Abre Aspas: Ramires curte aposentadoria, revela depressão e agradece a Abel Ferreira
Nem venha com essa história de que jogador de futebol morre duas vezes perto de Ramires. A experiência dele está longe disso. Os quatro anos de aposentadoria não deixam dúvidas: deixar os gramados foi quase uma ressurreição, um passo necessário para quem via os dias e horas passarem e agora deixa o tempo andar bem devagar pelas ruas de Barra do Piraí.
A companhia de família e amigos na cidade natal no Sul do estado do Rio de Janeiro só deu a comprovação de que a decisão precoce, ainda aos 33 anos, quando defendia o Palmeiras, foi certeira. Uma mistura de dever cumprido como volante multicampeão mundo afora com a descoberta de prioridades que a urgência do futebol o obrigava a deixar em segundo plano.
"Ter encerrado a carreira foi a melhor coisa que eu fiz e não me arrependo, falando de coração"
Basta um passeio pela casa do ex-volante em Barra do Piraí para entender que os pouco mais de dez anos de carreira foram suficiente para deixá-lo realizado. Fez amigos, fez dinheiro, fez história. Tanto que foi só a depressão bater à porta para Ramires não ter dúvidas em dar um basta.
Ídolo no Benfica e no Chelsea, reverenciado na China e com passagem marcante também pelo Cruzeiro, viu o choque de realidade no retorno ao futebol brasileiro em 2019 assustar. Fosse pelas cobranças acima do tom, fosse pelo autoconhecimento de que o corpo já não respondia como antes, decidiu pelo adeus e contou com a mão estendida de Abel Ferreira para que o fim fosse como imaginado:
"Já estava em um estado de ansiedade e entrando até em depressão. Depois, eu saí, procurei um psicólogo, comecei a conversar, a me expor e a vida melhorou"
- O Abel é um cara que me trouxe paz para a decisão que eu vim a tomar de parar e encerrar a minha carreira. E me deu a oportunidade de encerrar a carreira de maneira digna e bacana.
Os jogos finais sob o comando do português e o apoio de psicólogos nos anos seguintes são fundamentais para a convicção com que Ramires encara o tema. O mesmo vale para o momento mais delicado da carreira: a derrota por 7 a 1 para a Alemanha.
Com duas Copas do Mundo nas costas, o ex-volante foge ao padrão comportamental dos ex-companheiros e fala sobre a pior derrota da Seleção sem amarras:
"Nós éramos os 23 que representavam uma nação e quem fez toda essa nação passar essa vergonha mundialmente fomos nós. Temos que ser homens, sim, de assumir"
- É uma ferida que ela não fecha nunca. Mas através de conversas, de procurar ajuda para poder falar, conversar, deixar sair algumas coisas para ter essa maturidade de falar ao ser perguntado.
Hulk tem 38 anos. Thiago Silva, 40. Fernandinho, 39. Fabio, 44. São todos contemporâneos de Ramires. O que significa que o ex-jogador do Cruzeiro, Benfica e Chelsea poderia, de repente, ainda estar em atividade. Aos 37 anos - mesma idade de David Luiz, ex-companheiro de Chelsea, autor de um gol pelo Flamengo nesta semana -, o cidadão ilustre de Barra do Piraí, sinceramente, nem pensa mais nisso.
Se ganhou peso e perdeu as emoções que somente uma vida num esporte de massa e paixão podem proporcionar, ganhou paz interior na aposentadoria.
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Ficha técnica
- Nome completo: Ramires Santos do Nascimento
- Nascimento: 24 de março de 1987, em Barra do Piraí, RJ
- Carreira: Joinville, Cruzeiro, Benfica, Chelsea, Jiangsu Suning e Palmeiras. Disputou duas Copas do Mundo pela Seleção (2010 e 2014). Fez 52 jogos e 4 gols pelo Brasil.
- Principais títulos: Estadual mineiro (2008 e 2009). Primeira Liga pelo Benfica (2009/2010) e Taça da Liga (2009/2010). No Chelsea, foi campeão da Liga dos Campeões (2011/2012), da Liga Europa (2012/2013), da Copa da Liga Inglesa (2014/2015) e da Premier League (2014/2015). No Palmeiras, conquistou Paulista, Libertadores e Copa do Brasil, todos em 2010. Na Seleção, a Copa das Confederações em 2009. Medalha de bronze nas olimpíadas de Pequim. Vice-campeao da Libertadores de 2009 pelo Cruzeiro.
ge: Para começar, temos que te perguntar como está essa vida boa de aposentado? Já está acostumado?
— Eu lembro que na época, quando eu falava que ia aposentar com essa idade, a galera ficava assustada. Era muito novo, diziam que eu ia enfrentar uma dificuldade, porque tem gente que chega numa certa idade e tem essa dificuldade. Mas eu nunca tive problema de lesão na minha carreira e comecei a ter muitos. Vi que o corpo dava sinais de que não daria para continuar. Estou curtindo, cara. Curtindo a família, os amigos, a cidade, meus filhos... Posso dizer que sou feliz na minha aposentadoria.
Viver ainda jovem coisas que a carreira não te permitiu viver foi um dos fatores que te levou a tomar essa decisão tão precocemente para os padrões?
— Com toda certeza. Tem uma galera que chega e fala: "Quando você parar lá pelos 40, 30 e poucos, você curte a vida". Mas eu pensava que há coisas que eu não conseguiria viver, principalmente com os meus filhos, depois dos 40. Tenho passado muito mais tempo com eles e tempo de qualidade. Quando eu estava jogando ainda, eles iam me visitar e tinha concentração, jogo, quando chegava já era hora de levar para o aeroporto. Agora, é um tempo de qualidade. Ter encerrado a carreira foi a melhor coisa que eu fiz e não me arrependo, falando de coração. Toda vez que eu passo na rua a galera me cobra o motivo de eu não ter jogado mais tempo, mas não dava realmente. A cabeça não estava mais voltada, o corpo reagia de uma forma diferente. Para tomar essa decisão, eu fiquei neste processo de treino, jogo, concentração, família... Coloquei tudo na balança, demorei um tempinho, mas quando tomei a decisão já estava consciente e convicto de que era o que eu queria fazer.
Você falou que foi uma decisão demorada. Foi um conflito entre os prós que o futebol te proporciona e também os contra, como cobrança e tudo mais? Esse processo durou quanto tempo na sua cabeça?
— Eu sempre fui muito competitivo. Então, em relação ao futebol, todos os clubes que eu passei foi sempre para disputar posição em uma boa forma, em boas condições. Sempre fui muito fiel ao que era o meu corpo. Já quando eu vim para o Palmeiras, comecei a ter uma série de lesões e não consegui mais desenvolver como desenvolvia antes e comecei a pensar em uma aposentadoria ou ir para outro lugar. Na minha cabeça, eu estava começando a ser um peso para o clube por não estar jogando, por salário...
— O futebol para mim nunca foi só financeiro. Eu saí de Barra do Piraí, fui para Joinville, ganhava 80 reais e nunca fui mudando de clubes por dinheiro, mas sempre por oportunidades de maior visibilidade. Esse processo durou cerca de dois meses amadurecendo a ideia na minha cabeça. Eu pensei, mas ficava naquela: "Será que é o certo? Será que eu estou me precipitando?". Fui amadurecendo, fui pensando, conversei com a minha mãe, com o meu irmão, e eles falaram que estariam junto comigo de qualquer maneira. E a decisão que eu tinha para tomar era mesmo de encerrar. Quando o Abel chegou ao Palmeiras, eu tive a oportunidade de retomar, mas já estava com aquilo na cabeça de parar e não jogar mais.
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— O Abel me perguntou se eu queria sair pela porta da frente ou de trás do clube por não ter jogado. Em todos os lugares que eu passei, cheguei e saí pela porta da frente e queria isso também no Palmeiras. Ele começou a me dar oportunidade, mais minutos de jogo e eu comecei a recuperar a competitividade. O jogo é totalmente diferente de treino. Foi um processo de jogar 45, 60, 90... E quando eu joguei os 90 minutos de um segundo jogo, eu já tinha um acordo para sair do Palmeiras. E minha ideia já era realmente de encerrar. Ainda fiquei um tempo parado e pensei: "Parei mesmo, parei real. Não tem como mais ir treinar em lugar nenhum". Foi quando anunciei a aposentadoria com o coração bem leve.
Houve algum momento determinante que te deu o clique de parar?
— Não cheguei a ter conversas com pessoas fora da minha família. Eu tinha uma amizade muito forte com o Luiz Adriano dentro do clube, nós conversávamos e cheguei a comentar com ele, que disse para não fazer isso. Comentei que minha cabeça já não estava voltada para o futebol, aconteceram várias coisas na minha vida pessoal. Ainda assim, continuei um pouco mais e depois a conversa foi em família e com amigos mais próximos. Todos disseram que ainda tinha lenha para queimar, mas não tinha como.
Você falou do Abel e na ocasião ele falou de forma muito carinhosa sobre você e criticou muito a pressão das redes sociais. Ele termina dizendo que o homem Ramires é maior do que o jogador. O quanto esse choque de realidade do ambiente até hostil do futebol brasileiro pesou na decisão?
— Não me surpreendeu por ter vindo do Abel. É um excelente treinador, uma pessoa extraordinária que eu pude conhecer no futebol. Até quando eu saí, ele me disse: "O que você vai fazer? Não vai ficar bebendo ou fazer bobeira". Me chamou para fazer parte da comissão técnica, ficar por perto, ter uma ocupação, mas ele viu como que eu estava. Eu voltei para o Brasil com vontade de jogar um bom futebol e as coisas não foram do jeito que eu imaginei. Lutei bastante para fazer o melhor ali dentro. As redes sociais acabam ultrapassando muito o limite. Você está trabalhando e recebe ameaças. Contra mim, não tem problema, porque eu estava sempre rodeado de seguranças. Minha preocupação maior sempre foi a família. Minha mãe, meus irmãos, meus filhos... Eles conhecem a família toda do atleta e mandam nome dos filhos na rede social ameaçando. É quando você para e fica impotente, sem ter o que fazer. Você vai jogar em Porto Alegre e sofre ameaça envolvendo seu filho em São Paulo. Eu parei e vi que não era o caminho que eu queria seguir. O Abel é uma pessoa que eu tenho que agradecer muito. Se eu tivesse saído do Palmeiras antes, quando estava no banco, sem jogar, poderia ter sido de uma maneira muito ruim. Quando eu saí, os torcedores já falavam que era a hora que eu estava bem. Mas a decisão não foi naquela hora, já tinha sido tomada lá atrás. Conversei com o Abel, cheguei até a me emocionar, só que não tinha nem cabeça mais para seguir na comissão dele. Neste momento, já estava em um estado de ansiedade e entrando até em depressão. Depois, eu saí, procurei um psicólogo, comecei a conversar, a me expor e a vida melhorou. É preciso olhar para o lado humano do atleta, os clubes deveriam olhar um pouco mais e dar esse suporte. É uma situação que vamos ver muitos atletas passar por ter encerrado a carreira antes não porque quis, mas por lesão, por questionamentos e no meu caso não foi diferente.
— O Abel é um cara que me trouxe paz para a decisão que eu vim a tomar de parar e encerrar a minha carreira. E me deu a oportunidade de encerrar a carreira de maneira digna e bacana.
Você chega na pandemia também, num cenário que colaborou para isso?
— Não peguei público em estádio. Quando cheguei, logo veio a pandemia, começamos a treinar separado. Quando os torcedores voltaram, a cobrança no estádio para mim é normal. Eu passei por Portugal e Inglaterra, onde tem a cobrança também, mas é totalmente diferente. Depois na China, a realidade era ainda mais diferente de tudo o que eu vivi. Cheguei a pensar: "Vim fazer o que aqui?". Mas foi um divisor de águas na questão financeira. O que eu fui ganhando na China, não ganharia em lugar nenhum, ainda mais como volante. Já tinha uma situação boa no Chelsea, mas na China estabilizei legal para ficar tranquilo. Quando eu decidi minha situação na China, paguei para sair e vim para o Brasil, meu pensamento nunca foi dinheiro. Eles queriam renovar comigo lá. Tive a proposta do Palmeiras, achei muito boa, mas tinha a esperança de que encontraria um cenário diferente no ambiente do futebol brasileiro. Fui para um clube com uma estrutura espetacular, que fez de tudo para nos deixar muito à vontade. O CT era muito bom, as viagens tranquilas e não tenho o que falar do clube, só agradecer.
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Qual é o diagnóstico deste ambiente do futebol brasileiro que te incomodou em comparação ao que você viveu anos fora do país?
— É um ambiente em que o alívio vem com a vitória, você não tem uma alegria. Somos atletas, sofremos a pressão diariamente, é óbvio, mas as ameaças fora de campo... E não aconteceu só comigo, aconteceu com o William, o Cássio, vários atletas, e isso é algo muito complicado. Você não tem paz para fazer o melhor em campo pelo torcedor. Futebol são duas equipes, não vai dar empate sempre, tem que ter vencedor. Um vai ficar mais feliz e outro mais triste, mas confundem muito a questão do: "Eu ganhei, eu vou te zoar. Eu perdi, eu não posso ser zoado". Já passam do limite para uma agressão ou coisa do tipo, o que não é necessário. Não tem o vida que segue. Eu visto a camisa do meu time se ganhar ou perder, vou torcer sempre. Acho chegamos ao ponto de ver algumas situações, algumas cenas lamentáveis de invasão ao CT e tudo mais. Fica aquele pergunta: "O que estão esperando acontecer para tomar uma providência?". Com os torcedores, já acontece há bastante tempo. Eles brigam e se matam por futebol e nem vão para o estádio. Essa coisa de invasão ao local de trabalho também pode acontecer alguma coisa com torcedor, atleta, dirigente... E paro e fico me perguntando: "Por quê?". Não tem necessidade. A galera precisa botar a mão na consciência, repensar e entender que o nosso futebol é muito rico, as festas são lindas, os estádios cheios e isso é o que deve ficar. Não deve ser manchado com briga pós-jogo, antes de jogo, morte de torcedor, pedra, tiro em ônibus. Isso não faz parte do futebol.
Tem um vídeo que viralizou recentemente em que mostra uma linha do tempo da sua carreira, do fim para o começo, um Ramires novinho no Joinville... O que passa pela sua cabeça quando vê isso?
— É fogo! É fogo! Eu vi esse vídeo e brinquei com a minha noiva de que o tempo fez bem (risos). Toda foto que vai mostrando, passa um filme na cabeça dos clubes, dos companheiros, das poucas amizades que você leva para vida, mas dá para conhecer bastante gente.
Tem também o lado da disciplina, do controle de peso... Você falou que a psicologia te ajudou. A aposentadoria também é algo libertador?
— Nunca tinha feito psicólogo na carreira, o futebol me ocupava dia e noite. Assistia jogo o dia inteiro, treinava, estava sempre ligado. Mais para o final que eu comecei a pensar um pouco mais: "Será que eu tenho que conversar, procurar um psicólogo?". Porque de repente se você conversa com a pessoa errada e isso vaza, é mais problema ainda. Eu sempre foquei no futebol. Um ano, dois anos depois da aposentadoria, quando comecei a ficar para baixo pela ausência da rotina, me fez falta e foi rápido. Hoje, para mim o bom é poder deitar a hora que eu quiser, levantar a hora que eu quiser... Eu faço os meus horários da maneira que eu gosto e que tenho que fazer. O futebol te cobra muito. Se você chegar um minuto atrasado, já vem crítica, desconto no salário. Eu faço o que quero e como quero. Sou aqui de Barra do Piraí e vim para cá por amar essa cidade demais. Não tem como eu sair. Já morei em vários lugares, mas voltei pela minha família, por amar estar aqui com meus amigos, poder sair a hora que eu quiser de casa. Se chegar sem avisar, não me encontra em casa. Fico lá no bairro Boa Sorte, onde eu cresci. Não fico parado dentro de casa. O que eu mais tenho curtido bastante e isso de poder deixar as coisas acontecerem do modo que eu quero. Tenho uma companheira espetacular que me ajudou bastante também no pós-carreira. Eu tinha uma rotina de atleta de alto nível com treinos, jogos, concentração, vídeo, e hoje estou sem fazer nada. É normal entrar em depressão se ficar parado. Aí voltei a treinar, montei um time para jogar no fim de semana no terrão, e é legal o carinho das pessoas. Eles falam de onde levei o nome de Barra do Piraí, de ser o orgulho da cidade, as crianças falam que querem ser o novo Ramires. E eu falo que tem que estudar direitinho, respeitar os pais, e assim a gente tenta a ajudar na formação de novos cidadãos de bem.
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Você comentou que o Abel te aconselhou a ter cuidado com a "cervejinha". Por que dessa preocupação?
— Ia ser um mundo diferente. Como eu ele também jogava, ele sabe que é diferente quando a gente vai se aposentar. Eu saí de rotina de treinos, jogos, viagens, para ficar sem fazer absolutamente nada. O cuidado que ele fala é porque houve vários exemplos de ex-atletas que acabaram ficando em uma situação muito vulnerável a bebida e outras coisas. Eu falei com ele que não era o meu pensamento, que eu queria mesmo era estar com a minha família e ele podia ficar despreocupado que não me veria bêbado por aí. Não é isso que eu quero para o meu pós-carreira. Tive uma carreira bonita e agora quero viver dando exemplo para meus filhos, netos... Quero viver bastante tempo para ver muita coisa legal deles também.
Você morou em Lisboa, Londres, cidades turísticas. Deu para aproveitar bem os locais que viveu?
— Os lugares que eu morei posso dizer que aproveitei bem. Os lugares que eu fui jogar, não aproveitei nada. Ucrânia, Rússia, África... São lugares que eu fui jogar e não conheci. Tem o carimbo no passaporte, mas não conheço nada. O jogador vai aos lugares e as pessoas acham que está saindo em Londres, conhecendo, passeando, mas não dá tempo para fazer isso. Tem horário para tudo. Aí, quando tem uma folga, você não vai sair, quer ficar em casa.
Já são quatro anos de aposentadoria. Deu tempo para olhar para trás e entender, valorizar tudo o que você construiu no futebol com Copas do Mundo, títulos em clubes gigantes?
— Sempre fui muito tranquilo. Nunca fui planejando ganhar isso, fazer aquilo... Eu fui aproveitando as oportunidades e hoje eu paro, penso, mas é mais algo das pessoas que chegam e falam: "Cara, você ganhou Champions, jogou Copa do Mundo...". Mas eu chego e digo que já passou para fugir do assunto. Eu sou mais tranquilo sobre elogios. Mas tem dias que eu paro e fico assistindo jogos, gols, coisas que eu fiz quando jogava. Tem coisa que eu olho e nem lembrava. É tudo tão automático. Treino, jogo, treino, jogo. Não dá para ter muito a dimensão do que está acontecendo. Hoje, já aposentado, eu vou na minha sala de troféus ali e vejo que realmente foi uma carreira bonita. Quando eu comecei, queria comprar uma casa para a minha mãe, mas foram aparecendo as oportunidades. Uma coisa que o Mardela, coordenador da base do Joinville, me falou é de que o cavalo arreado só vai passar uma vez. Eu entendi que tinha que montar em toda oportunidade e sempre fui aproveitando. Era para ir lateral? Eu ia. De ponta? Eu ia. De meia? Eu ia. Acho que só não joguei no gol mesmo (risos). Em todas as posições, eu tentei ajudar. E para mim foi bom também para sempre jogar.
E se fosse para você dar um conselho para algum garoto que está começando no futebol, qual seria? Você teve seus momentos de deslumbramento?
— Nunca tive essa fase de deixar subir para cabeça. Quando você atinge um certo patamar no futebol, são muitos tapas nas costas, mas existe sempre os altos e baixos. De uma fase excelente, você já não joga tão bem e vem as pancadas. É preciso saber lidar com isso. Para os meninos mais novos, eu passo os processos. Ninguém vai virar um Ramires do dia para a noite. Há etapas importantes e nunca deixar subir para a cabeça. É muito difícil por ser uma realidade que você sai da pobreza extrema para Londres, Paris, clubes grandes... A base de tudo é uma família estruturada, com os pés no chão, e que não deixam o menino se deslumbrar. Eu sempre tive família e amigos que era para onde eu sempre voltava na minha carreira inteira. Todas as minhas férias no meio do ano foram aqui. Eram minhas férias, mas eles saiam do trabalho para ficarmos juntos. Isso foi importante para eu não ter esse deslumbramento. O futebol me trouxe muitas coisas boas, sou muito grato, mas nunca deixei subir para a cabeça. É assim que eu quero viver para o resto da vida.
Sua trajetória foi marcada por sucessos muito imediatos na maioria dos desafios... Joinville, Cruzeiro, Benfica, Chelsea, China, Seleção. Como lidar com o sucesso para que ele não seja momentâneo?
— Acho que vai muito de manter os pés no chão, manter a humildade, saber ouvir, estar ao lado de pessoas de bem... Você começa a distinguir as pessoas, quem está ou não está com você justamente nestes momentos de altos e baixos. Quando você está bem, são muitas pessoas. Lembro que no Joinville era mais a família e poucos amigos. Quando eu fui para o Cruzeiro, ainda tinha uma desconfiança, várias coisas que você escuta pelo caminho, e ao mesmo tempo você percebe quem te fala coisas positivas e te incentiva. Nunca deixei que a fama por chegar ao Chelsea... De Barra do Piraí até o Chelsea, foi uma mudança brusca, mas com as mesmas pessoas em um período de cinco anos. Foi muito rápido. É o que eu te falei: pintou oportunidade, fui. Quando me vi no Chelsea, me vi com muitas pessoas que eu nunca tinha visto se aproximando, falando que era amigo, e eu firmava com os meus amigos de verdade e minha família. Isso foi o fundamental para me manter tranquilo. Eu aprendi muito no Chelsea. Quando eu cheguei, tinha o Droga, Petr Cech, John Terry, Ashley Cole, Anelka... Eu jogava com esses caras no vídeo game. Sentei no vestiário, passava um e eu falava: "Caraca!". Não falava inglês, o Alex zagueiro me ajudou muito e eu vi que eram os caras muito maneiro. Drogba, Terry, Lampard... Eu pensava: "Como é que pode, estou aqui com os caras do vídeo game e eram os caras do Joinville que eram uma perna danada" (risos). No Cruzeiro, tive a ajuda do Fábio, Léo Silva, Ricardinho, todos com uma humildade danada. Sempre procurei observar e escutar muito para absorver as coisas boas e ter uma carreira vencedora como a deles. São pessoas de muito bom coração e que me ensinaram muito. Na Copa de 2010, eu era o mais novo. São coisas surreais. O Juan me ajudava muito, Lúcio, Júlio César, Maicon...
Por falar em Seleção, você sente que a de 2010 era mais forte e preparada para ganhar do que 2014?
— Eu acredito que sim. Converso muito com meus amigos. Se você for ver, quando a Alemanha fez uma renovação, sempre manteve os mais velhos. Na Copa de 2010, saímos na frente contra a Holanda, tivemos duas jogadas em que sofremos os gols, porém os jogadores que estavam ali ainda tinham idade para jogar mais Copas. O grupo era forte. Sempre foi importante em Copas do Mundo ter essa mescla para entender o que é a Seleção, mas renovação ali foi muito brusca, com muitos jovens, uma responsabilidade grande. Eu estava na arquibancada naquele jogo com o Elano por estar suspenso. Quando o Robinho faz o primeiro gol, estávamos melhor e tivemos uma chance com o Kaká. Pensei ali que íamos ganhar. Era um grupo muito confiante e unido, mas é futebol. Poderíamos matar a partida, não fizemos, e sofremos dois gols. Me marcou muito naquela Copa por ser o mais novo. Você chegar e ver seus ídolos como Gilberto Silva, Juan, Lúcio, Júlio Cesar, todos chorando muito, muito mesmo, foi algo de partir o coração. Ficou marcado para mim. Foi uma situação sinistra. Tinha o Felipe Melo, que querendo ou não, a Seleção ficou anos para substituir o Gilberto Silva e ele na época era quem poderia ocupar esse espaço.
A expulsão dele é muito marcante nesta partida. Você falou que o vestiário estava abatido. Como foi a postura dele e com ele?
— Não houve cobrança, não. O Felipe foi um dos que mais chorou, tanto ele como o Júlio Cesar. No caminho do estádio para o hotel, ele ligou para os parentes e chorava mais e mais. No jantar, houve um discurso do Dunga muito emocionado falando do orgulho que tinha daquela Seleção e daqueles atletas. Era um clima de despedida de todo mundo. Em momento algum houve cobrança de que o Felipe Melo nos desclassificou. Perdemos todos e ficamos todos chateados. A gente no futebol fica muito falando do "se"... Se eu não tivesse recebido o cartão amarelo, se eu tivesse jogado. Depois, o "se" vem de várias maneiras. Foi um jogo que ficou marcado. Vivi isso na Seleção e no Chelsea na Champions, que também tinha muitos jogadores de saída. Era um grupo que estava atrás daquele título. Em 2010, quando perdemos, foi devastador. Na Champions, deu tudo certo e ficava aquela sensação: "Como seria se tivéssemos ganhado a Copa? Como seriam nossas vidas?". No Cruzeiro, perdi uma Libertadores e fui massacrado, chamado de pipoqueiro, para depois lá na frente ganhar a Champions. As coisas no futebol são difíceis de entender.
Os cartões amarelos acabaram te tirando de duas das principais partidas da carreira. Como foi encarar do lado de fora?
— Quando fomos para Munique, usávamos um terno e eu lembro que eu botava e tirava a gravata toda hora. Eu pedi para o David Luiz ajustar e ele me disse: "Cara, mas já está toda arreganhada". E eu achando que estava sufocado. Se eu fosse para jogar, estaria mais tranquilo. Sem jogar, é horrível. Quando levamos o gol já aos 34 do segundo tempo e depois empatamos. Aí eu pensei que ia dar bom. Mas o Drogba faz um pênalti na prorrogação e o Robben perde. Nos pênaltis, o Mata perde o primeiro e depois do Drogba faz o gol do título. Era impossível. A ficha não cai. Anos atrás, eu estava jogando no terrão com amigos e depois era campeão da Europa. Foi algo surreal.
Como era o envolvimento do Abramovich no dia a dia?
— Ele ia bastante. Quando eu cheguei, as pessoas falavam muito bem dele, falou que levava para o iate dele, mas eu não peguei essa fase, não (risos). Às vezes, estávamos no DM tratando, ele entrava e cumprimentava todo mundo, ia ao vestiário depois dos jogos. Era bem presente com a distância entre chefe e funcionário. Quando vinham os seguranças, já sabíamos que ele estava chegando.
A premiação em Munique na final da Champions foi dobrada?
— A gente estava esperando isso aí, né?! Vai que dava um iate para cada um (risos). Mas foi uma premiação muito boa para cada atleta. Na época, foi uns 360 mil libras para cada um. Foi depositado para todo mundo e não demorou muito, já na semana seguinte.
Voltando para a Seleção, a cena do vestiário de 2010 foi mais impactante do que em 2014?
— Não. Em 2014, foi bem mais. Poxa, 7 a 1 em casa foi uma coisa... Eu entrei no segundo tempo, eu e Paulinho, estava 5 a 0 para eles. Quando começa, até temos algumas oportunidades, umas três, mas é difícil. Foi uma derrota muito difícil. No intervalo, você ir para o vestiário com 5 a 0 para o adversário, jogando em casa, da maneira que aconteceram os gols, foi algo marcante também. Um olhava para o outro e pensava: "O que está acontecendo?". Ninguém falava nada, só se olhava. Thiago Silva desceu, falou algumas coisas, o Felipão também falou. Todo mundo tentou. É algo que desestabiliza. Quando você leva um gol já fica meio desestabilizado para empatar por algum momentinho. Nessa partida, nós não conseguimos fazer isso. Tomamos um gol, outro, outro, outro, outro. Não é possível, era o primeiro tempo ainda. Quando fomos para o vestiário, era preciso buscar forças. Se eles fizeram cinco, nós também poderíamos, mas é muito difícil.
Neste ambiente, um silêncio sepulcral, o Felipão vira e fala: "Ramires, você vai entrar!". Não passa uma sensação de "o que eu vou fazer?".
— É exatamente isso. Foi isso que eu pensei. O jogo está 5 a 0 e na minha cabeça ele iria chamar atacantes para jogar. Ele chamou o Paulinho e eu. Tanto que quando ele fala, a gente se olha tipo assim: "O que nós vamos fazer aqui?". Nos abraçamos e falamos, vamos fazer o melhor, correr até o final, tentar chamar esses caras... E corremos, pegamos, marcamos, mas com 5 a 0 já é complicado. Você faz um gol é 5 a 1, 5 a 2... É uma subida no morro. Quando você vai ver, está sete. Joga aqui, joga ali, mas não tinha o que fazer. Infelizmente, todos os envolvidos neste jogo e que estavam na Seleção em 2014 vão ficar marcados pelo resto das vidas. Não acho legal alguns atletas que estavam lá querer tirar proveito da situação, falar coisas que não existiram. Todos têm que ser homem de chegar e assumir: "Eu estava ali, eu entrei, eu joguei, isso faz parte da minha carreira". Quando eu for contar a minha história para os meus filhos, eu vou contar isso porque faz parte da minha história. É uma situação bizarra, que ninguém queria, mas aconteceu.
Essa é uma cicatriz que muitos dos seus companheiros se recusam a falar, se afastam, mas você encara com muita maturidade e naturalidade. Como é esse tema entre vocês?
— Esse é um impacto que ficou para a vida de todos. Não foi só para nós, atletas. Acredito que foi algo que impactou a nós, atletas, ao torcedor, a imprensa... Foi algo mundial e principalmente para os brasileiros. Nós éramos os 23 que representavam uma nação e quem fez toda essa nação passar essa vergonha mundialmente fomos nós. Temos que ser homens, sim, de assumir. É uma ferida que ela não fecha nunca. Mas através de conversas, de procurar ajuda para poder falar, conversar, deixar sair algumas coisas para ter essa maturidade de falar ao ser perguntado. Eu no começo também não gostava de falar, não me sentia à vontade, confortável para falar. Às vezes, a maneira que você coloca alguma coisa pode prejudicar um ou outro, mas ali estava todo mundo comprometido a fazer o melhor. É uma situação que nenhum atleta quer passar no clube, na Seleção, então, nunca. Esperamos sempre dar alegria para o nosso povo. Acabou que não conseguimos e saímos da maneira que saímos, com uma goleada histórica e que vai ficar para o resto de nossas vidas. Não tem como apagar o que aconteceu. É uma ferida aberta que não cicatriza. Se passar o jogo na TV, eu não assisto. É difícil eu assistir jogo meu normal, esse eu não assisto de maneira alguma.
Foi um jogo que você trata como o ápice de pressão que vivida dentro do futebol?
— É difícil falar porque eu não consegui assistir ao jogo depois. Vi os gols, o jogo inteiro eu não consigo. Eu desligo a TV. A gente tenta de várias formas explicar, mas é difícil por não saber o que passa na cabeça de cada companheiro. Você não escuta quem grita, ou não se deve passar uma bola para um volante de costas. Teve gol ali que é inexplicável. Eu não acredito que levamos aquele gol que eles tocam, tocam, tocam e fazem o gol. A cabeça fica se perguntando, treinamos para caramba, chegamos ao extremo nos treinamentos de preocupação e chegamos a esse resultado que não era justo para nossa campanha.
Mas talvez não foi essa preocupação tão grande, o consumo tão grande de tudo que envolvia aquela Copa, que acabou impedindo o time de colocar em prática?
— É muita informação, né?! Nas Copas que eu joguei, eu não assistia programa de TV. Eu colocava série, filme, ia ver coisas relacionadas ao que fazer no jogo... Não ficava em rede social. Mas tem, sim, essa responsabilidade por estar no seu país, representar bem, ganhar uma Copa no Brasil. Ia ser uma coisa, mas o desfecho não foi legal mesmo. Esperávamos uma final no Maracanã contra Argentina ou Holanda.
Você viveu também o outro lado da moeda, de uma classificação histórica e improvável no Camp Nou, contra o Barcelona de Guardiola e Messi com um golaço de cobertura. Como você lida também com esse lado positivo da eternidade por algo que você fez em campo?
— Estive há pouco tempo em Londres para um jogo de homenagem e quando cheguei lá fiquei até surpreso com a recepção. Na época, quando eu passei na zona mista comemorando, eu vivia um misto de alegria por estar na final, mas eu estava suspenso e não ia jogar. Me perguntaram se eu tinha noção do que tinha feito e eu não sabia de nada naquele momento. Combinei com o David Luiz: você não vai jogar a final da FA Cup e eu prometo ser campeão, mas você me promete ganhar a Champions. Fiz a minha parte e ainda fiz o gol na final contra o Liverpool. Na comemoração, eu cobrei ele. É muito bacana. Meu filho mais novo, de 9 anos, agora começou a pesquisar algumas coisas e as pessoas falam com ele: "Seu pai fez um gol de cavadinha no Barcelona". Aí ele fala: "Caraca, pai, e aquela dança?". Isso é muito legal. É algo que vai ficar para o resto da vida, até depois que eu falecer. Estávamos perdendo o gol com um a menos e o Ramires deu uma cavadinha no Valdés com o Camp Nou lotado. Às vezes, eu boto para ver o gol e penso: "Que loucura!". O David me falava muito para fazer a cavada. Na hora, quando o passe do Lampard veio perfeito, o Valdés saiu, vieram Dani Alves, Piqué e Puyol para fechar, eu logo cavei. Ela saiu certinho, na continha da luva dele. Quando eu vi o gol, eu fiz a dança dos amigos aqui de Barra do Piraí brincando. Deu tudo certo. Depois, nós defendendo igual a uns loucos, colocamos o ônibus na frente do gol, o Ashley Cole dá um chutão para frente e eu não tinha visto onde tinha ido a bola. O time do Barcelona estava todo perto da nossa área. Quando eu olhei, vi uma camisa branca dominando a bola, ele correndo, a gente correndo junto, ele dribla o Valdés, chuta e acabou. Foi um momento muito louco.
Quando você lembra disso tudo e avalia sua carreira, em qual prateleira você se encaixa: mediano, bom, excelente ou craques?
— No futebol, tem os fora de série com Ronaldinho, Romário, Ronaldo, Neymar, Cristiano... Depois, tem uma outra galera que vem com Hazard, Haaland, uma galera boa. Eu acho que venho neste terceiro escalão aí. Para um volante, fazer o que eu fiz de gols, assistências, acho que me coloca nesta lista aí. Mas tem muita gente na primeira, muita gente na segunda e muita gente na terceira também.
Você nunca escondeu de ninguém que torce para o Flamengo e acabou não jogando no seu clube de coração. Em algum momento isso te gerou problemas?
— No Joinville, nunca deu problema, havia outros jogadores que falavam. Mas no Cruzeiro começou aquilo: "Ele é carioca, torce para quem?". Uma vez me perguntaram na entrevista e eu falei que era Flamengo, mas não ficava falando direto. Eles ficavam cobrando: "E quando jogar contra o Flamengo, como vai ser?". Mas sou profissional e se tiver oportunidade de fazer gol, vou fazer. Até que teve um jogo no Brasileirão que eu perdi um gol e fiz outro, acabaram brincando que dava para ser mais. Eu nunca faltei com o respeito, não ficava falando o tempo inteiro ser torcedor, mas era uma época mais leve do que é hoje. Um atleta falar isso atualmente é bem mais complicado.
E essa também é uma das vantagens da aposentadoria, poder torcer à vontade?
— Ah, é... Eu tenho minhas camisas aqui, tenho uma que troquei com o Ibson ainda na época que jogava, tenho uma chopeira do Flamengo e outra do Cruzeiro. Ainda não fui ao Maracanã, ficam me chamando. Preciso ir viver a arquibancada.
Por fim, e como está a vida profissional do Ramires? Ainda está próximo do futebol?
— Sim, mas com um trabalho bem mais tranquilo. Tenho a minha empresa, a RSN Agenciamentos Esportivos, onde temos alguns atletas jovens em busca de parcerias para colocá-los em clubes e tentar melhorar a vida tanto do jovem como da família. Damos um suporte à família. No futebol, eu vivenciei muitas coisas e o que eu quero trazer para a empresa é esse apoio aos familiares quando o menino tem essa ascensão para manter o pé no chão. O que fazer com o dinheiro, acompanhamento com psicólogo, dar um suporte legal enquanto ele estiver atuando e também quando encerrar. Espero que dessa forma a gente consiga atingir os nossos objetivos e ajudar aqui em Barra do Piraí, região e todo o Brasil com tantos talentos em busca de uma oportunidade.
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