Perto de virar SAF, América disputa Série A3 do Pernambucano
A casa verde de número 3107 que resistiu bravamente à especulação imobiliária que avança sobre os bairros da zona norte do Recife, hoje, é a única conexão física entre o passado e o presente de um dos clubes mais tradicionais de Pernambuco: o América-PE, fundado em 1914, seis vezes campeão estadual.
Os demais objetos que contavam a vitoriosa história de 110 anos do Mequinha pernambucano, os quase cem troféus, entre eles os seis dos títulos estaduais, que eram guardados dentro do imóvel, foram desaparecendo ao longo dos últimos anos.
Nem os próprios dirigentes sabem dizer ao certo quando tudo sumiu. Há uma versão de que, em 2017, as últimas taças foram roubadas e vendidas como ferro velho.
Hoje, a casa está vazia. O imóvel resistiu a leilões para saldar dívidas antigas do clube e atualmente está a salvo da especulação imobiliária porque tornou-se Imóvel Especial de Preservação (IEP). Sem os troféus, o passado glorioso do América vive apenas nos registros de jornais amarelados ou na memória da população mais velha, sejam eles torcedores ou não do América, tido outrora como o segundo clube do coração de todo pernambucano.
Os resquícios desse passado, porém, podem ser a salvação do América. Foi pela história do clube, e a identificação com o povo pernambucano, que um grupo de empresários escolheu o time para investir. Em breve, o Mequinha deve se tornar mais uma SAF do futebol brasileiro, com promessa de retorno aos tempos de glórias por meio um investimento de R$ 4 milhões, sendo R$ 2 milhões já em 2024 e mais R$ 2 milhões em 2025.
O ambicioso projeto que promete tirar o time da Série A3 do Campeonato Pernambucano e levar de volta à elite em 2026, conquistando dois acessos seguidos, já está em curso. A competição começa em 21 de setembro e reúne oito clubes, que brigam por duas vagas na Série A2 do ano que vem.
O América-PE estreia neste domingo, no jogo de destaque da primeira rodada, contra o Pesqueira, às 15h, nos Aflitos. Para atrair o público, o clube anunciou que a entrada será gratuita.
O time iniciou os treinamentos em agosto, pagou R$ 200 mil ao Náutico para utilizar a estrutura completa do CT para os treinos e o estádio dos Aflitos para mandar os jogos, além de chegar como a maior folha do campeonato - cerca de R$ 100 mil (sem a comissão técnica). Sim, numa terceira divisão de estadual.
Por que o América?
O último título pernambucano do América foi em 1944, porém, ainda assim, o clube foi considerado um dos "grandes" por muito tempo. No total, são 84 participações na primeira divisão estadual. A queda que levou ao seu pior momento na história começou em 2019, quando o Mequinha disputou a Série A1 pela última vez, sendo rebaixado.
Na Série A2 de 2022, o clube foi punido com a perda de 12 pontos pela escalação irregular de um jogador, entrou em guerra com a Federação Pernambucana de Futebol (FPF) e sequer disputou a Série A2 em 2023, sendo relegado, automaticamente, à terceira divisão. Chegou ao fundo do poço.
A história do clube e a simpatia do público foram fatores decisivos para a escolha dos investidores. O grupo prefere o anonimato, e quem fala em nome deles é Eduardo Peixoto, carioca, mas com uma conexão afetiva com Pernambuco.
"Minha adolescência inteira eu fui muito a Pernambuco. Tenho uma conexão muito legal com o estado", diz Eduardo, que mora fora do país atualmente e conversou com a reportagem do ge por telefone e videoconferência.
Eduardo foi escolhido para ser o presidente da SAF do América-PE. Embora o processo legal ainda esteja correndo, ele já tem procuração para tomar as decisões no clube, vem coordenando o planejamento do futebol, as contratações e o direcionamento da estrutura.
- Poderíamos investir num clube do zero, mas o América tem uma história que chama atenção. Faz muito sentido investir em um clube centenário que, apesar de estar em dificuldades, é muito querido pelo público. O futebol é difícil, e tudo depende do que acontece em campo, mesmo com investimento, mas acreditamos que é possível reerguer o clube - afirma Eduardo.
O caminho para se tornar uma SAF
Os investidores trabalham para que o processo para tornar o clube oficialmente uma SAF seja finalizado até o fim deste ano. Hoje, a taxa cobrada pela Federação Pernambucana de Futebol (FPF) para oficializar o registro da SAF é de R$ 120 mil*. Esse valor está incluso no orçamento.
Até lá, o grupo investidor espera ter conquistado o acesso para a Série A2.
- Nosso primeiro objetivo é sair da Série A3. Estamos treinando e vivendo para isso, com jogadores muito capazes e um treinador com uma excelente visão de futebol. A meta é, em 2025, disputar a Série A2 e em 2026 a Série A1. Vamos trabalhar duro para isso, e, se não conseguirmos, não será por falta de investimento ou profissionalismo.
Os planos não param por aí.
- A longo prazo, em 2028, queremos estar na Série D e numa semifinal do Pernambucano. Além disso, quero ter jogadores do América espalhados pelo Brasil e pelo mundo.
Conexão Brasil-África
Está nos planos, também, estruturar o clube para torná-lo um centro revelador de talentos. O objetivo é garimpar jogadores na região Nordeste e fora do Brasil, mais especificamente na África. Na visão dos investidores, o mercado africano é pouco explorado pelo futebol brasileiro, que tem se aberto cada vez mais a estrangeiros.
- Estamos desenvolvendo um sistema de scouting (observação de talentos) para mapear jogadores em Pernambuco, Paraíba e Alagoas, além de manter um olhar no mercado internacional. Recentemente, enviamos um scout para Gana, que passou uma semana desenvolvendo relacionamentos com academias locais, que exportam talentos. Queremos mostrar que o Brasil é uma grande oportunidade para esses jovens atletas.
Promessa nigeriana custou R$ 350 mil
Foi na África que o grupo investidor buscou o seu principal reforço, o nigeriano Oluwasegun Otusanya Samuel, de 20 anos, num investimento de R$ 350 mil. Ele tem passagens pela seleção sub-20 do país e estava no time B do Haugesund, da Noruega. Em 2023, ele chegou a ser utilizado na equipe principal, participando de três jogos da primeira divisão norueguesa.
- Samuel é um jogador da seleção sub-20 da Nigéria, que estava na Noruega. Pagamos 57 mil euros (R$ 350 mil) por 60% dos direitos dele, o que representa quase 20% do nosso orçamento atual (para 2024), que gira em torno de R$ 2 milhões. É um investimento alto, mas fizemos isso porque acreditamos muito no retorno esportivo e financeiro desse jogador - revelou Eduardo.
Apesar do investimento, com direito a anúncio oficial nas redes sociais do clube e do jogador, a vinda de Samuel para vestir efetivamente a camisa do América na Série A3 está em clima de expectativa. Para entrar no Brasil ele precisa do visto, que está em processo de emissão. Não se sabe ao certo quanto tempo isso vai levar, porque, segundo os dirigentes, a burocracia na Nigéria é grande. Como ele chega com um contrato de quatro anos, a direção está tranquila, porque vê nele como um investimento para o futuro.
Em compensação, Samuel não será o único estrangeiro do América-PE. O clube trouxe outro africano, o goleiro ganês Lawrence Ansah, 23 anos, que estava no Samartex, atual campeão de Gana. Com relação a ele não houve problema com documentação e ele deve jogar ainda na A3.
Há também um colombiano, o zagueiro Sandoval, 22, que estava no Internacional Palmira, mas já teve passagem por clubes brasileiros em 2023.
- Hoje, o América está no fundo do poço, e nossa missão é tirá-lo dessa situação. Para isso, estamos montando um elenco forte, com jogadores experientes e de qualidade, para garantir a subida. Além disso, queremos também revelar talentos. Confio muito no trabalho de scouting que estamos fazendo, e no nosso sub-17, que é muito promissor.
O elenco atual é comandado por Adriano Souza, que tem trabalhos em clubes pernambucanos e está cedido pelo Foz do Iguaçu, um clube parceiro. Além dos estrangeiros, o América-PE investiu alto em jogadores que dificilmente jogariam uma terceira divisão de estadual.
O grupo avalia também investir em estrutura e ter um centro de treinamento, a exemplo do que fez o Retrô, clube pernambucano criado em 2016, vice-campeão estadual nos dois últimos anos e que acaba de conquistar o acesso para a Série C do Brasileiro.
"Temos um projeto muito sério. Queremos que, em cinco ou seis anos, as pessoas reconheçam o que fizemos. Não vamos fazer promessas vazias, como construir um estádio. Nosso foco é estruturar o clube, e, se possível, ter um CT, o que é fundamental para dar dignidade aos jogadores e funcionários. É um objetivo essencial que não podemos abrir mão", afirma Eduardo.
O que diz a velha guarda
O América-PE se orgulha de ser um clube querido pelos pernambucanos. No passado, o time dividia a preferência com os outros grandes da capital, Náutico, Santa Cruz e Sport. Entre os torcedores ilustres está o escritor pernambucano João Cabral de Melo Neto, que já fez até poesia em homenagem ao Mequinha.
O desábito de vencer
não cria o calo da vitória;
não dá à vitória o fio cego
nem lhe cansa as molas nervosas.
Guarda-a sem mofo: coisa fresca,
pele sensível, núbil, nova,
ácida à língua qual cajá,
salto do sol no Cais da Aurora.
Fonte: "A educação pela pedra e depois", Editora Nova Fronteira, 1997. Originalmente publicado em: "Museu de tudo", 1975.
Existe um grupo, porém, que resistiu ao tempo como o imóvel da sede. Permaneceram torcedores do América-PE, no bom e no ruim. A família Moreira sustentou o legado do clube até hoje. Agora, passa o bastão, permitindo que o time mergulhe nos novos tempos do futebol, na busca por reviver as glórias do passado.
- Queria que meu irmão, eterno presidente do América-PE, José Amaro, estivesse conosco para ver esse resgate. A felicidade dele seria imensa. É como se tivéssemos achado uma luz no fim do túnel. A possibilidade é grande de chegar onde imaginamos, que é a Série A1. Com a SAF, temos pessoas que entendem muito de futebol e tem o dinheiro, porque, sem dinheiro, não se faz futebol - afirma o atual presidente do clube, João Moreira.
A família segue envolvida no clube e as decisões, a partir de agora, são colegiadas, tomadas em conjunto com os investidores da SAF.
- A presidência do América-PE não deixa de existir, mas todas as decisões que envolvem o clube serão colegiadas. Tudo vai ser resolvido no voto.
* Inicialmente, publicamos que a taxa para registro da SAF seria de R$ 400 mil. Esse valor vigorou a partir de novembro de 2023, de acordo com documento da FPF, mas, em março de 2024, por definição da CBF, voltou a custar R$ 120 mil.
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