Entrevista
Por — São Paulo

Há mais de 40 anos na pesquisa, a engenheira agrônoma Mariangela Hungria, da Embrapa, se converteu em uma das vozes mais respeitadas sobre insumos biológicos, com descobertas ao longo das décadas que promoveram avanço no segmento dos inoculantes, proteção e nutrição de plantas por meio da união entre biologia e agropecuária.

"Posso dizer que vi realmente uma mudança incrível na qualidade dos inoculantes, comercializados no Brasil, produzidos no Brasil. Antes a gente tinha, por exemplo, há 20 anos, inoculantes com contaminantes, concentração baixa, então tanto a pesquisa quanto a indústria e a legislação evoluíram juntas", diagnostica a pesquisadora.

Para ela, o Brasil tem, atualmente, a "a melhor legislação do mundo" no segmento de biológicos, mesmo entre reclamações de indústrias e produtores sobre a lentidão no registro e enquadramento de múltiplos produtos em uma mesma categoria, o que vem mudando com mais velocidade.

"[A legislação] garante então que os produtos que vão chegar para o agricultor têm que ser isentos de contaminante numa concentração bem baixa, tem que conter as bactérias que são identificadas pela pesquisa como as melhores para as condições do Brasil e com todas as especificações", detalha.

Os inoculantes, que são um de seus focos de pesquisa há pelo menos três décadas, são produtos não químicos que ajudam as plantas na absorção dos nutrientes. Podem conter microrganismos benéficos para o desenvolvimento vegetativo, como bactérias e fungos.

Em uma comparação entre esses produtos fabricados no Brasil com os norte-americanos ou com os europeus, a pesquisadora qualifica que os nacionais são "muito superiores, com a legislação muito superior".

O famoso bradyrhizobium, inoculante muito utilizado na soja, costuma ter mil vezes menos concentração de células nos EUA e Europa em detrimento dos que estão sendo estudados e produzidos no Brasil, enfatiza Hungria, que também distribui elogios para o avanço da indústria de bioinsumos no país e nos vizinhos latinos, como Uruguai e Argentina.

Entre esses três países, lembra ela, pode haver uso comum das estirpes corretas, o que pode ajudar em um futuro de exportação de biológicos mais expressivo para a balança comercial brasileira.

Segundo Hungria, hoje, o Brasil é líder mundial no uso de biológicos na agricultura, posição conquistada em razão de mais de 50 anos de investimento em pesquisa e de um trabalho contínuo. Para continuar nesse ritmo, a pesquisadora é contundente: "precisa haver investimento em pesquisa privada feita por parte das empresas, e muita pesquisa pública a fim de continuar com o cenário invejável de produção de bioinsumos que temos e que o mundo admira."

Regulação

Para a pesquisadora, o Brasil possui um mercado regulado, invejável, de uma "qualidade incrível". A regulação tem permitido, inclusive, preços mais competitivos. Hungria destaca que os inoculantes brasileiros estão entre os mais baratos do mundo.

A legislação e fiscalização em cima da qualidade desses produtos no Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) também têm dado segurança para pesquisa e para o agricultor, assegura Hungria.

"Se o agricultor tiver uma dúvida, ele pode chamar um fiscal do MAPA para coletar a amostra e analisar, e se não tiver aquela concentração, aquela pureza que está anunciada no rótulo do produto, ele pode ser ressarcido e a empresa [fabricante e/ou comercializadora] podem ser multadas", ressalta.

Controle de qualidade é um dos pilares para o avanço do mercado, na perspectiva da pesquisadora. "Nós estamos em uma época bastante crítica, com projetos de lei sendo analisados, e eles são bastante contrastantes. A posição da pesquisa é que qualquer um pode produzir, mas que deve ter responsabilidade sobre aquilo que ele está produzindo", acrescenta a também líder do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Microrganismos Promotores de Crescimento de Plantas (INCT-MPCP-AGRO).

Biológicos “On Farm”

Com os problemas da pandemia do Covid-19, que restringiram de forma significativa a compra de fertilizantes no exterior, a dependência do país se manteve em níveis altos, segundo a pesquisadora. Atualmente, o país compra de fora mais de 85% de todos fertilizante necessário para a agricultura.

A situação se agravou com a guerra da Ucrânia com a Rússia e as consequências são sentidas pelo setor, em especial nas distribuidoras e revendas de insumos. Esse cenário, segundo Hungria, despertou mais fortemente a possibilidade de produzir biológicos dentro da própria fazenda, os chamados "on farm".

"A gente reforçava para o agricultor que é eficiente, não que seja trocado 100%, mas quanto mais trocar, melhor. O agricultor teve essa oportunidade, viu que [biológico] realmente funciona e começou um movimento de que eles poderiam produzir os próprios insumos na fazenda", conta.

Mas, para ela, é preciso uma atenção e acompanhamento contínuo, pois as condições fora de laboratório e a céu aberto podem afetar a efetividade do produto e levar o agricultor a desacreditar em microrganismos que, muitas vezes, têm comprovação científica sobre suas ações e performances no campo.

"A microbiologia é uma coisa muito específica, não tem a mesma lógica de mistura química, ou se reduz a fazer uma compostagem. Ela exige uma pureza. É muito difícil [o on farm], pois é preciso ter um ambiente totalmente acético, conhecer microbiologia, saber que aquela estirpe que se está usando", pondera.

Embora haja uma série de produtores de diversos portes com suas biofábricas, Hungria lembra sobre a importância de ter profissionais especializados no acompanhamento, o que pode significar investimentos maiores em um primeiro momento para, depois, a redução de custos acontecer.

"Por exemplo, no caso dos inoculantes, o Brasil é o mais barato do mundo, então realmente ele tem que fazer as contas na ponta do lápis para ver se ele realmente está economizando de montar toda uma infraestrutura para produzir os biológicos", opina.

Prioridades

Em suas pesquisas, Hungria defende ser prioridade garantir que os biológicos usados têm total relação com o que a cultura e o agricultor precisam para determinadas condições, geografias, cultivos e situação da lavoura.

"Temos feito análise de vários produtos ‘on farm’ há quatro anos, entrando no quinto. Eu posso falar que até hoje a gente não encontramos sequer um produto ‘on farm’ que não tivesse um problema, seja de contaminação, de baixa concentração de células, etc", alerta.

Hungria acrescenta que, no caso dos biológicos, há também a preocupação com a dosagem. "Por exemplo, do Azospirillum, que é usado na coinoculação da soja, é preciso uma dose na semente (dessa média que tem no mercado hoje de concentração) e duas no sulco. Não pode passar disso, porque a quantidade de fito hormônios produzido é tão grande que pode em vez de estimular e inibir o crescimento das raízes", detalha.

O agricultor está capacitado a produzir bioinsumo na fazenda?

"Nós achamos que todo mundo tem o direito de produzir, mas todo mundo tem o dever de produzir coisas de qualidade. Porque microorganismos não conhecem cerca, então se você espalhar um patógeno na sua propriedade, ela vai para propriedade do vizinho", diz a pesquisadora.

Mariangela Hungria reforça que é necessário cuidados minuciosos no caso de on farm, ou mesmo no uso de biológicos sem acompanhamento, porque a agricultura brasileira é pressionada pelos parceiros comerciais internacionais e possui responsabilidade nas exportações.

Conforme o mercado avança, empresas também realizam suas mudanças e adaptações para expandir no mercado de biológicos.

"Há grandes grupos, com muitos recursos, como o SLC, que estão revendo toda essa infraestrutura de biofábrica porque, além de terem especialistas, infraestruturas e tudo, terão de investir em pesquisa. E pesquisa custa muito caro", afirma.

Segundo ela, esse investimento está totalmente atrelado à vanguarda no mercado de biológicos, porque seria impossível ter novidades sem as investigações laboratoriais.

Resposta

Na tarde de terça-feira (24/9), a Associação Brasileira de Bioinsumos (ABBINS) e o Grupo Associado de Agricultura Sustentável (GAAS) enviaram uma nota à Globo Rural com comentários sobre a reportagem.

"Nós da ABBINS e do GAAS defendemos o direito de o agricultor continuar produzindo bioinsumos para uso próprio com segurança e qualidade, como ele já faz desde 2009 amparado pela legislação brasileira. Defendemos também que manuais e cursos para aprimoramento da prática sejam disponibilizados de Norte a Sul do Brasil. Quanto mais conhecimento e preparação melhor para todos", diz trecho da nota.

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