O
fim da carreira de Garrincha nem de longe lembra os dias de glória
do Mané com as camisas do Botafogo e da seleção brasileira, pela qual foi bicampeão mundial e protagonista do título de 1962, no Chile.
Morto há exatos 32 anos, em 20 de janeiro de 1983, o Anjo das Pernas
Tortas tinha desembarcado dez anos antes no Vale do São Francisco para fazer a alegria dos
torcedores locais. Acabou acirrando ainda mais a rivalidade no futebol
amador de Petrolina, em Pernambuco, e Juazeiro, na Bahia. A ponto de ter sido rejeitado por uma das equipes.
A
visita fez com que as cidades, separadas pelo rio São Francisco, se
unissem para ver o craque jogar. A notícia de que Garrincha estaria
na região mexeu com o povo e com a imprensa local. Na época, o jovem
radialista Domingos Sávio Ventura Brandão, conhecido como Sivuca,
foi um dos responsáveis pela cobertura do evento.
–
Foi uma cobertura grande, porque foi
um evento excepcional. Tratava-se do melhor jogador do mundo. A
imprensa deu grande destaque. Nós criamos muita expectativa sobre
esse jogo – afirma Sivuca.
o não a Garrincha
O
confronto foi entre Veneza, de Juazeiro, e América, de Petrolina, no estádio Adauto Moraes, na cidade baiana. Antes do jogo, ficou
combinado que o Mané jogaria um tempo em cada equipe, mas nem tudo
saiu como o esperado. Quando estava no auge, o talento do
ex-botafoguense era desejado por todos. Aos
40 anos de idade, no entanto, ele se viu rejeitado por um time amador.
–
Fizeram um sorteio
para ver em qual time ele jogaria primeiro, e deu Veneza. Aí atrasou
para começar o jogo, e a gente esperando. Foi quando chegou a notícia
de que o presidente do Veneza não aceitava Garrincha. Ele não
queria mexer no time. O Veneza era muito bom. Não tinha vaga, nem
sendo Garrincha – conta Marco Polo, um dos personagens do
confronto.
Na
parede de sua peixaria, Pilar, ex-volante do América, guarda com
orgulho uma fotografia do dia em que jogou ao lado de Garrincha. Ele
conta que a rivalidade entre os times das duas cidades foi
fundamental para a recusa da equipe juazeirense. A intenção do
presidente do Veneza era não mexer na estrutura do time, que na
época era considerado um dos principais do futebol amador da
região.
–
Lulu (Aloísio) Viana era presidente
do Veneza na época. Quando ele viu Garrincha, disse que não
precisava de Garrincha para ganhar do América. Aí, o próprio Mané
disse que não tinha problema e que jogaria os dois tempos com o
nosso time – recorda Pilar.
Com
a Alegria do Povo jogando os dois tempos no América, a vitória ficou mais fácil: 3 a 1, apesar de Garrincha não ter marcado. E Marco Polo pôde
viver um dos momentos mais especiais de sua carreira no futebol
amador. Ainda garoto, ele seria escalado no primeiro tempo, enquanto
Garrincha defendia o Veneza, e na segunda etapa daria lugar ao ídolo.
–
Eu ia jogar só um tempo, e ele
também. O treinador me disse que, assim que acabasse o primeiro
tempo, era para eu tirar a camisa 7 e dar a Garrincha. Eu ainda
perguntei se não teria outra camisa com o mesmo número, mas não
tinha. E Garrincha tinha que jogar com a 7, para não ficar uma
situação chata. Se o Veneza não tivesse recusado, ele ia ter que
usar a camisa que eu usei – lembra Marco.
Em cima da hora, ele conseguiu uma oportunidade no time que foi a campo.
- Quando
eu já estava me conformando com a reserva, o treinador mandou outro
titular tirar a camisa dele, a número 8, e entregar para mim. Aí
ficamos Garrincha, eu, e tinha Pilar jogando no meio. Depois disso eu
nunca mais saí do time titular – comemora.
mané, o mestre
Jogando
ao lado de Garrincha, Marco Polo diz ter recebido várias orientações
do experiente jogador. Uma delas era para que o garoto não fosse
para área durante as cobranças de falta, já que os zagueiros do
Veneza eram fortes e não dariam chances de finalizações. E as
dicas do Mané foram certeiras.
–
Garrincha me chamou e disse: “Você
é novo, vai jogar do meu lado”. Fiquei perto dele e deu certo. Ele
dava dribles, cobrava falta. Uma ele cobrou pela direita, o zagueiro
defendeu, eu dominei a bola, chutei e fiz o gol. Outra
ele cobrou, bateu no goleiro,
na trave, e eu fiz mais um.
A idade dele para jogar no
amador ainda dava. Ele não jogava como antes, mas ainda era muito
bom – afirma.
Sem
Garrincha no elenco, o Veneza terminou perdendo o confronto contra o
rival petrolinense. No dia seguinte ao jogo, a passagem do Mané pela
região foi o tema mais abordado nas rádios das cidades.
–
Eu sei que no outro dia foi
comentário. Garrincha saiu daqui mais falado que tudo. O clube não
quis Garrincha, e Garrincha acabou com o Veneza – conta Marco Polo.
A
passagem do Mané pelo Vale do São Francisco deixou saudade nos
personagens que viveram aquele momento. Sivuca revela a sensação de
ter entrevistado um dos grandes nomes do futebol mundial.
–
Foi um sonho concretizado.
Entrevistar um astro da grandeza de Garrincha foi uma coisa
extraordinária que a gente teve aqui em Petrolina. Foi uma
realização – descreve o radialista.
Para
quem jogou com o Mané, restaram as lembranças do dia mais simbólico
de suas carreiras.
–
Está na memória da gente, está
gravado. Todo juazeirense e petrolinense fala desse jogo – afirma
Pilar.
Marco Polo sabe que uma oportunidade daquelas não acontece todo dia e lamenta o fim melancólico do craque, que sofreu com a bebida no fim da vida e morreu aos 49 anos, vítima de uma cirrose hepática.
–
O cara jogar com um homem daquele
não é todo mundo não. Uma pena que morreu de uma maneira que… Eu
sinto muita saudade – completa Marco Polo.