Após um voo de quase doze horas da Flórida a Brasília, o ex-piloto Emerson Fittipaldi foi abordado por um jovem casal a caminho da fila do táxi: “Ayrton! Ayrton! Me dá um autógrafo?”, pediu o homem, referindo-se ao tricampeão Ayrton Senna, morto em um acidente no GP de San Marino em 1994. Fittipaldi, um dos nomes mais importantes do automobilismo nacional, não perdeu o bom humor. “Pô, parceiro, aí não, né? Ayrton está ó (apontando o dedo para o céu) lá em cima. Eu ainda estou bem vivo”, riu. “Foi a única vez que me confundiram com o Senna. É mais comum me chamarem de Nelson Piquet”, conta, citando outro brasileiro também três vezes campeão da modalidade.
Fittipaldi é uma lenda viva do esporte. Fez história como o primeiro brasileiro bicampeão mundial de Fórmula 1 (1972, com a Lotus, e 1974, na McLaren). Subiu ao lugar mais alto do pódio com apenas 25 anos e se consagrou o vencedor mais jovem da categoria — um recorde que só foi batido por Fernando Alonso mais de três décadas depois. Despediu-se da F1 em 1980 com uma bagagem de 144 GPs, 14 vitórias, seis pole positions e 35 pódios.
Mas não permaneceu muito tempo fora do cockpit. Estreou na Fórmula Indy aos 38 anos e, novamente, teve uma trajetória de sucesso, sagrando-se bicampeão das 500 Milhas de Indianápolis em 1989 e 1993. Aos 77 anos, ele não quer saber de aposentadoria.
Apesar de, em tese, morar na ilha de Key Biscayne, em Miami, não costuma passar mais do que uma semana em casa. Homem de negócios, cuida da Fittipaldi Off Road, empresa de rodas para carros de luxo, e da Fittipaldi Concours D’Élégance, evento que celebra a história do automobilismo e arrecada fundos para a cura da paralisia nos EUA. Outra atividade remunerada é o cargo de embaixador da McLaren, equipe que o ajudou a conquistar o segundo título mundial. Ele costuma comparecer a inaugurações promovidas pela escuderia, percorrer circuitos de F1 realizando demonstrações com carros antigos e receber convidados VIP no camarote.
A rotina do campeão ainda inclui acompanhar o filho mais novo, Emerson Fittipaldi Jr., o Emmo, 17, fruto do casamento com a terceira mulher, Rossana, em provas da Eurocup 3, categoria disputada principalmente por jovens e considerada trampolim para a elite do esporte. “O coração de pai quase não aguenta. É muito emocionante. Dou conselhos, mas ele tem um coach para isso. Hoje, o esporte é muito seguro. Ele está mais protegido nas pistas do que no trânsito.” Seus netos Enzo, 23, e Pietro, 28, também atuam no meio, o primeiro na Fórmula 2 e o segundo na Indy.
Fittipaldi chegou à categoria principal em 1970 e viu de perto o movimento por melhores condições de segurança nos autódromos, capitaneado pelo piloto inglês Jackie Stewart. “Em todo início de temporada, os vinte pilotos se reuniam para uma apresentação. Eu me lembro de olhar para aqueles rostos e pensar: até o final, três não vão estar aqui. Durante a minha vida, perdi 37 companheiros”, lamenta.
Naquela época, além de talento, os pilotos precisavam de (muita) coragem. As pistas não possuíam guarda-corpos, áreas de escape nem ambulâncias. A equipe de salvamento envolvia apenas enfermeiros. Fittipaldi driblava a falta de estrutura levando um médico suíço, munido de um kit de primeiros socorros, para acompanhá-lo nas competições.
Em sua quarta corrida, testemunhou um acidente que tirou a vida do companheiro de Lotus Jochen Rindt, falecido durante um treino livre para o GP da Itália, em Monza, em 1970. “Tomamos café, saímos do hotel juntos. Três horas depois, o cara não estava mais lá.” Outra lembrança inesquecível se deu antes do Circuito de Montjuïc, em Barcelona.
Emerson caminhava pelo perímetro quando viu que os guarda-corpos estavam presos com arames. Houve um mutirão de pilotos e mecânicos para aparafusar as grades. “A prova não era segura e eu comuniquei que não ia competir. O presidente da Federação Internacional de Automobilismo, na época, alertou que suspenderia a McLaren por três provas. Para evitar a penalidade, dei uma volta, avisei que o câmbio tinha quebrado e voltei para casa, na Suíça. Quando desembarquei, havia uma equipe no aeroporto me esperando. E eu sem saber o que tinha acontecido. O carro do Stommelen (Rolf, piloto alemão) voou em direção à arquibancada e matou cinco espectadores”, lembra.
Graças à luta iniciada por Stewart, o esporte não registra há anos um acidente fatal. O último desastre grave ocorreu em 2020, em Bahrein, no Oriente Médio, quando o carro do francês Romain Grosjean pegou fogo. Com o tanque de combustível cheio, o piloto da Haas bateu na primeira volta. Foi socorrido em 28 segundos e saiu apenas com queimaduras nas mãos. “Os veículos antigamente eram mais perigosos e as pistas, menores. Era comum o chassi pegar fogo. Batíamos em árvores, postes, público...”, lembra.
“Mas destemidos mesmo foram os pilotos da década de 30. Os caras dirigiam carros que chegavam a 300 km/h, sem cinto de segurança, com pneus finos como os de uma bicicleta e uma touca de couro na cabeça. Precisavam segurar com força no volante para não acabar arremessados para fora”, conta. O paulistano sofreu alguns acidentes na Fórmula 1, mas poucos resultaram em lesões sérias. A batida mais grave se deu nas 500 Milhas de Michigan, na Fórmula Indy, em 1996. Seu automóvel estava em alta velocidade ao bater contra o muro do circuito. Com o choque, a sétima vértebra da coluna foi esmagada e ele quase ficou tetraplégico. “Pensei que fosse morrer. Na hora, vi a imagem dos meus cinco filhos e desmaiei”, recorda.
No hospital, recebeu a visita de um amigo que carregava uma Bíblia; chegou a pensar que receberia a extrema-unção. Acabou se convertendo. Passou a frequentar a Igreja Batista e decidiu deixar as pistas. “Hoje, eu me sinto completo. Passei a vida toda sentindo uma falta, um buraco. Hoje, sei que era Deus”, afirma ele, que, na época, em comemoração à sua recuperação, ganhou uma música do amigo George Harrison, guitarrista dos Beatles.
O interesse dos brasileiros pela F1 aumentou nos últimos três anos, mesmo sem o país contar com um piloto fixo no grid da maior categoria do automobilismo mundial desde 2017, quando Felipe Massa saiu do circuito. De acordo com um levantamento do Resenha Digital Clube, agência de marketing de influência em games e eSports, em parceria com a Opinion Box, de pesquisa de mercado on-line, o vôlei e a Fórmula 1 são os esportes mais consumidos por nós, depois do futebol, que é de longe o mais acompanhado, por 78% dos entrevistados.
O crescimento da curiosidade por aqui acompanha uma tendência mundial, que pode ser explicada pela série “F1: Dirigir para Viver”, da Netflix. Lançada em 2019, a bombada produção mergulha no universo do esporte, dos bastidores às corridas. A sexta temporada, que estreou em fevereiro, por exemplo, mostra a tensão por trás da renovação de Lewis Hamilton com a Mercedes; ele acabou fechando contrato com a Ferrari para a temporada de 2025.
Atrair novos fãs para a modalidade tem sido o objetivo da Liberty Media. O conglomerado americano de telecomunicações adquiriu os direitos da Fórmula 1 em um acordo avaliado em US$ 8 bilhões (cerca de R$ 27 bilhões) em 2017. Desde então, investe pesado nas redes sociais, na série da Netflix e em outras iniciativas para chamar o público, principalmente o feminino, como a contratação de influenciadoras e até a inauguração de uma academia de pilotas.
Hoje, 40% da plateia da F1 é de mulheres. Uma enquete da Statista, empresa de pesquisas, constatou que 30% dos entrevistados citaram “Dirigir para Viver” como o principal motivo para terem se tornado fãs do esporte. Mais de 360 mil espectadores passaram a acompanhar as corridas após o seriado. Em 2022, a produção se tornou a atração mais popular na Netflix em 33 países.
Com uma base de novos fãs, a Fórmula 1, que terá seu próximo GP do Brasil, em São Paulo, em 3 de novembro, explodiu nas redes sociais. Em fins de semana de corrida, há mais de 40 milhões de interações. Empresa de marketing esportivo, a RTR Sports Marketing verificou que 70% dos seguidores da página da F1 no Instagram têm menos de 35 anos.
“Quando o esporte conta com um brasileiro, é claro que as pessoas se interessam mais. Há uma garotada aí no kart pronta para correr e, no futuro, entrar para a Fórmula 1, mas falta investimento”, declara Fittipaldi.
Estimular a prática esportiva era o principal objetivo do bicampeão ao se aventurar na política em 2022. Neto do italiano Pasquale Fittipaldi, ele concorreu a uma cadeira no Senado reservada a cidadãos italianos na América do Sul pelo partido de extrema direita Fratelli d'Italia. Ficou em segundo lugar, com 31.386 votos, perdendo para o argentino Mario Alejandro Borghese, do Movimento Associativo dos Italianos no Exterior (Maie), que recebeu 58.233 votos.
“O voto é impresso e pedi a recontagem. O governo manda um papel para a casa das pessoas. O número de cédulas a favor dele é suspeito”, atesta. Fittipaldi sempre se mostrou ousado. Logo após a conquista do segundo campeonato mundial pela McLaren, em 1974, esnobou um convite da Ferrari e, junto com o irmão, o também piloto Wilson, que morreu em fevereiro deste ano, resolveu criar a primeira e única escuderia totalmente brasileira e independente, a Copersucar-Fittipaldi.
O time evoluiu até a boa temporada de 1978, quando terminou o campeonato à frente da McLaren e da Williams. No ano seguinte, a Skol, patrocinadora da escuderia, foi comprada pela Brahma, que retirou o apoio. Após dificuldades financeiras, o sonho dos irmãos Fittipaldi se encerrou. “Foi uma injustiça o que fizeram com a gente. As equipes demoram a engrenar. A Toyota ficou quatro anos sem ganhar nada. Estávamos no caminho certo”, lembra, com mágoa.
Longe das pistas, Fittipaldi passou a focar nos negócios. Pouco a pouco, ficou claro que não tinha o mesmo talento nesse setor. Em uma sucessão de investimentos errados, como tentativas no agronegócio e no automobilismo, incluindo a negociação da exibição televisiva da Fórmula Indy, ele, que já foi o piloto mais bem pago da F1 e que, até 2004, possuía empresas que movimentavam US$ 60 milhões, quebrou.
Acumulou dívidas com credores, bancos e fornecedores e perdeu grande parte do patrimônio, entre sua fazenda, imóveis de luxo e bens pessoais. Só o rompimento unilateral de um contrato com a Rede Manchete resultou em uma dívida de quase R$ 30 milhões. Atualmente, o bicampeão enfrenta processos e tenta quitar seus débitos.
Na versão do ex-piloto, sua dívida gira em torno de R$80 milhões, e grande parte dela veio da usina que montou para produzir álcool com dois empresários, em 2007: o pecuarista José Carlos Bumlai e o banqueiro José Augusto Ferreira dos Santos. Os dois acabaram presos na Operação Lava Jato. O negócio derrapou de vez quando o governo começou a controlar o preço da gasolina e a Petrobras passou a pagar o litro de etanol abaixo do custo das usinas novas. “Eu poderia pedir concordata, mas preferi honrar meus compromissos. Graças a Deus, quitei, por enquanto, 90% das dívidas”, afirma.
Longe das polêmicas, o paulistano cuida da saúde e mantém 69 quilos distribuídos por 1,70 metro de altura. Faz musculação e atividade aeróbica religiosamente todos os dias. “Quando reservo um hotel, a primeira pergunta é se tem academia.” Aliás, ele conheceu a atual mulher, Rossana Fanucchi, às 6 da manhã, em uma academia de São Paulo. Só come frango e peixe, além de muitos vegetais. A mudança ocorreu aos 49 anos, quando corria na Fórmula Indy e competia com jovens na faixa dos 25. Nessa toada, vê-se que, tão cedo, Fittipaldi não tirará o pé do acelerador.