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Por muitos anos, em boa parte das sociedades, ser homem significava seguir uma receita básica: mostrar força, brutalidade e violência. Sem isso, havia pouca chance de sobrevivência.

Entretanto, não habitamos mais um mundo no qual se dependa da caça para comer, da derrubada artesanal de árvores para construir casas ou de guerras para se desenvolver (embora elas ainda assolem a humanidade). Mudamos muito nos últimos 100, 150 anos. E ninguém mudou mais do que as mulheres, que conquistaram independência e respeito, embora ainda haja muito por lutar.

No meio de tantas transformações, os homens acabaram perdidos. Se não é mais preciso mostrar-se o todo-poderoso, sem fraquezas, como agir agora? Ou seja, como deixar de ser um possível homem tóxico? O termo masculinidade tóxica, segundo a doutora em psicologia Liliana Seger, surgiu ao mesmo tempo em que as mulheres foram conquistando espaço na sociedade. “Trata-se de um outro nome para o machismo, mas que abrange mais comportamentos”, explica.

Ser tachado de “tóxico” pode gerar uma crise no homem moderno. E isso é bom! Se alguém não se preocupa com esse rótulo, o caso é mesmo perdido, atesta a especialista. A mudança, segundo Liliana, começa com o incômodo que essa conduta causa no próprio homem.

Ediane Ribeiro, psicóloga pela Universidade de Brasília, cita ainda que o homem “ogro” abafa suas emoções. Então, fica difícil perceber o que sente, e não se notam desconfortos desse tipo.

“Só que o ser humano possui sentimentos, não dá para fugir. A masculinidade bruta é uma construção”, aponta Ediane. “Se alguém é tão rústico a ponto de reprimir o que sente, isso pode transbordar em violência, alcoolismo ou abuso de drogas como forma de anestesiar as emoções.” Até mesmo modos exagerados de fanatismo, como viver em função do futebol, podem ser uma expressão dessa repressão.

Guia prático para não ser um homem tóxico — Foto: Arte: Liu Anno
Guia prático para não ser um homem tóxico — Foto: Arte: Liu Anno

A violência, nesse caso propriamente crimes, se espelha em dados. De acordo com levantamentos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 95% da população carcerária do país é masculina. A questão também se reflete nas estatísticas sobre suicídio. A incidência é 2,3 vezes maior entre homens que entre mulheres, diz a Organização Mundial da Saúde (OMS). “O homem não admite suas fraquezas. Somos ensinados desde cedo a ser assim”, afirma o psicólogo Hátila de Castro Estevam, do Núcleo TransUnifesp (NTU), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

“Quando eu era menino, meu pai quis que eu segurasse o pescoço de uma galinha para ele matar. Comecei a chorar e ele disse: ‘Tu não é homem, não?’.” A questão é que todos nós temos fraquezas, e precisamos saber lidar com elas. “Não conseguir cuidar dessa parte gera adoecimento do homem, das pessoas à sua volta e da sociedade”, pontua Ediane.

Não à toa, o Instituto Igarapé, organização sem fins lucrativos focada em segurança pública, climática e digital, ao elaborar o recém-lançado “Guia Prático para Formulação de Políticas Públicas de Prevenção à Violência contra Mulheres”, listou o desemprego como um dos principais fatores que levam os homens a agredir as mulheres. Não ser o tradicional provedor da casa consiste numa situação de vulnerabilidade. Ao se sentir fraco, o homem tóxico, em vez de olhar para esse problema e esse sentimento, descamba para a violência.

A masculinidade tóxica é algo tão arraigado em nossa sociedade que até mulheres normalizam e repetem esses padrões. “É como o racismo estrutural, que aprendemos. Mesmo que você não queira ser racista, muitas vezes reproduz comportamentos racistas”, explica o psicólogo da Unifesp. Por isso, enumeramos a seguir dicas para ser um homem melhor, e menos tóxico.

Criação dos filhos

Trata-se do campo mais importante. Educar meninos e meninas de forma igualitária muda uma sociedade. A ordem aqui é evitar diferenciar meninos e meninas a todo momento. Não, os garotos não são mais violentos por natureza ou biologicamente mais inclinados à agressividade. “Isso é algo 100% criado pela sociedade”, afirma a psicóloga Ediane Ribeiro. Não existe brinquedo, cor ou passeio de menina e de menino. Chorar e demonstrar medos é próprio da criança, não importa seu sexo.

Casamento

Não caia na armadilha de querer controlar o que sua companheira (ou companheiro) faz. O que ela come, como seu corpo está mudando, como se porta é problema dela, não seu. É comum cair no excesso de vigilância; dizer coisas como ‘você vai engordar’ ou ‘por que vestiu essa roupa?’; ou ainda fazer críticas disfarçadas de elogios ou conselhos.

Esse incômodo não fala sobre o outro, mas sobre você. É o homem que tem medo de perder sua “propriedade”, a mulher, se ela usar determinada roupa ou sair com as amigas. É o homem que receia ser visto como fraco se a parceira ganhar mais. É o homem que acha que perde status se a esposa não é um lindo troféu para exibir.

Em casa, também se mostra fundamental assumir tarefas - e sem precisar que elas sejam delegadas a você, algo que sobrecarrega a mulher mentalmente. O homem não é um personagem que apenas troca a lâmpada de vez em quando, carrega coisas pesadas... Ele também precisa cuidar. “O cuidado sempre foi visto como algo feminino. E a mulher, na visão masculina tóxica, é inferior. Logo, cuidar é inferior, desse ponto de vista”, analisa Ediane. Se você tem filhos, cuide deles. Se come, cozinhe. Se suja a louça, lave. A responsabilidade das tarefas é dos dois. Você não é o que “ajuda”, é preciso fazer sua parte.

Outra dica: não chame sua esposa de mulher. Ela não é sua mulher, apenas sua parceira. Nenhuma mulher diz: “Esse é meu homem”. Por que vale o contrário?

Ciúme e manipulação

O pensamento arcaico que prevaleceu por muito tempo em várias sociedades é que a mulher era propriedade do homem. Desse conceito brota o ciúme. Porém, não é só você que tem acesso a ela; seu corpo e atitudes são livres. Se sua relação se basear em respeito e confiança, não haverá brecha para o ciúme.

Aposte em conversas saudáveis, abertas e frequentes. Pense: controlar tal ou qual aspecto é da sua conta? Ou, no fundo, o problema é com você mesmo?

Também devemos falar sobre o “gaslighting”. O termo veio do filme Gas Light (À Meia-Luz, 1944), no qual um homem tenta manipular a esposa e todos à sua volta para que acreditassem que ela estaria louca. O primeiro sinal de que você pratica o “gaslighting” é buscar cortar os vínculos da companheira(o) com os outros, amigos ou família. Isolar ajuda na manipulação, o que pode levar a um relacionamento abusivo. Mas, de novo, por que você precisa dominar o outro? Ter essa reflexão é importante tanto para relações amorosas quanto profissionais.

Paquera

“Ahhh, se eu pudesse e meu dinheiro desse.” Nota zero se sua intenção é usar frases feitas e sem noção como essa. Paquerar é elogiar o outro para ganhar a confiança dele. Então, ressalte as qualidades (e que não sejam apenas físicas), sem cair em padrões datados. E, assobiar, jamais! Além disso, nunca é demais repetir o básico: não é não. Se a mulher negar interesse, bola para a frente e caia fora, sem grosserias nem insistências.

Em tempo: as mulheres também tomam a iniciativa. Se a paquera vier em sua direção e você se interessar, aceite e se divirta. Também deixe de lado outras ideias antiquadas, como se a mulher transou com vários homens não presta ou se fez sexo no primeiro encontro não é “para casar”.

Sexo

Sua companheira(o) sexual não é um buraco para enfiar uma chave. Se não se der conta disso, não conseguirá transar bem. Respeite o corpo do outro, que também quer ter prazer, e aprenda mais sobre ele. O orgasmo dela não acontece automaticamente quando você alcança o seu. Também vale maneirar no pornô, que cria cenários irreais do que é o sexo, muitas vezes com ausência de consentimento e práticas inseguras e violentas.

Vale lembrar: não existe retirar a camisinha sem a parceira saber durante a relação, forçá-la a fazer algo que não quer ou continuar o sexo se houver um pedido para parar (basta um!).

Guia prático para não ser um homem tóxico — Foto: Arte: Liu Anno
Guia prático para não ser um homem tóxico — Foto: Arte: Liu Anno

Trabalho

Um líder precisa conquistar respeito ao apoiar sua equipe, além de dividir tarefas e responsabilidades. A força se mostra não pelo autoritarismo, pela intransigência. Nesse cenário, é importante dar espaço à comunicação não violenta. Ser gentil melhora o ambiente de trabalho, do mesmo modo que se mostrar agressivo cria medo e ansiedade, grandes inimigos da produtividade e da qualidade.

De acordo com um relatório do Ministério do Trabalho deste ano, as mulheres ganham 19,4% menos que os homens no Brasil. Em cargos de direção e gerência, a diferença de remuneração chega a 25,2%. Por isso, se for da sua alçada, busque promover mais mulheres e aumentar seus salários para diminuir essa desigualdade.

Guia prático para não ser um homem tóxico — Foto: Arte: Liu Anno
Guia prático para não ser um homem tóxico — Foto: Arte: Liu Anno

Trânsito

Dentro do carro, as pessoas se veem como na internet, com a identidade protegida. Por isso, sentem-se livres para xingar, dar fechadas, buzinar em excesso, cortar filas. Poupe-se da agressividade e da falta de civilidade. Outra noção que vem de tempos: achar que dirigir é algo masculino, já que os meninos brincam de carrinho durante a infância. Para virar um homem melhor, vale um exercício constante de desconstruir ideias tradicionais nocivas.

Estética

Cuidar da aparência não é fraqueza. Vestir rosa não é humilhante. Caso se sinta confortável, permita-se experimentar, sem ligar para o que os outros pensam. Prove o creme de jasmim em vez daquele com o aroma de uísque; experimente uma peça mais ajustada em vez da camisa de futebol; passe uma base leve para esconder aquela espinha...

Sentimentos

Prestar atenção no que você sente não é ser “frouxo”, mas inteligente. Para resolver questões, é preciso ter clareza dos seus problemas. Fazer terapia, por exemplo, não é coisa de “gente louca”. Pelo contrário, homens que analisam seus sentimentos e os trabalham se tornam mais fortes e resilientes.

Sobre quais assuntos você e seus amigos mais gostam de conversar? Futebol e o corpo das mulheres? Você consegue falar sobre sentimentos e problemas e se vulnerabilizar? Há abertura para isso? Se não, não se alimente desse círculo de amizades. Também não vale ficar concentrado na afirmação do masculino, sendo agressivo, gritando... Isso fere mais a você do que ao outro.

Seu amigo fez uma piada que inferioriza gays? Manifeste seu descontentamento. Ele contou que teve uma atitude abusiva com uma mulher? Manifeste-se. Para deixar de ser um homem tóxico é preciso não silenciar e educar os mais próximos, que o escutam.

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