Estamos no topo do Edifício Itália, um dos mais altos da cidade de São Paulo, e, daqui de cima, a vista da maior cidade da América Latina é impressionante. O transe provocado pelo mar cinza de prédios por todos os lados é quebrado pela chegada do estiloso casal Marcelo Maldonado Peixoto, 57, e Luiza Machado Peixoto, 37. A pele (“ele não precisa passar nada”, diz Luz, maquiadora da GQ) e o olhar faiscante de Marcelo lhe dão um aspecto jovial que encaixa perfeitamente com sua atitude de eterno curioso.
Abalado pelo assassinato do amigo João Rebello (“hoje minha saúde mental está péssima”), que tinha acontecido no dia da nossa entrevista, Marcelo, vulgo D2, muda de semblante quando começa a falar de arte.
GQ Brasil: Você falou da influência do Tyler e do Kendrick, que são rappers de sucesso hoje, mas neste ano fez uma crítica à ostentação e ao discurso de “favela venceu", muito ligado ao trap e a uma nova geração de rappers, que viralizou...
Marcelo D2: Isso virou muito clickbait. Eu tenho 30 anos de rap e tenho lugar de fala porque já passei por muita coisa, e eu ouço os mais velhos quando os mais velhos falam. O que eu quis dizer ali, e que outros, como o KL Jay (DJ dos Racionais MC's), já falaram, é que isso (de favela venceu) é uma grande armadilha.
Essa corrida do ouro... Na verdade, eles querem que a gente se vista igual a eles, fale igual a eles, trabalhe para eles, para alimentá-los. Então, quando você tem uma Ferrari, tu acha que está milionário? Quem está milionário é o dono da Ferrari. Mas eu acho que o rap também já mudou... E tudo bem! Eu não sou o cara que acha que as coisas têm que durar para sempre. O rap que eu gostava, teoricamente, acabou.
Você ouve trap em casa?
Não. Meus filhos ficam falando que eu só ouço os mortos. Vou te falar, cara, eu tenho sido muito influenciado por essas minas do pop. Nunca fui um cara de ouvir música pop, né? Sempre odiei o pop. Mas tu vai ficando velho, vai percebendo coisas assim, como a Rosalía... Rosalía me deu um tapa na cara. Eu falei: “Que pop maneiro”, minimalista com bastante influência da música espanhola.
Como você descobriu a Rosalía?
Tenho filhas, né? (risos) Não, eu estava em Nova York quando ela lançou o disco "Motomami"; eu vi aquela febre. Tinha uma música dela que eu já tinha ouvido, chamada A Palé, que tem um beat muito brabo. Eu acho os beats da Rosalía muito bravos. Quando vi J. Dilla a primeira vez sampleando música brasileira, eu falei: “Tenho que fazer essa porra que os gringos estão fazendo”. Quando vi a Rosalía, Billie Eilish usando grave do rap (na música pop), eu falei: “Essas minas estão usando o grave que é nosso. Vou pegar esse grave aqui e vou fazer alguma coisa com ele”. Aí entra o samba.
É engraçado falar que a Rosalía abriu uma porta na minha cabeça, mas é isso. Abriu uma porta para falar: “Se eu pegar esse grave e juntar com Clementina de Jesus, acho que tem um caminho, agora é o momento que eu posso fazer meu samba”, que não é o samba do Zeca ou o samba do Paulinho da Viola. Inclusive, fui mostrar para o Zeca Pagodinho e ele já falou: “Isso é muito bom”.
Ele ficou animadaço, me ligava, tipo, seis vezes por dia assim: “Tem um samba aqui (para você gravar no disco novo) que eu não lembro muito bem, mas o Xande (de Pilares) vai lembrar”. Daí eu ligava para o Xande, mas o Xande não gravava a música para eu ouvir. Tive que usar a tática que o Zeca faz muito: ele usa uma intriga para você fazer a parada. O Xande nem sabe disso, vai saber na GQ, mas falei: “Ó, Xande, o Zeca tá bolado que tu não mandou a música até agora”. Mas ele não estava bravo porra nenhuma! (risos)
E como era o Chico Science? Vocês conviveram só três anos, né?
Foram três anos intensos. Ele foi morar no Rio, a gente andava muito junto. Quando fui gravar o “Jardineiros”, eu pensei: “Sou um cara muito sortudo. Olha os meus amigos: Chico Science, Black Alien, B.Negão, Marcelo Yuka...”. Todos foram incríveis, me moldaram muito. O Chico Science, infelizmente, pelo que aconteceu com ele (morreu em um acidente automobilístico aos 30 anos), tem um outro peso. Era muito visionário, muito à frente do tempo. Conviver com ele naquele momento, saber que o punk rock e o samba podiam andar juntos, para mim foi incrível.
Ele me falava: “Você tem que colar com o Bezerra da Silva, vai na casa do Bezerra, ele vai te ensinar muito”. Naquela época, eu ia muito para Recife, aquele movimento do mangue beat é um desses (grandes movimentos da música brasileira): Cacique de Ramos, mangue beat. O (cantor e compositor) Rodrigo Campos fala uma coisa assim: o que aconteceu no Cacique de Ramos é tão importante ou mais que a bossa nova ou a tropicália.
Para mim é mais importante, mas o Cacique era de subúrbio, de preto, sabe qual é? Para mim, que era um cara do subúrbio, e de repente encontro o Skunk (vocalista e fundador do Planet Hemp, que morreu antes de a banda fazer sucesso), de repente sou amigo do Chico, de repente estou em Recife; falei: “Que parada incrível”.
Conviver com eles foi primordial para eu ser quem eu sou. Ia ter que ter muita Rosalía para alimentar a minha cabeça, se não fosse Chico Science. (risos) Talvez o Chico seria o cara que falaria: “Tu já ouviu o disco da Rosalía?”. O Skunk era assim, sabe? Foi a primeira pessoa que vi falar de se vestir sem ter vergonha. Eu vim de um lugar que era meio foda: “Ah, tu é viadinho, tá querendo se vestir? Tá cortando cabelinho, né?” Apanhei muito por causa do visual.
Para você é importante para caramba a questão do estilo, não?
Total! Isso vem do Skunk? Eu já tinha isso, mas ele me deu firmeza. Sempre achei legal vestir desse jeito; botava uns bermudões, era do skate, visual largão... Mas no subúrbio do Rio? Neguinho falava: “Tá cagado? Porra, pegou a bermuda do defunto ou do teu primo gordo?”. E o Skunk usava o corte flat top, aquele cabelinho raspado. Ficava uma hora na frente do espelho fazendo aquele flat top ali. Para mim isso tem a ver com paixão em viver.
Lembro de falar: “Queria ter uma camisa do House of Pain”. Aí o Skunk: “Vamos fazer!”. Comprou a camisa branca, fez uma xerox do logo do House of Pain, desenhou por cima, pegou a tinta de tecido, pintou as cores... “Pronto, tem uma camisa do House of Pain.” Isso é paixão em viver, tesão em fazer as coisas acontecerem. Essa paixão, cara, eu tinha isso com o skateboard, aí foi saindo para a música, para o cinema, para a fotografia.
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Styling Pedro DDN | Beleza Esthéfane Luz | Trancista Ester Trindade | Produção de moda Ed Xavier | Produção executiva Daniel Cruz e Vivi Seixas | Assistentes de fotografia Adrian Ikematsu, Caio Porto e Diego Gaeta | Tratamento de imagem Thiago Auge | Making of Pedro Nekrasius | Agradecimento Terraço Itália