O recém-lançado "Manual Prático do Novo Samba Tradicional, Vol. 01: Dona Paulete", álbum de Marcelo D2, veio para reforçar o que o músico falava para a GQ Brasil no começo de dezembro, durante entrevista para a capa de Dezembro/Janeiro: as misturas musicais só estavam começando. De inspiração, se atentou ao trabalho de Rosalía e Billie Eilish para destravar novas possibilidades.
"Quando as duas usando grave do rap (na música pop), eu falei: Essas minas estão usando o grave que é nosso. Vou pegar esse grave aqui e vou fazer alguma coisa com ele. Abriu uma porta para falar: Se eu pegar esse grave e juntar com Clementina de Jesus, acho que tem um caminho, agora é o momento que eu posso fazer meu samba", diz D2.
E foi o que fez no novo álbum. Logo na introdução, a diretora Luiza Machado (com quem D2 é casado há cinco anos e tem uma filha, Bebel) avisa que "o desejo de uma nova sonoridade partiu de um prato de rabada, depois veio a icônica bateria eletrônica 808 que você tá ouvindo agora, se junta à ela os tradicionais repique e tantan do Cacique de Ramos, a cuíca ancestral dos Quirino lá de Padre Miguel, e claro, nosso pandeiro".
Segundo D2, "Manual Prático do Novo Samba Tradicional" nasceu para ser uma extensão de "IBORU", lançado em 2023, que é seu mergulho mais profundo nas águas do samba e conta com composições inéditas (e participações) de bambas como Zeca Pagodinho, Xande de Pilares e o pensador Luiz Antonio Simas. Em entrevista exclusiva para a GQ Brasil, Marcelo D2 fala sobre sua ligação com esses mestres e ícones da música brasileira.
GQ BRASIL: Marcelo, vamos começar pelo final: qual será o futuro do D2?
MARCELO D2: Eu sou filho de Ogum, cara, aprendi que eu mexo muito com essa coisa da inquietude, da inovação. O futuro é incerto, mas tenho certeza de que estarei mexendo com algo que ainda não mexi. Estou usando muito uma metáfora do arco e flecha: quanto mais você puxa para trás, mais você acerta lá na frente.
Essa metáfora é do professor e escritor Luiz Antonio Simas,né? Qual a influência dele no seu trabalho?
Eu conheço o Simas há muitos anos, só que, quando você conhece o cara do boteco, do samba, é uma coisa. Agora, quando você senta e fala com o cara, como quando eu fiz as lives com ele, naquele período da pandemia, eu vi uma pessoa incrível, que talvez eu não tivesse reparado antes. Eu falei para ele que Tyler (The Creator), Kendrick (Lamar), Clementina de Jesus e Luiz Antonio Simas foram as maiores influências para o “Iboru”.
O Simas é autor de vários livros. Você lê bastante?
Eu leio muito sobre o que está me interessando, mas pouca ficção. Gostaria de ler mais. A Luiza lê bastante, então acaba que, uma hora tu está no celular, olha para o lado e tua mulher está lendo, dá até vergonha. Aí tu fala: “tá, vou pegar um livro aqui”. Eu leio desde moleque, sou de uma geração em que as pessoas tinham vergonha de ser burras. Para a minha mãe, educação, cultura eram sempre muito valorizadas. Poesia era uma coisa cultuada na minha família. Tento fazer isso com meus filhos; a minha pequenininha, Bebel, está com 3 anos e ama livro, tem uma biblioteca incrível.
O meu avô paterno era poeta. Ele era farmacêutico, na verdade, mas escrevia poesia para os netos, para as filhas, para todo mundo que nascia. Meu pai, seu Dark, a gente ia ao cinema e ele dizia: “Fala o que você achou do filme, e não vale falar que achou maneiro ou achou legal”. Eu era criança, né? Mas já falava: “Achei muito violento aquele cara”; dava uma análise. Estou falando isso agora, mas acho que talvez nunca tenha verbalizado isso, pensado nisso, mas a família toda tinha esse cuidado com o pensamento.
Você foi bastante abraçado pela turma do samba, né?
Sim, cara, o Arlindo Cruz virou meu irmão. Eu sou padrinho do Arlindo de casamento, além do Zeca. O grande elo entre nós três era o Arlindo. Acredito muito que hoje a minha amizade com Zeca tenha um pouco da saudade que a gente sente do Arlindo. Nunca falei isso com o Zeca, mas, quando a gente se encontra, sinto que a gente vê o Arlindo do nosso lado, sabe? A gente percebe aquela energia que tinha ali. Mesmo a gente estando mais calmo hoje em dia (risos). Eu não choro mais (em uma participação no programa do Jô Soares, Zeca Pagodinho faz uma pergunta para D2 usando o termo "chorar” como sinônimo para cheirar cocaína), mas, para mim, tê-los por perto me deu uma certeza maior e uma autoestima maior. Sei lá, eu faço uma música estranha faz 30 anos, né? O Marcelo Yuka (do grupo O Rappa] que falava: “Não sei como é que o Planet Hemp deu certo; tinha tudo para dar errado”.
E como você caiu no punk?
Skate!
Mas você não curtiu skate porque viu a foto de um skatista punk (Duane Peters)? O que veio primeiro: o ovo ou a galinha?
Então, eu sou do Andaraí, do lado da Tijuca, que é um lugar de metaleiro para caralho, né?
A Tijuca é metal?
A Tijuca é metal total, tá ligado? Aí, eu era moleque, estava jogando bola na rua, encontrei o álbum “Paranoid”, do Black Sabbath, no lixo, porque tinha quebra do a primeira faixa; tinha quebrado uma ponta do disco. Eu ainda briguei com um amigo meu, Betinho, ele que tinha achado, na verdade. Mas eu falei: “Tu não tem toca-disco em casa”. Aí ele: “Porra, tá bom, fica com ele, que eu vou lá na tua casa ouvir”. Lembro que me encontrei com ele no dia seguinte e falei: “Mano, aquele disco acho que tá quebrado (risos), é mó barulheira, jogaram fora por isso”. (risos) Meu pai tinha uma vitrola, eu botei o disco e pensei: “Deve ser outra rotação, está estranho demais. Nunca tinha ouvido uma guitarra assim, tá ligado?”. E não tinha “Iron Man” e a primeira música do outro lado, não lembro qual.
“War Pigs”. “War Pigs” é a primeira do lado A.
É, “War Pigs”, que depois eu ouvi e falei: “Caralhoooo!”. Eu lembro que eu devia ter uns 13 anos; estava ouvindo aquela parada e um amigo meu falou assim: “Tem uns caras que gostam disso lá na Tijuca, na Praça Saens Peña”. Eu falei: “Puta, vou lá”, era molequinho, andava tudo aquilo ali a pé. Minha mãe ia trabalhar; eu ficava soltinho... Fui lá na loja de disco e vi os cabeludos lá. Todo mundo já sabia o que era roqueiro e tal, mas eu achei a galera superinteressante. Eu não tinha muita grana para comprar, lembro que eu roubei uns discos. Era aquele (disco com) “Vital e Sua Moto”, dos Paralamas do Sucesso, mas eu queria trocar; fui na outra loja trocar por um disco mais de metal. E esse visual me chamou atenção, aí, quando eu vi o Duane Peters (skatista punk), falei: “Caralho, olha isso, mano, eu quero ser isso daí”. A partir do skate, um universo se abriu, o jogo mudou.