O canto do besouro mamã-solei na região do Baixo Rio Oiapoque costumava anunciar ao povo karipuna o fim do inverno, período das chuvas, e o início do verão, hora de iniciar a abertura das roças com o uso do fogo para o plantio da mandioca. Mas já faz alguns anos que o inseto amazônico anda confuso, prejudicando o planejamento agrícola e a dinâmica social dos indígenas no Amapá. Leia também Clima seco afeta colheita da mandioca, informa Cepea'Vassoura de bruxa' da mandioca é encontrada pela primeira vez no BrasilCientistas usam fruto amazônico para enriquecer farinha de mandioca “Começamos a perder nossas roças por não entendermos o início do verão e o início do inverno. Quando pensava que era verão ainda, já era o inverno. Quando pensava que ainda era inverno, já era o verão. Aí muitas pessoas começaram a não ter tempo de queimar as roças e passaram a plantar assim mesmo, sem queimar”, conta o coordenador dos Caciques dos Povos Indígenas do Oiapoque (CCPIO), Edimilson dos Santos Oliveira. Continuar lendo Após cerca de três anos com chuvas fora de hora, as roças de mandioca do povo karipuna foram dizimadas e a forma tradicional de manejo da cultura local está em vias de se transformar completamente. Com a elevada umidade, as mudas recém-plantadas passaram a perder as folhas antes mesmo de iniciar o desenvolvimento. Raiz é usada para a fabricação de produtos como caxiri, o beiju, o tacacá e o tucupi — Foto: Getty Images “Depois, atingiu as roças que já estavam quase maduras e as maduras. Do mesmo jeito começou a secar as folhas e os brotos da maniva, passaram a morrer de cima para baixo”, relata o cacique. Sem saber o que fazer, o povo karipuna apelou para a fé. “Tradicionalmente tentamos fazer algumas defumações, rezas, mas percebemos que não resolveu”, lamenta Edimilson. De acordo com ele, mais de 80% da área de mandioca nas três terras indígenas do Baixo Oiapoque (Uiaça, Juminá e Galibi) já foi atingida. Desde março do ano passado, pesquisadores da Embrapa Amapá têm visitado esses territórios a pedido da própria CCPIO. Foram coletadas amostras das plantas infectadas para avaliar as possíveis causas da doença, e a principal suspeita diagnosticada é que se trata de um caso de superbrotamento. Mais Sobre Mandioca Indígenas são resgatados de trabalho análogo à escravidão em fazenda de SC Florestas em terras indígenas ajudam a ‘irrigar’ 80% das áreas agropecuárias do país “Suspeitamos que seja um citoplasma, que é uma bactéria atípica, sem parede celular, que causa esse superbrotamento. Mas isso é uma suspeita, por enquanto é só uma especulação”, explicou em outubro do ano passado o pesquisador fitopatologista da Embrapa Amapá Adilson Lima. Naquela época, ele ainda aguardava o resultado dos testes, que avaliaram também se a bactéria é um novo patógeno ou não, já que existem casos de superbrotamento em lavouras de mandioca da região Nordeste com características diferentes das encontradas no Amapá. Oito meses depois, a Embrapa informou que as análises confirmaram se tratar de um caso de superbrotamento, mas sem confirmação sobre qual patógeno. As informações deram origem a uma nota técnica enviada ao Ministério da Agricultura, que, procurado, não retornou até o fechamento desta reportagem. Pesquisa ainda busca respostas sobre a bactéria que causa perdas nas lavouras de mandioca — Foto: Arquivo pessoal/Luene Karipuna Se confirmadas as suspeitas iniciais, Lima avalia se tratar de um caso “gravíssimo” para a mandiocultura local. “As áreas atacadas ficam praticamente dizimadas, e a produção de raízes, muito comprometida. Tanto é que os indígenas forneciam farinha para o Oiapoque e neste ano praticamente não houve produção. Tem famílias de indígenas comprando farinha de fora”, completa Adilson. O impacto da ausência da mandioca vai além da segurança alimentar dos karipuna, cuja situação já é de risco. Além de ser a principal fonte de renda local, toda dinâmica e organização social das aldeias gira em torno da cultura da mandioca. É durante o trabalho de plantio, colheita e beneficiamento das raízes que os ensinamentos tradicionais são passados pelos mais velhos aos mais novos, incluindo o preparo de instrumentos, bebidas e alimentos típicos. “Durante o mês de outubro, a primeira lua cheia é quando realizamos a nossa festa tradicional. No último ano, a festa não aconteceu porque os nossos pajés não fazem sem o caxiri (bebida fermentada alcóolica), e não temos mandioca para fazer o caxiri. Então, acaba interferindo em algo bem cultural e espiritual nosso”, conta a jovem indígena Luene Karipuna. Além do caxiri, o beiju, o tacacá e o tucupi também desapareceram da dieta da população do Baixo Oiapoque, que tem buscado expandir o plantio de outras culturas como banana, cará, açaí e cupuaçu. O principal temor de Luene, contudo, não desapareceu: o de que os modos tradicionais de cultivo e beneficiamento da mandioca precisem mudar ao ponto de impactar a cultura do seu povo. “Particularmente, meu maior medo é de que tenha uma interferência muito forte na nossa maneira tradicional de fazer o cultivo, e me preocupa muito se vamos conseguir manter isso. Eu espero que a gente consiga reverter a situação e consiga fazer o cultivo tradicional, mas, se não houver outra alternativa, acredito que, enquanto lideranças, vamos optar por ter comida na mesa e nossa base alimentar”, completa Luene. Mais recente Próxima Conheça o limão-caviar, fruta exótica que pode custar mais de R$ 2 mil o quilo