Há três décadas, a psicóloga paulistana Viviane Senna, 67, viu a vida virar de ponta-cabeça. Ela não só perdeu o irmão Ayrton Senna em um trágico acidente de Fórmula 1 como também trocou a rotina de consultórios pela luta por uma educação pública de qualidade à frente do Instituto Ayrton Senna, criado em 1994.
A instituição já atendeu 30 milhões de crianças no país, além de desenvolver programas em parceria com governos municipais e estaduais que ajudaram a reduzir o analfabetismo e a evasão escolar. Entre os muitos feitos aparecem uma plataforma digital para formar professores e um centro de pesquisas.
À GQ Brasil, Viviane, focada em advocacy, fez um balanço da atividade no terceiro setor, além de dividir detalhes sobre as homenagens para as três décadas da morte do tricampeão mundial de F1, como a série Senna, da Netflix (estreia nesta sexta, 29), e o primeiro jantar de gala do instituto, que rolou no fim de outubro, na semana do GP de São Paulo.
Também conta como convive com o luto por Ayrton e pelo marido Flávio Lalli, morto em 1996 em um acidente de moto, fala sobre como foi ver o filho Bruno, 41, tornar-se piloto (ele atuou na F1 entre 2010 e 2012) e lista o que ainda falta fazer pela educação brasileira.
Instituto de oportunidades
Completamos 30 anos agora em novembro. Nascemos no mesmo ano em que o Ayrton morreu. Dois meses antes do acidente, ele conversou comigo e disse que queria fazer alguma coisa para ajudar o país, mas não sabia bem o quê. Ficamos de conversar para evoluir a ideia, mas aí veio o acidente.
Resolvemos, como família, dar continuidade a esse desejo dentro da educação. Por quê? Uma vez perguntaram ao Ayrton, em uma coletiva de imprensa, qual era a chave do sucesso dele. Ele respondeu: a oportunidade, algo que não se cria, mas que acontece quando vem alguém e abre uma porta.
Ele teve a sorte de nascer em uma família que lhe deu oportunidades básicas de desenvolvimento, mas isso é exceção no Brasil. Nós precisamos deixar de ser exceção e virar regra. Todos nascemos com potencial, mas a diferença é que alguns têm a oportunidade de desenvolvê-lo.
Varejo versus atacado
No segundo ano do instituto, já havíamos atendido 40 mil crianças, mas visitava os projetos e voltava muito angustiada. Pensava nas crianças que não estavam ali e que nunca estariam. As pessoas me falavam que era um problema do governo ou de Deus e que eu já estava fazendo minha parte, mas essas respostas não me convenciam. Entendi que o problema estava na escala: o terceiro setor contava com uma estratégia de varejo para um problema de atacado. A conta não fechava.
Encontrei a solução na minha área de origem, a da saúde. Um laboratório não desenvolve uma vacina só para uma pessoa, mas sim para qualquer pessoa em qualquer parte do mundo — e em larga escala. Foi aí que entendi que precisávamos transformar o instituto em um laboratório, um centro de desenvolvimento de soluções, fórmulas e ‘vacinas’ para os diversos ‘vírus’ que atacavam a população infantil. Assim, atendemos mais de 30 milhões de crianças e jovens ao longo dos 30 anos.
Filantropia faroeste
Três décadas atrás, o terceiro setor era extremamente incipiente, pouco organizado na maneira de trabalhar. Confundiam-se boas intenções com resultados. Era uma terra de ninguém, na qual havia muita corrupção. Chamava-se até filantropia de ‘pilantropia’. Comecei com o melhor modelo que existia na época, de fundações americanas, a exemplo de Ford e Kellogg, mas percebi que havia alguma coisa errada.
Nos EUA, você pode se dar ao luxo de realizar benemerência, mas em países como o Brasil, onde a maioria fica fora do baile, é preciso trabalhar de outro jeito. Buscamos conciliar os paradigmas da escala e da eficiência. Quisemos trazer a lógica de resultados do setor privado para o universo público, porque o setor público conta com sérias dificuldades em relação à eficiência dos serviços.
Custo Brasil
O sistema educacional é o sistema de produção de desenvolvimento de potenciais de um país. Cada criança que sai despreparada da escola, sai despreparada também para trabalhar, o que se traduz em baixa produtividade. Os indicadores de produtividade brasileiros são um eletrocardiograma de um morto.
Acredito no que o Paul Krugman, Nobel de Economia, falou: produtividade não é tudo para o crescimento econômico, mas, a longo prazo, é quase tudo. E complemento: para a produtividade, educação não é tudo, mas quase tudo. Do ponto de vista social, praticamente 50% da desigualdade brasileira se determina pela questão educacional. Do ponto de vista político, cada criança que sai despreparada da escola também sai despreparada para votar; e o custo disso é incalculável.
O case Sobral
Quando começamos a aplicar as soluções, escolhemos vinte das 100 piores cidades em termos de indicadores educacionais para mostrar os desafios e as soluções possíveis nesse campo. E uma das cidades selecionadas foi Sobral (CE), que tinha como prefeito o Cid Gomes. Era uma campeã do atraso.
Um município em que 90% das crianças estavam atrasadas. Começamos o trabalho de alfabetização, trazendo nosso know-how. Sobral saiu do último lugar direto para o pódio. Hoje, trata-se do primeiro lugar no Índice de Educação Básica (Ideb) do Brasil. A mesma gestão levou isso para o estado, e o Ceará virou referência em alfabetização.
Embate público
As pessoas confundem o que é público com o que é governamental, em função até da maneira como fomos colonizados. Quem chegou aqui ao Brasil foi o Estado e a Igreja de Portugal. Nos EUA, quem chegou foram os cidadãos, que construíram uma nação onde o papel da sociedade civil é diferente.
No Brasil, temos uma sociedade satélite, a reboque do Estado. Quando se fala em educação, saúde ou segurança, as pessoas pensam que isso é problema do secretário ou do ministro. Mas o que é público é de todos nós, inclusive do governo. Para enfrentar uma questão pública como a educação, é preciso um esforço de todos.
Não é sobre substituir o Estado. Querer fazer no lugar do governo também está errado. Por isso, trouxemos uma ética de corresponsabilidade para os desafios do Brasil, trabalhando junto com o Estado — algo que ninguém queria há trinta anos, até porque tínhamos acabado de vir de uma ditadura militar.
Tal tio, tal sobrinho
Como qualquer mãe ou pai, queremos o melhor para os filhos e ficamos com medo de tudo que os coloque em risco. E temos um histórico de uma perda em função do risco. Eu não queria (que o Bruno fosse pilotar). Mas acredito realmente que cada um nasce com potencial para algo.
O Ayrton contava com uma natureza para virar piloto, o Bruno também. Acabei concordando que pudesse se desenvolver nesse caminho. Ele foi e fez. Era o que ele queria. Acredito que essa é uma tarefa e uma responsabilidade também dos pais: ajudar os filhos a desenvolver seus potenciais na área em que nasceram para atuar.
Senna na Netflix
Estivemos muito envolvidos na série, trabalhamos conjuntamente com a Netflix e a produtora Gullane durante bastante tempo. O resultado ficou muito bonito, muito emocionante. É um desafio imenso traduzir uma pessoa tão conhecida e tão desconhecida ao mesmo tempo, mas acho que será um sucesso.
Longe da F1
Eu só acompanhava a Fórmula 1 por causa do meu irmão e do Bruno, não é uma coisa que pessoalmente goste. Não acompanho mais.
Convívio com o luto
Há um versículo na Bíblia que diz assim: ‘Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem’. É uma frase que adotei para mim. Diante de situações trágicas, sejam elas pessoais ou coletivas, podemos escolher como reagir a elas.
Podia me deprimir porque perdi meu irmão e meu marido, um em seguida do outro, ainda mais porque meus filhos eram pequenos. Mas resolvi vencer o mal com o bem, porque é uma escolha que posso fazer. Nada nos determina.
Por isso que também acredito em uma ética de corresponsabilidade, uma tarefa de todos nós viabilizar as novas gerações. Trata-se de uma escolha de cada pessoa, e lido com o luto dessa forma.
Quebra de protocolo
A Fórmula 1 fez homenagens inéditas para o Ayrton neste ano. A McLaren, por exemplo, vestiu todos os mecânicos e adesivou o carro com as cores do capacete. Isso não existe normalmente, por causa dos patrocinadores e da própria Fórmula 1. É tudo muito amarrado, mas aconteceu. Acho inacreditável o que vimos neste ano. Por isso, resolvemos fazer uma celebração também.
Jantar de gala
Nunca quisemos organizar um jantar de gala, mas decidimos celebrar os trinta anos do legado do Ayrton dentro e fora das pistas. Foi a primeira vez que fazemos algo assim [rolou no dia 30 de outubro]. Foi muito especial: teve um túnel imersivo onde as pessoas poderão voltar àqueles momentos mágicos dos domingos de manhã com o Ayrton, além de ver a história do instituto. Contamos com um jantar maravilhoso assinado (pelo chef Edu Guedes), shows da Ivete Sangalo e do Alok e a presença do Galvão Bueno e da Ana Paula Padrão. Foi um momento emocionante.
Futuro da entidade
Hoje, temos uma equipe com muitos talentos que estão sendo preparados para a sucessão. Acredito que o compromisso e a visão estratégica são os fatores que norteiam essas pessoas. Precisamos nos dedicar a um ativo tão importante quanto a imagem do Ayrton, para o bem do país. Foi esse o início do instituto e é o que podemos continuar fazendo: dedicar um farol de luz para a educação.
Educação sentimental
Todo o desafio que enfrentamos nos últimos anos se vê ligado à cognição: aprender a ler, escrever, calcular, pensar logicamente. É um conceito de escola que veio dos iluministas, um modelo de dois séculos. Ninguém usa mais um computador de dez anos, mas seguimos com um modelo de dois séculos.
Precisamos trazer a escola do século XVIII para o século XXI, até porque hoje a competência cognitiva é a linha de largada, não a linha de chegada. Devemos desenvolver competências que são fundamentais, como abertura ao novo, foco, persistência, disciplina, criatividade e resiliência. São habilidades básicas para enfrentar um mundo de mudanças que surgirão em velocidade exponencial.
Uma criança de 5 anos hoje vai ter passado, em quinze anos, pela mesma quantidade de mudanças que a humanidade viveu nos últimos 150. São 150 anos em quinze. E ela ainda poderá viver por mais um século, pelo andar da carruagem. Sem flexibilidade, ela quebra. E, não à toa, o índice de doenças mentais só aumenta no mundo todo, porque as pessoas não tiveram musculatura emocional para enfrentar as mudanças do pós-pandemia. Precisamos preparar as crianças para essa realidade e não para séculos passados.