Nos últimos anos, o Brasil perdeu 6,7 mil cientistas, de acordo com o Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), órgão vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Muitos pesquisadores deixaram o país para buscar no exterior melhores condições para seguirem com seus estudos. O fenômeno da fuga de cérebros atinge todas as principais áreas de pesquisa acadêmica, mas afeta o agronegócio em particular, já que o Brasil é referência mundial em áreas como energias renováveis, agricultura tropical, manejo sustentável e bioinsumos, entre várias outras.
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A fuga de cérebros tem relação direta com as restrições que os profissionais enfrentam para se dedicar aos seus estudos. No ano passado, o governo federal anunciou um aumento expressivo no valor das bolsas oferecidas por Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), as duas principais instituições que oferecem incentivos para estudantes de pós-graduação no país. No entanto, ainda que bem-vinda, a medida foi incapaz de eliminar a defasagem dos valores, que ficaram congelados por uma década. As bolsas de mestrado passaram de R$ 1,5 mil para R$ 2,1 mil, as de doutorado, de R$ 2,5 mil para R$ 3,1 mil, e as de pós-doutorado, de R$ 4,1 mil para R$ 5,2 mil.
Para receber bolsas do gênero, mesmo antes do último reajuste, o estudante de pós-graduação ainda precisava se dedicar exclusivamente à pesquisa e não ter vínculo empregatício, a não ser para ensino. Caso buscasse outro trabalho para complementar a renda, ele correria o risco de perder a bolsa. A Capes flexibilizou as normas apenas em julho de 2023, liberando, em casos específicos, o acúmulo da bolsa com atividade remunerada.
As restrições orçamentárias afetam diretamente os estudantes de mestrado e doutorado, que são parte central da mão de obra produtora de conhecimento no país, mostra o “Dossiê Florestan Fernandes: pós-graduação e trabalho no Brasil (2023)”, produzido pela Cátedra do Centro de Estudos e Memória da Juventude (CEMJ), em parceria com a Associação Nacional dos Pós-Graduandos (ANPG). Isso leva à fuga para o exterior de pesquisadores que estão em fase de formação, o que significa que profissionais que ainda teriam décadas de trabalho pela frente acabam levando esse potencial de geração de conhecimento para outros países.
“De fato, o Brasil vive esse problema. Não é uma dificuldade exclusivamente nossa, mas outros países têm adotado iniciativas para minimizar a fuga de talentos, enquanto nós temos sido muito inconstantes em relação ao tema”, diz Mauricio Lopes, pesquisador que presidiu a Embrapa entre 2012 e 2018.
Coreia do Sul e China, para citar dois exemplos, desenvolveram programas para repatriar pesquisadores. Não por acaso, Coreia e China estão entre os países mais inovadores do mundo — eles aparecem em sexto e 11 lugar, respectivamente, na edição mais recente, de outubro, do Índice de Inovação Global, elaborado pela Organização Mundial de Propriedade Intelectual (WIPO, na sigla em inglês). O ranking tem, ao todo, 133 países. O Brasil figura na 50 posição.
Lopes conhece de perto os efeitos que a fuga de pesquisadores tem sobre a agropecuária. Graduado em Agronomia pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), mestre em genética pela Universidade de Purdue e doutor em Biologia Molecular de Plantas pela Universidade do Arizona, ambas nos Estados Unidos, o pesquisador tem sido uma das principais vozes no Brasil a chamar a atenção para o tema. Ele mesmo atuou por anos no exterior, tento passado por diversos países até decidir retornar ao Brasil.
Segundo Lopes, proporcionalmente, a fuga de cérebros na agropecuária é até menor do que em outros setores, já que praticamente todas as grandes multinacionais que atuam no agronegócio têm operações no Brasil, ainda que não deixe de ser preocupante. Mas o agro sofre também com migração de profissionais de tecnologia, que afeta as inovações no campo. “Além disso”, brinca Lopes, “o brasileiro é muito ‘gostável’, ainda mais se for de agro”.
As limitações financeiras e de estrutura têm como pano de fundo as inconstâncias de cunho político. “Muda governo, mudam as prioridades”, afirma Lopes. Ele cita como exemplo o Instituto Agronômico de Campinas (IAC), mantido pelo governo de São Paulo. Com 137 anos, o centro é o mais antigo do gênero no Brasil, mas, ainda que seja referência internacional em diferentes áreas, ele enfrenta restrições orçamentárias, que ameaçam a continuidade de vários programas de pesquisa. “Casos como esse abrem caminho para a fuga de cérebros”, avalia.
O agronegócio é um dos pilares mais importantes da economia brasileira, o que torna essencial a priorização da ciência aplicada, defende Lopes. “Essa é, por exemplo, a natureza da Embrapa”, afirma. Para citar dois casos, a estatal de pesquisa agropecuária desenvolveu soluções bem-sucedidas contra pragas que ameaçaram seriamente as lavouras de soja e algodão no Brasil. “Dada a dimensão e a variedade de clima do país, somos naturalmente um ambiente propício a pragas. Assim, temos que ser extremamente criativos em pesquisa e desenvolvimento”, diz. “No início dos anos 70, ninguém imaginava que a soja pudesse superar o café e o açúcar na produção nacional, e hoje somos uma potência mundial nessa cultura”.
Lopes argumenta que as decisões que afetam o desenvolvimento da ciência têm que refletir uma visão que o país tenha sobre seu próprio futuro. Nesse quesito, ele cita mais uma vez China e Coreia do Sul como referência. “Vivi na Coreia, e me impressionou a capacidade que eles têm de pensar o futuro, analisar cenários, definir modelagem. Há 20, 25 anos, eles puseram na cabeça que tomariam a liderança das marcas japonesas de automóveis nos Estados Unidos, e foi o que fizeram isso”, comenta.
O Brasil, avalia o pesquisador, não costuma trabalhar no planejamento de ciclos longos. No caso do agronegócio, Lopes defende que é necessário pensar em “rupturas possíveis”, contexto em que a tecnologia é imprescindível. “O mundo evolui com muita rapidez. A única coisa que não tem é linha reta”, diz. Uma ruptura muito recente, ele cita, foi a inteligência artificial, que “criou uma onda de choque em várias direções”.
Além de visão de futuro, o trabalho da ciência brasileira precisa estabelecer conexões com outros campos de conhecimento e também com a sociedade, afirma Lopes, um geneticista, que reconhece que às vezes a área de pesquisa tende a se isolar em seu tema de interesse. Essa conexão entre campos distintos é necessária em particular no agronegócio, que, para produzir alimentos e energia, envolve conhecimentos sobre temas como clima, meio ambiente, saúde, nutrição, tecnologia e mineração, entre outros. “São temas imbricados. Precisamos formar cientistas com senso de nexo”, conclui.