O improvável Giuliano: meia abre o jogo sobre vida e carreira e cogita se aposentar no Santos

Atleta de 34 anos diz que 2025 pode ser o último ano de uma carreira com mais de 800 jogos e relembra o começo complicado no futebol: "Vivi muito mais do que sonhei"

Por Ana Canhedo — Santos, SP


"Eu sou um improvável": Giuliano abre o coração sobre início difícil no futebol

Horas antes de marcar o gol da vitória do Santos sobre o Operário, na rodada passada da Série B do Brasileirão, Giuliano já havia vencido: era mais uma partida de xadrez on-line bem sucedida a favor do camisa 20 na concentração do time, no quarto 06 do hotel do CT Rei Pelé.

Jogar xadrez no ônibus ou no tempo livre é apenas um dos hobbies de um meia cerebral dentro e, principalmente, fora de campo. Aos 34 anos, Giuliano recebeu a reportagem do ge para uma conversa no CT santista e abriu o coração sobre a vida. Ele será novamente titular na noite desta segunda-feira, contra o Goiás, na Serrinha, pela 30ª rodada, às 21h (de Brasília).

Com mais de 800 jogos na carreira, admitiu ter planos de parar. Não sem antes encarar mais uma temporada no Peixe, desfrutando, possivelmente, do tão sonhado acesso à Série A. Ainda não crava se 2025 realmente será o último ano como atleta, mas se sente orgulhoso da escolha feita em janeiro.

– Tenho o projeto de ficar aqui ano que vem. Se Deus quiser, subindo o Santos, a intenção é de permanência. Sei que ano que vem vou estar jogando, talvez o último ano, há essa possibilidade, sim. Eu vim para cá com o objetivo claro de devolver o Santos à primeira divisão. E me sinto orgulhoso. Foi um momento em que poucos queriam estar aqui. Em termos de carreira, não fazia nem sentido. Mas eu entendi que era aqui meu propósito. Ficar marcado na história do clube e continuar – disse.

– Não quero determinar uma data para parar, mas posso afirmar que já estou nessa transição desde os 31 anos de idade. Nada tira meu foco, desfruto do jogo e do dia a dia, mas estou nesse processo. Sei que é algo que está próximo.

Giuliano observa imagem de Pelé no vestiário da Vila Belmiro — Foto: Raul Baretta/Santos

"Eu sou um improvável"

Condensada em mais de 800 jogos, a carreira de Giuliano o levou a rodar o mundo. Formado na base do Paraná Clube, foi eleito o melhor jogador da Libertadores em 2010 pelo Internacional, aos 20 anos, e decolou como um avião. Foi do Leste Europeu aos Emirados Árabes. Jogou em rivais no Brasil, como Grêmio e Corinthians, e nunca mais parou de sonhar.

– Ser jogador de futebol é uma realização muito grande. Eu vivo hoje muito mais do que sonhei. Eu sou um improvável. Não era para ter chegado como profissional, como muitos outros que conhecemos no mundo da bola. Tenho o coração muito grato. Muito aprendizado, cultura, passagens, sou privilegiado de fazer o que amo e desfrutando. O tempo passa muito rápido. Daqui a pouco, a gente não está mais aqui. Vivo intensamente – resumiu.

– Sou daquelas estatísticas improváveis. Classe social humilde, sem condição, sem empresário. Vivi de ajuda, muitos irmãos, mentalidade de escassez, falta de recursos, comida. Saí de um ambiente onde falavam que não iria dar certo. Venci não por ser jogador, mas por ser um bom ser humano, um pai de família. Amigos ficaram para trás, presos, mortos. E hoje posso dar uma condição para os meus filhos, boa educação e ainda fazer o que amo. Sou um vencedor.

Giuliano ostenta faixa de capitão do Santos na Série B do Brasileirão — Foto: Raul Baretta/Santos

Em dez clubes diferentes, aprendeu a falar inglês, turco, russo e ucraniano e enfrentou barreira maiores do que as linguísticas, como frio de temperaturas negativas da Ucrânia e a rigidez russa. Optou por tentar sempre extrair de cada país o máximo possível de sua cultura.

Por isso, sorri um tanto orgulhoso, por exemplo, ao contar ter "proibido" a esposa de assistir televisão em português no período em que moraram na Europa. Mais do que isso: tinha uma cozinheira turca quando jogou na Turquia e um motorista russo quando atuou na Rússia. Pegou gosto pela leitura ao entender que o conhecimento só lhe traria ainda mais benefícios. E viveu mais do que sonhou.

É um cidadão do mundo, apaixonado por ele.

– Eu amadureci muito rápido. Fui um pilar em casa, adquiri responsabilidade. Sai do Brasil com 20 anos para um país com menos 20 graus de temperatura. Não tinha brasileiro, precisava me adaptar e foi na marra. Só pensava em desfrutar ao máximo. Aprender. Eu e minha esposa, ninguém mais. Essa mentalidade aberta fez com que eu me desenvolvesse em outras áreas. Quanto mais conhecimento você tem, mais você quer e vai expandindo sua cabeça.

Giuliano em entrevista ao ge no CT Rei Pelé — Foto: Fábio Maradei/Santos

"Terminei a escola por teimosia"

Quando Giuliano se coloca na condição de improvável, não se trata de exagero ou força de expressão. Deixou amigos pelo caminho na longa trajetória que levou o menino criado na pobreza, em Vila Lindóia, bairro de Curitiba, à Baixada Santista. Era estatisticamente improvável dar certo no futebol.

Conhecido por ser polido, de palavras assertivas e bom comportamento, ele só conseguiu terminar o Ensino Médio com a ajuda de um outro jogador, o goleiro Gabriel Leite, hoje no Coritiba. Se não fossem as caronas, Giuliano não teria se formado no Colégio Estadual Newton Ferreira da Costa.

– Eu ainda moro na mesma região. Giuliano sempre foi muito acima da média e eu o ajudava como podia, sou três anos mais velho, mas ele sempre foi um moleque bom, diferente dos outros, educado. Volta e meia a gente saía correndo do treino para a escola e vice-versa. Íamos e voltávamos juntos. Casa dele era a sete quadras da minha, estudou com minha irmã. Meu pai faleceu há quatro anos, mas sempre contava que o craque Giuliano agora anda de carrão, mas aprendeu a andar no carrinho dele, um Peugeot 106. A gente treinava direção no estacionamento do clube – contou Gabriel, ao ge.

Gabriel Leite, goleiro do Coritiba — Foto: JP Pacheco / Coritiba

– Eu terminei a escola por teimosia porque com 16 anos já era profissional no Paraná. Fico no clube dos oito aos 16 e viro a revelação da Série B em 2008, quando sou vendido ao Inter – completou Giuliano.

Giuliano foi criado em uma família de oito irmãos, três mulheres e cinco homens, com pais separados, e poucas condições para se destacar no futebol. O foco era sobreviver. Quando fez um teste no Paraná, por exemplo, não sabia nem como aquecer o corpo antes da partida.

Foi aprovado "na unha" por seu bom futebol. Menino prodígio, usava meias do irmão mais velho e uma botina furada no teste de sua vida.

– Foi meu irmão mais velho quem conseguiu um teste para nós. Ele era cozinheiro do exército e conhecia alguém que arrumou esse teste. Claro que eu não tinha tênis de salão, usei o meião do quartel, botina furada, shorts que era para ser azul mas já estava branco de tão desbotado... Enfim, foi um choque de realidade. E meu pai já chegou avisando que não poderia pagar nada.

– Cheguei no teste e os meninos todos com chuteiras de marca, eu não pertencia àquele mundo. No aquecimento, eu não sabia o que fazer, só ria. Todo mundo coordenado. No jogo, eu, meu irmão mais velho e um amigo ganhamos do time titular. Meu irmão não ficou, mas eu sim, e o técnico me deu um tênis de salão para treinar – relembrou o meia, que hoje tem o patrocínio da Adidas.

Giuliano (quinto da esquerda para a direita) na base do Paraná clube — Foto: Arquivo pessoal

"Decidi furar a bolha"

As dores vividas no futebol dão propriedade para Giuliano ser um mentor da carreira de novos talentos. Ele não pretende se tornar um dirigente, mas quer, sim, prestar assessoria a novos atletas por conhecer na pele os percalços e armadilhas.

É um plano para depois, mas que já vem sendo colocado em prática. Um líder nato no dia a dia do Santos, por exemplo.

– Na vida, eu decidi furar a bolha. Por isso, me dá autoridade para falar das dores para os meninos, sou um mentor. Eles sabem e me procuram. Eu consigo explicar sobre negócios, investimentos, seguros, milhas, consórcio, loteamento. Coisas simples, que precisam ser explicadas e fazem parte da vida, mas que eles não sabem. Você acaba sendo uma referência. Eu adquiro o conhecimento e não retenho nada para mim, passo para frente. Conheço a dor do atleta, sei o quanto é carente, precisa de auxílio, assessoria e me vejo nesse meio. Sou visionário, tenho empresas e quero ajudar no futebol.

O futuro ainda dirá como vai ser o pós carreira de Giuliano. Certo é que a trajetória consolidada do meia no esporte lhe gabarita a alçar voos ainda maiores quando pendurar as chuteiras.