Um bom volante deve sempre estar perto dos companheiros. É dele o papel de ditar o ritmo do jogo, escolher quem recebe ou não. Já um meia de criação precisa ser objetivo: tem que improvisar, “se virar nos 30” mesmo, para que o ataque corra em direção ao gol. Se for um meia que joga pelo lado, precisa saber o momento certo de pisar o facão e entrar na área para finalizar.
É difícil que um jogador faça um papel desses muito bem. Dois, então, quase impossível. Os três papéis, e com status de craque, só ele: Andrés Iniesta.
Iniesta nunca foi exatamente um protagonista no Barcelona. Fazia mais gols que Xavi, aparecia mais que Busquets, mas o brilho era todo de Ronaldinho e Messi. O que ele sempre é modelo, exemplo perfeito do que a La Masia queria formar nas canteras: um leitor voraz de espaços, sempre correto ao posicionar (ou perfilar o corpo). Mais que um meia, o Barça queria um jogador que pudesse se adaptar o tempo todo ao que o jogo pedia.
“O Barça tem uma perspectiva holística do futebol”, explica Albert Rudé, que esteve por cinco anos no comando da escola do Barcelona no México. “Os jogadores aprendem e tomam decisões com o entorno, com o próprio time. É o negativo da entropia”, relata em depoimento no livro A Escola Europeia.
É como se o jogador estivesse acima de qualquer conceito que temos sobre futebol. Meia ou volante? Ficar perto ou longe da bola? Posicional ou não? Tanto faz! Quem dita a jogada é pura e simplesmente o contexto no qual ele está. É o que o time pede e o que será melhor para o time. “O Barcelona tem a compreensão de que, se o sistema se adapta ao ambiente, o ambiente também se adapta ao sistema”, termina Rudé.
Se no Barcelona havia toda uma ideia por trás, foi na Seleção Espanhola que Iniesta pode mostrar essa compreensão em sua forma mais pura. Luís Aragonés e Vicente del Bosque não eram técnicos autorais. Tinham como qualidades a gestão de grupo e uma esperteza ímpar para juntar talento e extrair o que hia de melhor. Com Iniesta, esse melhor foi o grande leque de posições que podia sempre performar - sempre bem.
Começando pela Euro de 2008, reprisada nessa semana na Faixa Especial do SporTV. Com os olhos de hoje, o time seria um perfeito 4-2-3-1. Mas, na época, a imprensa espanhola debatia se Aragonés deveria incluir os “bajitos” Iniesta e David Silva como pontas, pois não conseguiriam ter a fúria de um Raúl. Aragonés via o Barcelona de Rijkaard, ainda que numa temporada ruim: era assim que Iniesta jogava, com Messi no outro lado.
Tente mentalizar quais eram seus pensamentos jogando como ponta. Ele recebia menos a bola – porque sempre estava no lado – e tinha poucos segundos para decidir. Por estar perto do gol, sempre recebia e podia tentar um chute ou um passe. Seu posicionamento corporal tinha que ser voltado a dominar e tentar colocar de lado e já chutar. E sua cabeça tinha que sempre estar de lado, olhando pra Xavi e Fábregas – os meias, de fato, do time.
Era o entorno moldando a decisão e a forma de atuar do jogador. Então, o que acontece se o entorno muda? O jogador muda!
Del Bosque radicalizou a ideia de Aragonés rumo à Copa do Mundo de 2010. Com Villa e sem Fábregas, coube à Iniesta o papel de pensador do jogo. Ele passou a atuar numa zona maior e tinha que ficar mais perto da bola. Quase o oposto de 2008! Agora, era preciso olhar para frente, posicionar o pé para soltar rápido antes que o desarme tirasse a bola e sempre ver o companheiro e tentar telegrafar a jogada. O gol contra Portugal nasce numa pré-assistência dele justamente assim....bem diferente da Euro de 2008.
Mas lembre-se que o entorno pautava a atuação. A Espanha do tiki-taka realmente tinha a bola, mas faltava profundidade. Algo que Iniesta também resolvia....ficando mais longe da bola. Ele faz o mesmo movimento da imagem no gol da final: o facão para a área. Sai do lado e busca um espaço vazio para tentar finalizar a bola. Centroavante? Calma...ainda não!
Num mundo sem Cristiano Ronaldo e Messi, Iniesta teria sido o melhor jogador do Mundo em 2010. No Barcelona, ele já tinha passado da ponta para o meio, dando lugar a Villa e Pedro e com Messi flutuando como falso-nove, inovação que só a Inter de Mourinho soube segurar. Mas....pra que definir uma posição? Apontar se ele sempre está perto da bola para rodar o tiki-taka?
O meio-campista precisa ler o jogo. Entender quem está ocupando tal espaço. Quem tem tempo de chegar a um outro espaço. Buscar quem tem melhores condições de cumprir os objetivos do jogo. Basicamente, é jogar (tomar decisões) para que o time cumpra o objetivo (vencer) dentro do que o treinador pede (a ideia de jogo) e, em condições ideias, do jeito que a torcida se identifica (o estilo de jogo).
O exemplo do primeiro gol na final da Eurocopa de 2012
O primeiro gol contra a Itália na final da Euro 2012 - reprisada nessa semana na Faixa Especial do SporTV – é um exemplo dessa mistura de papéis. Iniesta começa o longe totalmente fora da jogada, longe e distante. Ele ainda está lendo, interpretando o que pode acontecer enquanto Xabi e Busquets se aproximam.
Xabi Alonso acaba ocupando o espaço de Alba e aí temos um problema: o meio fica vazio. É preciso preencher para criar superioridade numérica por lá. Ter mais gente significa ter mais linhas de passe...é ter a bola, como Del Bosque quer. Tomar decisão > Vencer > Ideia de jogo.
Iniesta não recebe a bola e Alba faz um lançamento até Arbeloa, do outro lado do campo. A bola foi longe, e Iniesta precisa criar superioridade naquele setor e ajudar Xavi enquanto Alonso não vem. Então ele vai lá e se desloca.
Aqui existe um componente importado diretamente do Barcelona: o passe de primeira. Veja como a Espanha ainda não consegue atacar. Apenas Fábregas está acima da linha da bola, em reais condições de finalizar. Iniesta toca de primeira, simples assim. Isso dá tempo para que mais gente chegue. E quando chega, fica assim: com ele no mesmo lugar, livre para continuar sendo opção de passe.
Até que Iniesta recebe a bola e inverte sua posição com Xavi. Agora, há profundidade: tem Silva, Fábregas e Arbeloa como opções. O companheiro olha e começa a correr, Iniesta já virou o pé para dar um passe que parece impossível, mas que não é interceptado pelo tempo e, principalmente, pela forma como ele posiciona o corpo: ele domina de esquerda e já prepara a direita para colocar força. É impossível de alguém, com um segundo, antever isso.
Melhores momentos: Espanha 1 x 0 Alemanha na final da Euro 2008
Luís Aragonés dizia que a Espanha era um dos melhores times da história, mas não podia ser comparada ao Brasil. “Os brasileiros tinham mais técnica individual, mas menos precisão que os espanhóis”, relatou durante a Copa de 2010. De fato, havia muita precisão na Espanha entre 2008 e 2012. Precisão no passe, no movimento e na forma como Iniesta se adaptava ao seu entorno e conseguia achar soluções que parecem tão criativas e improvisadas quanto milimetricamente treinadas.
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