Em 1992, artista olindense Bajado fala sobre sua arte e quadros de futebol
"Bicho maluco beleza do Largo do Amparo. Teu estandarte tão raro, Bajado criou. Usando tintas e cores do imaginário..."
O artista mencionado na música Bicho Maluco Beleza, composta e cantada por Alceu Valença, fez muito mais do que um dos elementos simbólicos mais importantes para o carnaval de Olinda.
Apaixonado por cenas do cotidiano, autodidata, Euclides Francisco Amâncio, imortalizado no meio artístico como Bajado, também retratou o futebol em sua obra. Legado expresso, em especial, em razão do amor pelo Santa Cruz.
Com as prévias de carnaval a todo vapor no Recife e em Olinda, o ge também inicia a entrada no clima festivo e resgata, nesta reportagem, a ligação de um dos artistas mais importantes da história de Pernambuco com o futebol - muitas delas, inclusive, misturadas aos dias de Momo.
Pouco conhecido pela maior parte do público aficionado no esporte mais popular do país, Bajado, que viveu entre 1912 e 1996, deixou uma série de obras que retratam cenas da cultura pernambucana com as cores que remetem predominantemente ao Santa Cruz, mas também com espaço para o Náutico e o Sport.
Quem foi Bajado?
Letrista, desenhista, cartazista e pintor, Bajado nasceu em Maraial, na Zona da Mata Sul de Pernambuco. Na adolescência, mudou-se com a família para Catende, na mesma região. Foi lá que trabalhou no cinema da cidade e criou histórias em quadrinhos após assistir filmes de "faroeste".
Autodidata, aprendeu, em observação, a arte de reproduzir elementos visuais nas fachadas comerciais. Foi com essa qualificação que ele chegou no Recife, em 1930.
Conforme diz a biografia "Bajado", escrita pela jornalista Graça Prado, o artista produziu cartazes e fachadas para diversas lojas. Dois anos mais tarde, emprega-se em uma gráfica como linotipista (pessoa que opera a máquina de impressão).
Bajado chega em Olinda em 1933, onde trabalhou como cartazista até 1950 no Cine Olinda - espaço que, mais tarde, na década de 1980, ganha seu nome, funcionando como "Cine Bajado". O cinema está em inatividade e passa por restauração.
- Ele se apaixonou por Olinda. Teve ofertas de ir para outros lugares, mas ele gostava da cidade. Bajado ajudou a cristalizar uma imagem de carnaval. Ele pintava o que via passando pela janela - explica Rafaela Santana, pesquisadora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
"Nesse processo de pintar o que ele via, Bajado acabou cristalizando algumas figuras icônicas do carnaval, como uma 'la ursa'. A gente está falando de uma época que não tínhamos o hábito de fotografar tanto", complementa.
Conforme reportagem do G1 em ocasião do centenário do nascimento de Bajado, o artista pintava quadros desde os 12 anos. Inicialmente, gostava de retratar paisagens, santos, cenários bíblicos e de faroeste.
Adiante, em Olinda, passaria a retratar o carnaval, com muitos blocos, troças, maracatus e outro elemento do cotidiano popular: o futebol.
- Ele vivia ali naquela janela da casa dele no Amparo, então ele observava tudo de lá. Gostava muito de observar todos esses elementos da vida olindense - diz o pesquisador e escritor olindense José de Ataíde, 87 anos, que conviveu por muitos anos com Bajado.
Em 1964, Bajado inaugura com outros artistas de Olinda o Movimento da Arte da Ribeira. Adiante, passou a assinar as obras como "Bajado, um artista de Olinda".
João Câmara, 80 anos, considerado um dos artistas mais criativos do Brasil, também conheceu Bajado e reconhece o legado deixado pelo colega.
- Bajado tem uma visão extremamente olindense. É o camarada que melhor interpretou a Olinda, sabe? Eu acho que ele é o melhor representante dessa pintura. Mais até do que Zé Cláudio (expoente da cultura de Olinda), que também fez essas interpretações, do ponto de vista mais erudito - afirma.
"Acho que Bajado ainda se aproximou mais da interpretação bem popular, do caráter do povo, sobretudo do carnaval, das festas, dos tipos populares. Enfim, a vida cotidiana da cidade. Bajado foi o melhor representante para isso", acrescenta João Câmara.
Com recursos escassos, ganha do colecionador italiano Giuseppe Baccaro - encantado com o primitivismo das pinturas e quadros a óleo do pintor - a casa localizada no número 186 da Rua do Amparo, onde passa a viver a partir de 1972.
Rafaela Santana explica que Bajado só passou a ter a obra valorizada quando, em 1973, um crítico de arte do jornal francês Le Monde viu um quadro de Bajado numa exposição de pintores naïf (uma arte original e instintiva, produzida por autodidatas que não têm formação culta na área) e fez um elogio ao pernambucano.
Com o apoio de Baccaro, que virou divulgador e administrador dos seus trabalhos, Bajado passou a realizar as primeiras exposições e o pernambucano ganhou o mundo.
Embora mais valorizado e reconhecido, Bajado não chegou a ganhar dinheiro com a obra dele. Segundo José de Ataíde, Bajado costumava fazer quadros por encomenda e os vendia ao equivalente a R$ 30.
João Câmara observa que "sempre levava alguma pessoa para comprar alguma coisa dele, para poder ajudar".
Neste contexto, Bajado uniu o amor pelo futebol à necessidade de ganhar dinheiro
- Quando eu estava liso, eu fazia o quadro do Santa Cruz (risos), aí eu vendia tudo - diz o artista, em entrevista à TV Viva, em 1984.
Rafa Santana, pesquisadora da UFPE, fala da relação entre Bajado e o futebol
Bajado e futebol
A pesquisadora Rafaela Santana observa que os registros de quadros do acervo de Bajado mais antigos datam da primeira metade da década de 1960. Não se tem registro de quantos quadros o artista fez em vida, nem quantos dedicou à cada temática.
Na sede da Prefeitura de Olinda, 32 quadros de Bajado (doados em 1980 por Baccaro) decoram a sala de reuniões, com acesso restrito a poucos. Desses, dois têm menções ao Santa Cruz.
Na obra de 1972 (acima), é possível ver um bloco carnavalesco desfilando por Olinda. O grupo, inclusive, é anterior ao tradicional bloco tricolor Cobra Fumando, de 1992.
O fato é que em muitos desses quadros Bajado fez questão de retratar uma paixão que carregava consigo.
- Ele era torcedor do Santa Cruz demais, acompanhava. E colocava as cores do Santa Cruz nos quadros dele - afirma José de Ataíde.
- Eu sei que ele torcia pelo Santa Cruz. Ele fazia o retrato dos times. Eu tenho essa recordação dele - complementa João Câmara.
Em outro quadro exposto na Prefeitura de Olinda, uma mulher veste um maiô do Santa Cruz, próximo ao farol da cidade, à beira da praia.
- Bajado era um artista que pintava o que ele consumia. Era o que ele gostava. Eram os blocos que ele gostava, que eram conhecidos, eram as pessoas que ele conhecia. Então, é natural que ele fosse pintar o time que ele torcia e o time das pessoas que ele conhecia - explica Rafaela Santana.
Segundo Rafaela Santana, a maioria da obra está espalhada em acervos privados. A médica e pesquisadora Ana Brito, por exemplo, possui três quadros do pintor. Um deles em referência ao Santa Cruz.
No quadro, Bajado novamente faz um elo entre carnaval e futebol, com um bumba meu boi pintado com as cores do Santa Cruz, seguido em um típico cortejo carnavalesco por outros tantos torcedores corais. "Meu boi é tricolor", diz o estandarte.
- Cheguei a conhecer Bajado na Rua do Amparo. Ele pintava o time do Santa Cruz, porque além do coração, era o quadro que era mais rentável para ele, porque sempre tinha um comprador - recorda Ana Brito.
Mas não eram somente quadros do Tricolor. Muitas vezes sob encomenda, Bajado também pintava telas dos times rivais: Náutico e Sport.
Um deles, presente na exposição "Janelas de Bajado", realizado pela Galeria Marco Zero, trouxe, por exemplo, uma obra que retrata o time do Náutico, em 1969, posterior ao até hoje único time hexacampeão pernambucano (1963-1968).
Em imagens recuperadas pelo acervo da TV Globo também é possível encontrar quadros do Sport.
O Museu de Arte Contemporânea de Olinda (MAC) tem uma tela de Bajado em seu acervo permanente, mas não é sobre futebol. A maioria das obras, em acervos privados, foram dedicadas ao carnaval e, em especial, a Olinda. Bajado faleceu em 15 de novembro de 1996.