Entrevista

Por Isadora Camargo — São Paulo

Carlos Nobre, um dos mais renomados climatologistas do Brasil, pede atenção: “Já vivemos o período da emergência climática”. Pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), autor e coautor de centenas de artigos e mais de 3 mil vezes citado como referência climática, o paulista, formado em engenharia eletrônica e com doutorado em meteorologia pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT), nos Estados Unidos, tem dedicado sua carreira à pesquisa ambiental.

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Nos últimos anos, Nobre tornou-se um conselheiro de governos, instituições e sociedade sobre o processo de aquecimento global. As enchentes no Rio Grande do Sul são prova disso, constata, em entrevista à Globo Rural. Para ele, é essencial zerar as emissões e fazer a transição para a agricultura regenerativa, independentemente do cultivo, já que hoje menos de 10% das áreas seguem esse tipo de manejo, que veio para ficar.

Globo Rural: Recentemente, o senhor falou que o Brasil pode ser mais frequentemente afetado por desastres climáticos. Como a agropecuária pode ajudar a mitigar esse efeito?

Carlos Nobre: Estamos atingindo um nível de emergência climática. Não é mais só mudança climática, pois já chegamos a um risco de atingir graus acima do que é considerado aquecimento global. Até alguns anos atrás, estimava-se, pela primeira vez, que atingiríamos um nível acima de 1,5 grau por volta de 2030, mas chegamos a ele entre 2023 e 2024, quase sete anos antes. Agora, aponta-se que vamos atingir permanentemente o aquecimento global antes de 2030. Já batemos os extremos e é até desnecessário dizer que uma das áreas mais afetadas é a agropecuária e, portanto, a produção de alimentos em todo mundo. Quando, então, tentamos entender qual é o sistema mais eficiente para combater a emergência climática, percebemos que não é o que a agropecuária adota. Há décadas, quando se começou a pensar o que ia acontecer com o planeta, a pesquisa no setor já havia desenvolvido técnicas para avançar com o sistema de agricultura regenerativa, cuja grande vantagem é reduzir as emissões de gases do efeito estufa (GEEs), que atualmente representam no mundo 23% das emissões. Aqui no Brasil, até 2022, mais de 70% das emissões são decorrentes do uso da terra, 50% do desmatamento, principalmente da Amazônia e do Cerrado, e quase 25% são de emissões diretamente relacionadas à atividade agropecuária. O caso da pecuária é até mais intenso, devido ao metano, que é 30 vezes mais poderoso se comparado ao gás carbônico, e é emitido no arroto ou digestão dos bovinos. Então, também, como se fala da agricultura e da pecuária regenerativas, se olha muito uma agricultura e uma pecuária com muito menos emissões.

GR: Quais são esses modelos agropecuários com menos emissões?

Nobre: O sistema lavoura-pecuária-floresta (ILPF), por exemplo, favorece ter uma temperatura menor, impede grandes erosões do solo e aumenta o número de polinizadores e, consequentemente, aumenta a produção. Quando se faz o plantio direto, você aumenta muito a produtividade com uso de fertilizantes naturais, e tudo isso não só reduz as emissões e transforma a lavoura em mais produtiva. Por isso, é preciso pensar em transformar os mais de 50% de pastagens degradadas no Brasil em reflorestamento, dando escala à preservação da floresta em pé. O problema é que a agricultura regenerativa ainda não passou de 10% da área cultivada no Brasil.

Segundo Carlos Nobre, o mundo vai atingir permanentemente o aquecimento global antes de 2030 — Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
Segundo Carlos Nobre, o mundo vai atingir permanentemente o aquecimento global antes de 2030 — Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

GR: O senhor pode falar mais sobre o papel das pastagens na mitigação dos efeitos climáticos?

Nobre: Quando você tem gigantescas pastagens, a temperatura do solo chega a ser 3 graus superior à temperatura do ar, mas quando se tem uma área de pastagem pequena ao lado da floresta, depois outra área de pastagem, como se estivessem intercaladas, tal qual o ILPF, isso mantém uma temperatura amena, com umidade suficiente para impedir grandes erosões do solo, evitando a perda de nutrientes. Isso porque a floresta retém muito mais a água da chuva, mesmo quando a precipitação é intensa. Então, nós temos um enorme desafio, os governos, todos têm que também ajudar muito o setor a, rapidamente, seguir na direção da transição para agricultura regenerativa.

GR: Falando especificamente da tragédia no Rio Grande do Sul, qual parcela deve ao ciclo natural do clima e qual parcela pode ser creditada às ações do homem? Como o que ocorre na Amazônia tem impacto sobre o Sul?

Nobre: Todo o aumento dos efeitos extremos é responsabilidade nossa. Há fenômenos como El Niño, La Niña, entre outros sistemas de bloqueio de frentes frias que existem há milhões de anos. Porém, com o aquecimento global e o aumento das temperaturas no planeta, evidenciadas por secas pronunciadas em certos lugares ou chuvas recordes em outros, nossa responsabilidade passa a ser a redução das emissões. E o Brasil pode ser o grande líder mundial a zerar suas emissõesantes de 2050, começando a desempenhar esse papel de engajamento já na próxima COP29. Parte desse caminho será trilhado com a adesão de energias renováveis, que são mais baratas. E o agro, depois de vivenciar todas essas crises [climáticas], precisa agir nessa direção, ouvindo a ciência.

GR: Por que o Rio Grande do Sul está sujeito a tantos extremos climáticos?

Nobre: O Rio Grande do Sul há anos é afetado pelos fenômenos El Niño e La Niña. Mas, em decorrência do aquecimento global, os fenômenos estão mais fortes. Se antes aconteciam a cada 50 anos, agora serão vivenciados com tamanha escala a cada década. Pensando nisso, a agricultura e pecuária têm de buscar adaptação e resiliência climáticas, porque os eventos extremos não vão parar. Em geral, como as secas costumam afetar mais a agropecuária do que as chuvas intensas, há um alerta para o desmatamento, afinal a tendência é que as ondas de calor voltem ainda mais fortes. Nesse sentido, observa-se nesse momento a estação seca prevalecendo na Amazônia, a mais longa em décadas, e isso é muito arriscado.

A educação ambiental vai ser relevante para que as novas gerações tenham uma noção muito mais clara da ciência
— Carlos Nobre

GR: Quais suas considerações sobre o negacionismo climático e como ele se manifesta no agronegócio? Há solução?

Nobre: Essa é uma pergunta muito desafiadora, por razões que a ciência ainda não conseguiu explicar. O negacionismo climático não acontece só no Brasil. No mundo, o setor mais negacionista em relação às mudanças climáticas é o agronegócio. Isso é difícil de entender, porque é um dos setores mais afetados pelos efeitos do clima. Os fenômenos que anteriormente aconteciam em séculos, podem se repetir em uma frequência de 20 anos e 30 anos. Uma seca, por exemplo, pode acontecer de três a quatro vezes em uma única década. O agro vai continuar sendo prejudicado e, por isso, é muito importante vencer o desafio de zerar emissões e transformar o sistema produtivo. E a educação ambiental vai ser extremamente relevante para que as novas gerações tenham uma noção muito mais clara da ciência.

GR: O senhor mencionou diversas vezes: “não há mais volta”. O que deve ser prioritariamente feito?

Nobre: Quando falo isso é para que todos os setores não pensem que os extremos climáticos são casos pontuais. Os eventos que já aconteceram, não têm mais volta. Mas se a gente restaurar grande parte da área desmatada na Amazônia, por exemplo, podemos salvá-la. Isso implica em desenvolver o que chamo de nova sociobioeconomia, que mantenha a floresta em pé. No caso amazônico, o objetivo é restaurar ao menos 500 mil km² nos países que abrigam essa floresta, favorecendo as espécies nativas. Por exemplo, eu luto muito para demonstrar que uma das medidas para preservar e tornar esse bioma ainda mais produtivo é desenvolver produtos que nascem da biodiversidade, mas que ainda são subaproveitados. Isso pode acontecer em parceria com cooperativas que já auxiliam na implementação de sistemas agroflorestais, por exemplo, que são mais rentáveis e empregam dez vezes mais do que a produção de soja no país.Tudo isso é um caminho para salvar a Amazônia e gerar industrialização viável. Depois, será possível estender esse tipo de projeto ao Cerrado, à Mata Atlântica e aos Pampas, que foram tão afetados com as enchentes.

GR: Como associar, então, boas práticas que evitem tragédias climáticas com fluxos de produção e comercialização de alimentos?

Nobre: Os fluxos regionais de produção têm tudo a ver. Apesar de gerar certo desconforto no agro de exportação, globalmente, esse é o caminho para auxiliar nas metas de redução das emissões. Isso diminui custo de frete, de logística e de infraestrutura. O Brasil precisa abrir o olho para isso, sem deixar de exportar. Por exemplo, hortas urbanas de vegetais, que são bastante consolidadas em diversos países, poderiam ser melhor disseminadas entre os Estados brasileiros. No caso da produção da soja, em contrapartida, o foco seria melhorar a produtividade por hectare, que ainda está muito aquém no país. Isso faria com que produtores não precisassem de mais área produtiva e melhoraria o preço do grão, para que o produtor não ficasse tão dependente de derivados, como o óleo de soja, que costuma ter valor muito maior do que o grão.

GR: Muito se fala no pagamento por serviços ambientais como forma de incentivar as boas práticas no agronegócio, por exemplo. Como o senhor avalia essa possibilidade? O que já temos de concreto no Brasil e quais as dificuldades de implementação?

Nobre: Cerca de 85% das propriedades agrícolas no Brasil pertencem a menos de 15% dos agricultores instalados no país. Se eles transformassem 50% das pastagens em pecuária regenerativa e outros 50% em preservação do bioma local, não haveria necessidade de se pagar por serviços ambientais. Eu também estou otimista que, quando a pecuária e a agricultura regenerativas acontecerem, será muito provável que haverá um mercado de carbono robusto. Não me refiro apenas à regeneração florestal, mas a emissões próximas a zero, surgindo um mercado de sustentabilidade. Então, o agricultor do Cerrado ou da Amazônia, vai criar serviços ecossistêmicos e remunerados, chamados hoje de mercado de carbono. Só para quantificar: a comercialização de crédito de carbono já atingiu US$ 20 por crédito, mas esse valor pode saltar para US$ 75. Isso vai gerar novos negócios, como os de retenção de água. Uma prevenção contra novos eventos.

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