Veiga transformou em alegoria do Brasil, durante a ditadura militar: “labirinto de corredores, passadiços, galerias” em que os dias “eram cinzentos e pesados”.

Dentre as criaturas que orbitam o poder máximo nessa cidade-estado hostil, murada e repleta de caminhos que não levam a lugar algum, repleta de “gente soturna, assustada, desconfiada, farejante”, duas figuras autoritárias se destacam: o Simpateca (maior posto do Executivo, ocupado por Estêvão IV) e Gregóvio, um dos senescas (assessores diretos do primeiro). É sugestivo que o narrador conceda algum espaço a eles, para destroná-los logo em seguida, ironizando o que dizem e fazem.

Isso permite que o leitor detecte o modo enviesado como um e outro concebem seu pequeno-grande mundo, regulado pela desfaçatez. Veja-se, por exemplo, este diálogo entre Simpatia e Cerimônia, no quinto capítulo:

– Epa! Que bicho é esse? Tirem disso daqui! – gritou ele.
– É só um morceguinho – disse o Cerimônia inadvertidamente, pensando que, minimizando o tamanho, acalmaria mais depressa o chefe.
– Morceguinho? Morceguinho? E eu sou homem de me assustar com morceguinho? Você deve estar sofrendo da vista. Aquilo foi uma coruja, ou um corujão. Chame os caçadores.
O morcego reapareceu em voo molengo e foi se pendurar numa trave do teto, tem à vista dos dois, e ficou lá de cabeça para baixo, como um retalho de pano preto. O Cerimônia não disse nada, não teve coragem. Quem falou foi o Simpatia.
– Ah, este sim, é um morcego. Deve estar fugindo da coruja. Coruja caça morcego, sabia? (p. 27).

As recriminações que o Simpatia faz ao Cerimônia traduzem a assimetria das relações e a severidade dos que comandam Vasabarros. Trata-se de questionar se Estêvão IV não vira o morcego ou se fingira enxergar outro animal, para dissimular o medo. O Simpatia se porta grosseiramente com o assessor, evidenciando o contraste entre a postura escandalosa do tirano e o comportamento discreto do subalterno (por ironia, o funcionário responsável por organizar os rituais de poder, durante as encenações protagonizadas pelo Simpatia). Ora, o modo como Simpatia questiona Cerimônia sugere que em Vasabarros se atribuíam diferentes pesos às palavras, conforme o posto ocupado pelo falante.

Em outra passagem, José J. Veiga recorre ao discurso indireto livre, fundindo as vozes do senesca Gregóvio e do narrador:

Uma descoberta que Gregóvio tinha feito era que toda pessoa inteligente é preguiçosa. As pessoas inteligentes veem as coisas com clareza mas não tiram vantagem disso – por preguiça. Parece que inteligência é uma coisa muito cansativa. Eles armam tudo muito bem armado, mas só até um ponto. Daí para diante ficam cansados e vão dormir, em vez de perguntarem: e se isso não der certo, ou for anarquizado pela burrice da outra parte? Para ser bom na guerra é preciso contar também com a burrice do adversário (p. 121-22).

No excerto, somos apresentados à pseudoteoria formulada pelo senesca responsável pela segurança do território, que distinguia o trabalho intelectual do físico contrapondo as “pessoas inteligentes”, mas ineficientes, aos “adversários burros”, mas eficazes. Respaldado pelo senso comum (que não admite que um mesmo sujeito pense e aja; teorize e pratique; reflita e lute), o narrador reproduz um clichê vigente ainda hoje, quarenta e um anos após a publicação do romance…

Vale lembrar que a distopia é uma categoria literária que floresceu no País entre as décadas de 1970 e 1980. Consciente de que os golpes militares não eram regimes de exceção, mas uma constante na história brasileira, José J. Veiga declarou que parte de seus livros foram escritos, justamente, para “desassossegar” os leitores. Nesse sentido, podemos afirmar que determinadas obras repercutem como bens culturais de resistência.

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