Marcelo Paz, CEO do Fortaleza, fala sobre Vojvoda
A modesta Canindé, cidade no norte cearense com pouco mais de 70 mil habitantes, é um símbolo do que o trabalho no Fortaleza representa para Juan Pablo Vojvoda. Numa manhã abafada de verão, no fim de 2022, o técnico percorreu mais de 100 quilômetros para visitar a Basílica de São Francisco de Chagas. Ele queria pagar a promessa feita pela permanência do clube tricolor na elite do Brasileirão daquele ano.
Acompanhado de Toinha, funcionária do Leão há mais de 50 anos, e Claudio Sexta, roupeiro, Vojvoda atestou sua fé depois de um milagre: o Fortaleza é até hoje o único clube na era dos pontos corridos a virar o turno na lanterna da Série A e mesmo assim escapar do rebaixamento.
Dali em diante, as glórias que viriam colocariam o Laion em outro patamar: título da Copa do Nordeste 2024, vice da Sul-Americana em 2023... E agora desafiando gigantes do eixo Rio-São Paulo e se colocando na briga pelo título do Campeonato Brasileiro. São oito jogos de invencibilidade, com sete vitórias e um empate, e a vice-liderança na tabela neste início de segundo turno.
A conexão de fé, a estreita ligação com funcionários do clube e os novos patamares alcançados ano a ano ajudam a explicar por que é tão difícil tirar Vojvoda do (e de) Fortaleza. O argentino já recebeu diversas sondagens e propostas, mas nem ele, nem sua diretoria pensam em interromper o trabalho que começou em maio de 2021. Ainda mais na atual fase, em que a torcida pode se permitir sonhar com um título gigante e inédito.
O ge dissecou a rotina do técnico para entender não só o sucesso, mas também a estreitíssima ligação entre profissional, clube e cidade, que mantém a chama acesa há tanto tempo. E por que ele desafia o óbvio ao ostentar a quarta temporada seguida de trabalho no mesmo time.
De carne e osso
Vojvoda consolidou o Fortaleza no mapa dos grandes do país depois de o trabalho anterior, comandado por Rogério Ceni, tirar o clube das profundezas da Série C (e depois da B). No início, porém, as pessoas mal conseguiam entender seu "portunhol" acelerado.
– Nós não entendíamos nada do que ele falava, eu só mandava ele falar um pouco mais devagar. Ele era agoniado, acelerado. A gente achou meio estranho, ele dizia que queria morar aqui no CT, uma maluquice que só.
Em 54 anos de Fortaleza e 80 de vida, Toinha nunca havia se deparado com tamanha singularidade no comando técnico do Leão. Em maio de 2021, a maioria dos funcionários do clube sequer sabia pronunciar aquele estranho sobrenome de um mais estranho ainda desconhecido argentino.
Funcionários do Fortaleza falam sobre a convivência com Vojvoda
De carne e osso, Vojvoda chegou ao Brasil sem a família e sem falar português (que dirá imitar o delicioso sotaque cearense). Era um completo desconhecido, vindo de um trabalho no Unión La Calera, do Chile. Falante, alto-astral e até meio maluca, Toinha foi o primeiro contato dele com o clube.
– Eu dizia a ele: "Você não vai sair do CT, não". Se for ali, vai me avisar. Aqui é perigoso, homem. Tenha juízo.
É impossível falar de Vojvoda e Fortaleza sem citar o período em que o técnico morou no Alcides Santos, CT do clube, e fez incursões pelos arredores: viralizou nas redes sociais assistindo a uma pelada amadora de society, e ao ficar trancado para fora depois de uma espiada em um dos shoppings da região. Toinha foi quem lhe abriu a porta na ocasião.
– É perigoso, mas ele ia mesmo – diverte-se Marcelo Paz, presidente da SAF do Fortaleza.
Fio invisível
Pai de Marko, Matias e Santino, Vojvoda se considera um tipo absolutamente normal. Suou as mãos e acelerou o coração ao ver a torcida do Fortaleza ostentar um mosaico com sua família depois de um período turbulento no clube. Ele também não gosta de entrevistas.
Torcida do Fortaleza faz mosaico para Vojvoda
Aliás, detesta. Não por algum tipo de aversão a jornalistas, mas por que acredita que o verdadeiro sentido das coisas mora em um papo informal. Quando soube por Marcelo Paz da produção deste perfil, topou receber a reportagem do ge em sua sala, um espaço misturado entre imagens de santas e desordem de papéis.
Não quis gravador, vídeo e nem microfone. Aos repórteres? Apenas papel, caneta e uma hora e meia de conversa...
No papo, transitou entre sonhos e sacrifícios, como o desejo de ganhar um título de expressão no clube antes de, quem sabe, despedir-se, depois de ter batido na trave com o vice na Sul-Americana em 2023. O gosto amargo do vice piora ao lembrar da única grande dor no futebol: morar longe da família.
Questiona-se sobre essa distância física com frequência, quase todos os dias, e talvez seja essa uma das poucas possibilidades de tirá-lo do Fortaleza: voltar um dia para casa.
Seu caçula, de 12 anos, viu o pai sair de casa aos 4. Hoje, é jogador da base do Newell's Old Boys, de Rosário. São oito anos morando separados. O futebol tirou de Vojvoda a chance de ver de perto a infância de Santino. Dinheiro algum no mundo recupera esse prejuízo. E ele sabe disso.
Assim, sua vida fala menos sobre dinheiro e mais sobre essência, algo que não se toca.
"Futebol é paixão, e de paixão um homem não muda". Esse pensamento, inclusive, figura no famoso filme argentino "O Segredo dos seus Olhos", vencedor do Óscar de melhor filme estrangeiro em 2010.
A vida no futebol e o sucesso no Fortaleza concedem o privilégio a Vojvoda de morar de frente para o mar na Praia de Aquiraz, ouvir um bom rock'n'roll na hamburgueria de Roney & Jana e buscar um risoto de funghi a poucos metros de casa no pacato restaurante Absoluto.
Dispensa as badalações que a capital cearense poderia lhe proporcionar. Em seu carro confortável, vai à missa no Santuário de Fátima, pela manhã, todo dia 13 do mês - quando a rotina lhe permite - e enfrenta o trânsito todos os dias como um cidadão comum.
Vojvoda prefere a discrição. Nos últimos anos, foi capa da tradicional revista Placar, mas se manteve distante de entrevistas exclusivas. É um inquieto por natureza: gesticula, sorri e muda o semblante com facilidade.
O técnico não tem uma justificativa concreta sobre as propostas diversas recusadas nos últimos anos, é como se voltasse sem querer ao tema do fio invisível: diz ter encontrado no Fortaleza uma sensação de pertencimento que não se paga com dinheiro – embora seja muito bem remunerado.
Ainda assim, Marcelo Paz está ciente de que há duas ou três situações que fariam o técnico deixar o clube – há um entendimento informal sobre isso. Vojvoda gosta de cumprir contratos integralmente, e também de pegar trabalhos em início de temporada.
Independentemente disso, o que ele guarda na memória é o mosaico feito pela torcida que lhe causou sudorese e palpitação. Vojvoda não se esquece do ambiente indescritível no pré-jogo do Castelão quando eliminou o Corinthians nas semifinais da Sul-Americana.
Coroado com o título de cidadão cearense, concedido pela Assembleia Legislativa do Estado, se interessa por futebol de base e acredita que os processos no futebol deveriam ser invertidos, com os bons comandantes começando de baixo, gerindo os talentos em formação.
Seu mantra? "Não aceite a crítica de quem não aceitaria um conselho". A frase não foi criada por ele, mas lhe traz paz. Sempre teve uma resposta encontrada dentro do próprio clube. O que virá? O tempo dirá.
Certo é que em cada frase Vojvoda parece querer dizer sempre um pouco mais, como se tentasse conectar com gestos seus pensamentos por vezes desordenados.
Missão de fé
Homem de fé, Vojvoda conserva no norte cearense um refúgio. Para chegar lá, é preciso percorrer cerca de 115km pela BR-020, em um trajeto esburacado e pouco estruturado, em pista de mão dupla. A Basílica de São Francisco de Chagas guarda em sua gruta uma enorme imagem de Nossa Senhora de Fátima. Ali, o argentino faz sua prece em cada promessa paga.
A beleza do Santuário lhe impressiona, só não mais do que a Sala dos Milagres, mas as visitas quase nunca são discretas como ele gostaria. Pelo contrário: causam alvoroço e curiosidade. O ge refez o trajeto de pouco mais de 1 hora e 40 minutos pelo interior do Ceará, com paisagens bem diferentes das praias de Fortaleza.
Ali, a reportagem foi recebida por Caju, influente na região e dono não só da churrascaria do Cajueiro, mas de outros comércios locais com a família. Apaixonado por Vojvoda, o cearense já foi capaz de deixar Canindé para viajar a Montevidéu, no Uruguai, durante a trajetória na Sul-Americana.
Foi Caju quem preparou para Vojvoda, Toinha e Sexta um café da manhã e tentou manter em sigilo a visita do treinador. Tentativa em vão: o segredo não só foi revelado aos presentes, mas também gerou alvoroço e até amargura em quem não foi avisado por Caju.
– A gente saiu para Canindé 6h da manhã. Quando a gente foi chegando lá, já tinham dois carros esperando a gente. Também para proteger a gente, porque era muito torcedor. Pedi para colocar a gente num café bem simples. Entramos no café, foi até a primeira vez que ele comeu pamonha. Pedi café, leite, coisa simples, porque ele é muito simples. Ele só toma leite quente, sabia? E aí quando a gente saiu já tinha um mundo de gente do lado de fora.
– Depois da missa, levei ele nos camelôs do lado, e todo mundo oferecendo coisas para ele levar, e ele não queria, mas acabou levando. E na hora de pagar? Quem disse que alguém deixou ele pagar alguma coisa! Já disse para ele que da próxima vez a gente só vai quando ele tiver tempo para atender aos torcedores, porque a gente sempre foi muito na pressa, porque sempre tem treino depois – diverte-se Toinha.
Um dos surpresos com a visita de Vojvoda foi o Frei Gilmar, reitor da Paróquia.
– Eu lembro que me falaram que ele estava aqui e eu tomei um susto, fui ao seu encontro. Ele é realmente alguém muito acolhedor, transpareceu tranquilidade. Foi naquela época em que o Fortaleza estava prestes a entrar na Libertadores depois de uma situação bem difícil. Eu senti simplicidade, humildade, foi algo marcante – conta, à reportagem do ge.
É inegável a empolgação do frade ao falar do argentino, que foi a Canindé pela primeira vez ao somar os 45 pontos no Brasileirão de 2022.
Vojvoda repete viagem a Canindé em momento que Fortaleza alcança G-4 no Brasileirão
Diferente de todos
Ideias, sensações, futebol romântico... O que poderia ser o reflexo apenas de clichês, Vojvoda colocou à prova na prática ao recusar inúmeras propostas e dar seguimento ao trabalho no Fortaleza, tanto em horas quando foi cobrado pelos maus resultados, tanto quando estava em alta.
Não é exagero mostrá-lo como diferente à maioria. E nem seria justo chamá-lo de acomodado: ao mesmo tempo em que dá seguimento ao trabalho no Leão, também exige melhorias e crescimento para que os bons resultados não sejam exceção, mas sim a regra.
– O desafio dele é vencer nesse projeto. Ele viu o clube melhorar gramado, iluminação, academia, logística de voo, investir em contratação, melhorar a base. E se sente feliz em fazer parte disso. Ele poderia, sim, ir para outros locais. Era justo, legítimo, mas há coisas aqui que o fazem feliz em permanecer e pertencer, extremamente motivado – segue Paz, um dirigente que, assim, como Vojvoda, é um oásis de bom senso no futebol brasileiro.
De 2021 para cá, foram muitas idas e vindas pela região do Pici e três renovações de contrato. O vínculo atual vai até o fim do próximo ano, com uma galeria de duas taças da Copa do Nordeste (2022 e 24) e um tricampeonato estadual (2021, 22 e 23). Entre os feitos, estão também a classificação inédita à Libertadores (indo até as oitavas na primeira participação), o vice-campeonato na Sul-Americana (2023) e a semifinal da Copa do Brasil (2021) nos últimos anos.
– Trouxemos o preparador de goleiros, o psicólogo, garantimos que o elenco vai ter mais investimento para brigar por coisas maiores. Fazemos por ele. Quis que o campo tivesse o mesmo nível, porque havia um desnível, ajeitamos o campo. Quer iluminação para treinar à noite? Colocamos. Tudo é combinado, tudo a gente busca fazer. Um bom profissional se paga. Ele traz retorno financeiro ao clube. Ele é bem remunerado, sim. E tem que ser, porque ele entrega muito. Mas o Fortaleza está muito satisfeito com isso – completa Paz.
– Ninguém imaginava que seria tudo isso. Não dava para prever. Acho que nem ele mesmo imaginava – resumiu o dirigente.
Fio que não se rompe
O fio invisível que conecta Vojvoda e o Fortaleza quase se rompeu. No auge do desespero de 2022, da busca por uma solução para a situação, no Z-4 durante todo o primeiro turno da Série A, Marcelo Paz pensou em demiti-lo. Afinal, "pensar é permitido", admite o CEO.
Paz, no entanto, não precisou refletir tanto para entender que a solução estava logo ali, ao alcance da mão. Era o oásis de lucidez em pleno funcionamento.
– Claro que eu pensei em trocar. Pensar é permitido. Mas é quando você para e pensa. Eu vou trocar por quê? Só para dar uma satisfação? Quem vai vir? Vai fazer melhor do que ele? Quem vai vir conhece esse grupo? Porque não é demitir. É resolver o problema. E resolver o problema é o time voltar a ganhar e sair daquela zona incômoda. E quando a gente pensava um pouquinho, a pessoa mais pronta pra resolver o problema era ele mesmo. Não era mais ninguém. A decisão se provou acertada.
Embora de primeira pareça uma decisão racional, o lado emocional também pesou na decisão do presidente. Era o fio invisível visível a olho nu.
– Os funcionários do clube, principalmente os que têm mais tempo, eles têm uma sensibilidade muito grande. E a gente olhava no olho deles e eles diziam "não tira ele, deixa ele aqui". E alguns verbalizavam isso. Os funcionários são um termômetro. As pessoas que estão no clube há muito tempo, 15, 20, 30 anos, elas têm uma sensibilidade do vestiário, do ambiente, né? Eu não estou nem dizendo uma sensibilidade técnica. De "ah, se o time está jogando bem, está jogando mal, tem que botar fulano ou sicrano". Mas a sensibilidade de ambiente. E a gente sentia no olho.
Não é possível precisar quanto tempo mais Vojvoda estará no comando do Fortaleza, tampouco os títulos que virão. O certo é que o Leão vive um momento mágico sob o comando do argentino, que estará para sempre em sua galeria de maiores.
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