Para muitos atletas, completar uma maratona costuma ser o grande objetivo a ser alcançado quando se começa a correr. Mas há quem queira ir além e busque provas ainda mais longas de endurance, como as ultramaratonas, os triatlos do Iron Man ou ainda outros desafios semelhantes. Para entender como fazer esta jornada da melhor maneira, potencializando a performance ao seu máximo e reduzindo os riscos à saúde, o EU Atleta conversou com dois especialistas: o médico do esporte Nemi Sabeh Jr. e a personal trainer Nara Prado. Também vamos contar a história do Gabriel Eufrásio, atleta de provas de endurance de corrida e de triatlo.
1. Antes de começar
Nemi alerta que, antes mesmo de começar a praticar o esporte e treinar para a disputa de provas, é necessário obter a liberação médica para a prática do exercício. É importante avaliar eventuais comorbidades, lesões pré-existentes e, até mesmo, diagnósticos psicológicos ou psiquiátricos para evitar problemas futuros. Da mesma forma, outros testes devem ser realizados para elevar o desempenho físico adequando os treinamentos às particularidades de cada um. Ele sugere três avaliações principais:
- Teste da capacidade aeróbica (espirometria) - O exame espirométrico traz variáveis como as quantidades de oxigênio absorvido, gás carbônico fabricado e esforço executado no processo. Estas informações são avaliadas e, a partir delas, é possível determinar a velocidade do movimento e a frequência cardíaca ideais durante o treinamento para desenvolver a capacidade aeróbica do indivíduo;
- Avaliação da mecânica do movimento, através da videoanálise - Neste processo, a pessoa é filmada executando uma série de movimentos como se equilibrar em um pé só, agachar e correr na esteira. Desta forma, é possível identificar o tipo de pisada, a aterrissagem do joelho e a inclinação do quadril, que compõem a chamada cinemática do movimento. A partir daí, um médico do esporte ou um preparador físico podem orientar a correção do movimento, visando prevenir lesões e melhorar a performance.
- Avaliação de força dos membros inferiores - Apesar de ser um exercício predominantemente aeróbico, a corrida exige força dos músculos, que também exercem o papel de aliviar o impacto dos choques com a superfície sobre o joelho. Os músculos das coxas, quadris e glúteos devem estar fortes e equilibrados. Se um lado for mais forte que o outro, o indivíduo pode acabar lesionando ainda a coluna vertebral.
– Se você conseguir desempenhar a melhor capacidade aeróbica, a melhor força e a melhor mecânica de movimento, você vai ter a melhor performance. A capacidade física é dividida nestes três fatores que formam o corpo ideal para a prova de longa distância. Tendo isto bem apurado, você também vai prevenir lesões. E, se você adquirir uma lesão, você vai precisar parar e tratar para poder voltar ao nível normal – explica Nemi.
2. Do zero aos 5 km e 10 km
Uma vez tendo feito todas as avaliações e recebido a liberação médica, chegou a hora de começar a se preparar. Se você está partindo do zero, comece com caminhadas em ritmo rápido. Em poucos dias, já será possível alternar minutos de corrida com outros de caminhada e após duas semanas, já vale investir em corridas de 10 a 20 minutos. O ideal é que as corridas aconteçam em dias alternados com outras atividades, como musculação, e que seja reservado ao menos um dia semanal para o descanso. Em oito semanas, já é possível realizar uma prova de 10 km. Mas não se cobre. Se após oito semanas você ainda estiver se sentindo confortável apenas nos 5 km, vá no seu ritmo.
- Faça um treino de fortalecimento muscular três vezes na semana;
- Procure um profissional para fazer a periodização do treino de corrida e traçar metas;
- Escolha a primeira prova de 5km com alguns meses de antecedência e faça o que precisa ser feito;
- Depois da primeira prova, faça outras de 5km, e verá chegar o momento de aumentar a distância. Caso sinta-se ansioso para isso, o professor saberá chamar para a realidade se for preciso e, aos poucos, o aluno já estará treinando para os 10km;
- Marque sua primeira prova de 10 km e faça mais algumas até se sentir confortável na distância.
3. Dos 10 km aos 21km
As provas de 21 km são o objetivo final de muitos corredores, por não serem tão desgastantes quanto as de 42 km para cima. Mas é preciso respeitar os processo até chegar a uma meia-maratona, como explica a preparadora Nara Prado.
– Para muitos, a meia-maratona é o alvo ideal, pois a distância não é tão curta quanto provas de 5km e 10km, mas também não é extensa como a maratona, que exige toda umaa programação e dedicação em treinos longos. Chegar no dia da prova é só a ponta do iceberg. A base, sólida e bem preparada, requer muita dedicação e amor pelo objetivo – ela descreve, antes de apontar algumas recomendações de treino:
- O ideal é não tentar a meia-maratona antes de ter alguma experiência em provas de 5 km e 10 km;
- Não adianta querer atropelar as distâncias. Vá com calma, trabalhe constância para não se frustrar, pois quando nosso corpo não está preparado para longas distâncias, a probabilidade de acontecer uma lesão aumenta;
- Quando chegar à planilha dos 21km, os treinos irão aumentar gradativamente, a distância ganhará mais resistência, alternando treinos intervalos, progressivos, treinos de tiros e se prepare que irá chegar os longões de final de semana;
- Não adianta treinar 21 km em todos os treinos. A pessoa faz os 21km na prova, não no treinamento. Nele, a distância vai aumentando gradativamente conforme a periodização do projeto;
- Os treinos regenerativos e os dias de descanso são de suma importância;
- Trabalhe a mente. Meditação, exercícios de respiração e yoga ajudam bastante neste processo;
- Cuide da alimentação. Carboidratos são fundamentais para garantir a energia na corrida e proteínas, para a recuperação e reconstrução muscular após o fim da prova. Um nutricionista esportivo pode orientar sobre a nutrição e a suplementação pré, intra e pós-treino;
- Divida a prova em três partes de 7 km e avaliar as próprias condições nesses momentos ajuda a acertar o pace de forma a não sofrer com desgaste desnecessário.
– Esse é o padrão natural de desempenho de condicionamento físico. Ele vem aos poucos e você vai introduzindo corridas mais longas. Começando por 5km, 10km, para depois ir para uma meia maratona. Dentro deste planejamento, em uma prova de 21km, se for a primeira, a gente costuma dividir a prova em três etapas de 7km, por exemplo. Após os sete primeiros quilômetros você analisa como está, vê o circuito da prova. Se tem subida, se tem descida, até para entender como você vai desempenhar dali para frente – Nemi acrescenta.
Ela aponta também há aspectos importante que vão além do treino físico, mas são igualmente fundamentais na preparação para provas longas e para a evolução feita da maneira correta: a alimentação e o trabalho mental.
- O indivíduo precisa ter a mente sob controle para correr por duas a quatro horas. Este controle mental está associado a uma reabilitação mental. Associação do corpo com a mente traz um equilíbrio muito bom para a pessoa começar a correr. Em caso de a pessoa precisar de algum tratamento psicológico, o psiquiatra ou psicólogo do esporte devem ajudar – ele explica.
Sobre a alimentação, Nemi destaca que ter um acompanhamento multidisciplinar, que inclua a orientação de um nutricionista, pode fazer toda a diferença.
– O nutricionista do esporte ou um médico nutrólogo têm a capacidade de orientar a quantidade e qualidade da comida adequada para o tempo que você vai ficar correndo. Por mais que seja uma atividade predominantemente aeróbica através do oxigênio e da gordura, você também precisa desempenhar a função da força e, para isso, precisa de glicose – acrescenta o médico.
Geralmente são necessários pelo menos 12 semanas de treinamento para encarar uma meia-maratona, mas isso é algo pessoal. Cada pessoa reage de um jeito. E tudo bem se você quiser continuar nas corridas mais curtas. O importante é treinar com regularidade e não parar de correr ou praticar outras atividades físicas.
4. Dos 21km aos 42km
Para quem já corre há algum tempo e já venceu a barreira da meia-maratona, o próximo passo costuma ser buscar os 42,195 km da maratona, a prova mais tradicional do atletismo. Esta evolução vai exigir ainda mais do seu corpo e, para ser bem sucedido, será preciso evoluir no volume dos treinos sem exagerar e sem desequilibrar as diferentes disciplinas exigidas na preparação para a maratona. Para o atleta que deseja se tornar maratonista, é importante manter o foco nos treinamento e estar certo de sua decisão, pois a rotina irá mudar durante os meses anteriores à prova.
– Autoconhecimento é a chave, porque nem sempre querer fazer uma maratona é poder fazer uma maratona. Neste estágio, é importante perguntar se já fez algumas ou várias provas de 21km, como estão a disposição e as suas articulações. É preciso se atentar à qualidade de vida, já que o volume de treino aumenta bastante em relação aos treinos da meia. Agora mais do que nunca, a pessoa precisará de uma equipe multidisciplinar para o preparo, cuidando de cada detalhe do treino, alimentação e também recuperação. Os treinos aumentarão o volume, provavelmente vai ter que acordar de madrugada para dar conta do longão no final de semana - explica a personal trainer Nara.
Nemi ainda aponta para outro tema importante: os treinos de tiro, cada vez mais utilizados por preparadores físicos, devem ser usados com moderação e não podem ser o principal aspecto do condicionamento de um maratonista. O respeito aos dias de descanso também é de suma importância para evitar lesões e continuar evoluindo até o dia de correr para valer.
– Os treinos precisam estar vinculados a treinos longos. Para provas de endurance, alguns preparadores físicos fazem treinos curtos de tiro, voltados para o ganho da força. O problema é que se você treina muito anaeróbico, você deixa de treinar o aeróbico. O que eu recomendo é estar sempre equilibrado na parte da força, para aguentar correr duas, três horas fazendo, e desempenhar um treino aeróbico cada vez mais prolongado – ele defende: – Também é importante não ter a supercompensação, que é alternar o treino longo com um descanso acima de 48h para que o próximo treino seja melhor que o anterior. Neste intervalo você pode treinar força, flexibilidade ou a mente. O treino de tiro não pode ser mais de 10% de semana, senão vai ser como treinar futebol para jogar basquete.
– Esqueça o ritmo ao completar a primeira maratona, a preocupação deve ser finalizar a prova, e finalizar a prova bem e sem lesões – acrescenta Nara.
5. Após os 42km
Para quem já se tornou um maratonista, mas acredita que pode e quer ir além, existem as provas de endurance de longa distância como ultramaratonas, no caso da corridas. Há ainda a possibilidade dos triatlos do Ironman, em que além de correr uma maratona, o atleta percorre longas distâncias nadando e pedalando, ou mesmo outros desafios semelhantes. Nemi ressalta que essa escolha exige bastante do corpo e da mente, mas para quem quiser, o indicado é seguir aumentando os volumes de treino gradativamente.
– Primeiro de tudo, é bom salientar que isto não é saudável. Os atletas de alto rendimento normalmente não são saudáveis. O corpo humano não foi feito para isso. Se você quer fazer uma prova destas, você está escolhendo ser um atleta. É uma escolha sua e não tem problema nenhum, mas você vai precisar adquirir mais força e maior capacidade aeróbica, para você conseguir fazer cada vez mais. É o mesmo processo dos 21km aos 42km com números maiores, priorizando sempre a atividade aeróbica – explica é médico.
Nara acrescenta que, para ultrapassar a marca dos 42 km, ou nadar e pedalar além da maratona, é preciso estar preparado física e psicologicamente. Para isto, ela aponta alguns pontos principais a serem observados. Em geral, são pontos que já deveriam ser prioridade desde a preparação para a meia e para maratona, mas que adquirem ainda mais importância agora, pois o corpo estará sendo levado mais ao seu limite do que antes.
- Ter base de corrida é fundamental. Não pule etapas. Nesta fase, se o corredor já tiver feito a maratona, saberá como serão seus treinos para se tornar ultramaratonista ou um Ironman;
- Dependendo da distância da prova-alvo, o volume de treino semanal poderá alcançar 100 km ou mais;
- O treino de força é primordial, principalmente do core, conjunto de músculos da região abdominal que ajudam na sustentação da coluna;
- Em muitas das provas mais longas há trocas de terrenos em vários trechos percursos, como morros, areia e descidas, então conhecer o percurso da prova é uma boa dica e treinar em terrenos parecidos auxilia;
- O esquema de hidratação e suplementação durante a prova deve ser muito bem feito, com a orientação de um nutricionista esportivo;
- Quando a decisão é pelo Ironman, não se engane, o condicionamento que se tem na corrida é totalmente diferente do condicionamento que terá que ter nadando e pedalando, por isso a periodização do treino deve ser impecável e com um bom profissional.
Um jovem atleta de longas distâncias
Gabriel Eufrásio tem 18 anos e é um corredor de provas de longa distância desde os 14 anos, já tendo corrido maratonas e desafios, mas já com ultramaratonas no horizonte. Antes de a corrida entrar em sua vida, no entanto, ele precisou vencer um desafio maior: a depressão. Quando pequeno, ele sofria com um quadro de hiperatividade e, por conta disto, usava remédios que tiravam a sua energia, inclusive afetando a sua capacidade de brincar com as outras crianças na escolas. Acabou desenvolvendo um quadro depressivo e, aos 10 anos, tentou tirar a própria vida.
A fé ajudou o menino a se manter de pé depois dali e, quatro anos depois, ele teria a experiência que mudaria sua vida, quando seu caminho se cruzou com a da Uphill Marathon. Em uma etapa realizada na Serra do Rio do Rastro, próximo de Cocal do Sul-SC, município de Gabriel, ele foi inscrito por alguns amigos para fazer um treino de 5 km realizado na sexta-feira anterior à prova, mas o surpresa maior viria no sábado.
– Em 2018, teve o Uphill Marathon aqui em Treviso (município na Região Metropolitana de Criciúma, no sul do estado). Rolou um treinão, que o pessoal me inscreveu. Era mais uma brincadeira, eu fui com um tênis de futebol de salão porque não tinha um de corrida. Eu gostei e conversei com o Bernardo (Fonseca, CEO e fundador da organizadora da competição) para participar da prova, mas precisava ter 18 anos. Daí eu falei para ele me esperar lá em cima que eu ia chegar. Peguei uma carona até Lauro Müller (município vizinho), fui correndo e parecia que não terminaria nunca. Até que eu cheguei lá em cima e vi o cronômetro marcando 3h. Eu encontrei com o Bernardo e falei: ‘eu disse que eu vinha’. Foi aí que ele me orientou para me emancipar no cartório para eu fazer as próximas provas – lembra Gabriel.
Gabriel se apaixonou pela corrida e, já no ano seguinte, correu os 42 km da maratona de subida, sendo o atleta mais novo da Uphill Marathon a completar o percurso, aos 15 anos. No início, ele treinava duas vezes na semana por conta própria. Acordava às 4 da manhã, pedalava 18 km até Lauro Müller e repetia o trajeto de 25 km subindo a serra até Treviso. Na volta, descia a serra a pé até conseguir alguma carona no caminho e pedalava outra vez os 18 km até em casa.
A convite de Bernardo, ele participaria do Desafio Samurai (25 km no sábado + 42 km no domingo) da prova no ano passado, mas o evento acabaria cancelado por conta da pandemia. Foi aí que Gabriel decidiu ir além e se preparou para fazer o Desafio Shogun, que inclui todas as provas da etapa. No sábado, o atleta correu os 25 km pela manhã e as provas de 5 km e 10 km na parte da tarde. Já no domingo, ele fez a maratona mais uma vez, entrando para a história da competição como o mais novo a completar este desafio, além de terminar o fim de semana no quarto lugar geral. Para chegar ao resultado, foi preciso fazer mudanças nos treinos e aumentar o volume de quilômetros semanais.
– Antes eu fazia muito treino plano, mas este ano, junto com o Santiago Mendonça, meu treinador, começamos a fazer treinos de tiro em morros. Trabalhei bastante a respiração para melhorar a potência também e fiz bastante treino volumoso, chegando às vezes a 150 km por semana – ele descreve, ao contar também que hoje intercala a corrida com treinos de natação, bicicleta e musculação focada nos membros inferiores.
Hoje, Gabriel também disputa provas de mountain bike, travessias de natação e triatlo. Seu grande objetivo do ano é o Challenge Brasil 70.3, prova que equivale à metade de um Iron Man, com 1,9 km de natação, 90 km de ciclismo e 21k m de corrida. Lá, ele pretende conquistar uma vaga para disputar o Mundial da categoria, que acontecerá em maio, na Eslováquia. Com mais de 70 conquistas em pouco mais de 80 provas nestes anos, ele segue o sonho de ser atleta profissional e, por enquanto, vai se virando como dá para custear os treinos, equipamentos e viagens.
– Eu sofro muito com falta de apoio e patrocínio - lamenta Gabriel. - Tem um mercado e uma academia que me ajudam, mas muitas vezes falta, daí eu corto grama, lavo carro. Já pensei algumas vezes em desistir, mas sempre tenho alguém para me incentivar a continuar.
Fontes:
Nemi Sabeh Júnior é Médico do Esporte formado pela Unifesp e Ortopedista especialista em Cirurgias de Ombro e Cotovelo pela Universidade John Hopkins (EUA). É Médico Coordenador das Seleções Brasileiras de Futebol Feminino e cirurgião-ortopedista do Hospital Sírio-Libanês.
Nara Prado é personal trainer e ex-jogadora da Seleção Brasileira de Handebol. Após se aposentar das quadras, se tornou corredora de rua e já treinou maratonistas para corridas de rua e de trilha.
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